O esvaziamento do amor afrocentrado, ou melhor, relacionamento Afrocêntrico.

Kinaya Black
Kinaya Black
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6 min readAug 20, 2020

Desta vez resolvi contar um pouco sobre o amor. Algumas semanas atrás, vi uma postagem sobre o relacionamento afrocentrado não existir. Voltando ao passado, eu iria dizer que existe sim, através das lentes ocidentais das leituras que eu estava imersa sobre o tal feminismo negro. Que assim como outros movimentos ocidentais que se pintam de preto, deturpam os conceitos criados/nomeados por nós, como o que vem acontecendo com o mulherismo afrikana mas isso é assunto pra outro texto.

No meu passado de bolha ocidental, eu acreditava que o termo afrocentrado era colocar questões pretas no centro. O que não quer dizer que não seja, mas eu não sabia nem que existia uma pessoa que desenvolveu toda uma teoria social sobre afrocentrismo. Ao descobrir a afrocentricidade, me dei conta de que vivia em um ciclo de apagamento e epistemicídio(se você não sabe o que é isso, cola no perfil da Zaika do Santos clicando aqui), ou seja, o não referenciamento que o ocidente provoca aos conhecimentos pretos e principalmente do continente, é só mais uma das estratégias de asseguramento da prisão mental dos nossos. Mais explicado seria como se a pessoa preta enxergasse a salvação de sua condição através daqueles que continuam reproduzindo os mesmos mecanismos de opressão/racismo.

“Não há liberdade até que se tenha liberdade da mente.”

Molefi Kete Asante, criador do termo afrocentricidade, que não deve ser apenas uma palavra mas sim um conjunto de ações e práticas durante a vida.

Segundo Asante: “A Afrocentricidade é um modo de pensamento e ação no qual a centralidade dos interesses, valores e perspectivas africanos predominam. Em termos teóricos é a colocação do povo africano no centro de qualquer análise de fenômenos africanos.

Esse trecho retirado do livro Afrocentricidade, a teoria da mudança social, mostra um pouco do que é o afrocentrar. Além disso, a afrocentricidade tem como um de seus objetivos principais ser contra a dominação racial branca. Se você lê essa frase direitinho você vai entender que coisas de pretos se resolve com outras coisas de pretos.

No passado, nunca chegaram para mim e disseram o que realmente era ser afrocentrado e muito dessa palavra, como eu acreditava, chegava pra mim através de mulheres brancas. Eu costumava falar que estava em um relacionamento afrocentrado, mas na verdade eu estava em um relacionamento com outra pessoa preta, reproduzindo as mesmas opressões e inseguranças que os relacionamentos brancos, a diferença é que nós estudávamos raça. Mas estudávamos raça a partir de epistemologias ocidentais mesmo que de autoria negra.

Afrocentrar é um processo de regeneração humana, eu costumo chamar de renascimento, mas para renascer é necessário transformações de crenças, valores, conceitos, hábitos/comportamentos e demais práticas que nos foram ensinadas a partir do branco. Um dia, eu olhei pra trás e vi que tudo que eu aprendi na vida não pensava meu povo. Isso entra não só a educação escolar como os movimentos sociais. E eu chorei. Chorei por ver que vivi a vida toda um algo que me exclui, por ter ajudado os sistemas racistas através do apoio às ideologias ocidentais, por ter acreditado que atacando os homens negros, mulheres negras iam chegar a algum lugar, por ter sentido medo de Exu e por ter entendido que tudo está conectado à uma ideologia maior que eleva a branquitude e afasta cada vez mais os pretos de conhecerem sobre si, sobre suas organizações sociais, suas tecnologias , enfim seus saberes.

Algo que me incomoda muito em uma conversa é quando outras mulheres negras não aceitam meu posicionamento de não ser feminista, ou não mais, e atacam a afrocentricidade como heteronormativa, homófona e reproduzir submissão feminina( que? ). E quando falo: ah eu não sou feminista, a pessoa do nada fala: ah tu agora é mulherista é? Gente! Não é assim que as mudanças acontecem, se rotular mulherista ou afrocentrista e continuar repetindo/reproduzindo valores ocidentais e racistas é um erro não só com seu próprio ser, mas também com seu povo.

Ah mas o tema num era amor? Sim. Mas para chegar nisso é necessário entender no que ele se configura, no caso a afrocentricidade. Isso implica não só em relações “carnais”, mas também familiares e entre amigos.

Deixo aqui uma passagem sobre o amor ou relacionamento afrocentrado, direto da fonte:

“O Njia* ensina que homens e mulheres são igualmente a fonte de nossa força e, certamente, nosso talento. Por causa disso, é possível discutir a natureza e o lugar dos relacionamentos dentro de uma filosofia Afrocêntrica. Existem quatro aspectos nos relacionamentos Afrocêntricos: sacrifício, inspiração, visão e vitória. Em cada um desses aspectos, vemos elementos de respeito e partilha.”

“Sacrifício significa que cada uma das partes está disposta a abrir mão de certos aspectos pessoais a favor do progresso coletivo.”

“O relacionamento Afrocêntrico é também inspirador. Você é estimulado pelas interações com seu cônjuge, não apenas física, mas emocional, psicológica e intelectualmente também.[…] Quando você não consegue sonhar junto com seu companheiro, suas noites e seus dias são constantemente marcados por stress, pesadelos e derrotas.”

“Nada pode substituir a experiência visionária; ela é o elemento galvanizador que mantém o relacionamento no rumo certo.[…] Um elemento visionário em um relacionamento estabelece um objetivo fora e para além dos aspectos da vida diária.”

“Talvez o mais significativo de tudo isso seja o fato de que o amor afrocêntrico é vitorioso. Uma celebração de nós mesmos, nossas aspirações, conquistas e realizações acompanham o aspecto vitorioso de um relacionamento.”

*Njia é a expressão coletiva da visão de mundo afrocêntrica que está fundada na experiência histórica do povo africano.

Como sempre o povo africano a frente de seu tempo, pois se você olhar para a história dos povos africanos vai ver que os elementos citados acimas, são baseados justamente na experiência dos nossos ancestrais africanos e tem muito a ver com os discursos que vemos hoje. Para você que vive falando que só encontra relacionamento tóxico, amiga/o você precisa cuidar na fuga, pois os lugares e pessoas com quem você está fechando são multiplicadores de opressões, reprodutores de valores de relacionamentos ocidentais que todos nós sabemos que são patriarcais, onde não há equilíbrio entre homem e mulher e se você for LGBTQI+ você é afeito também por esses valores, e acaba que seus relacionamentos vão seguir a lógica do apenas um dá e outro só recebe; posse, autoritarismo e por aí vai.

Agora que já vimos sobre o relacionamento ou amor afrocentrado, eu preciso finalizar com outra colocação, sobre o amor. Como dá pra perceber a forma de amor afrocêntrica é sempre voltada para o coletivo e não o individualismo. O amor romântico não é o amor que estou explanando aqui. Sobonfu Somé, em seu livro O Espírito da Intimidade, nos conta ensinamentos sobre os relacionamentos africanos, especificamente do povo Gadara, sua tribo. O livro todo é sobre o se relacionar, porém no capítulo nove, intitulado A Ilusão do Romance, a autora nos alerta para o que está sempre na frente de nossos olhos e não conseguimos mudar:

“Romance significa esconder seu verdadeiro ser, para ser aceito. Começa com a pessoa negligenciando seus verdadeiros sentimentos, até chegar a um ponto de séria depleção. Teria sido melhor dizer, desde o início:”posso lhe dar esse tanto. Esse é meu limite. Com sua ajuda, posso conseguir ir além, mas não vou lhe dar uma imagem falsa de mim”, Sem esse tipo de honestidade, nosso parceiro fica imaginando:”nossa, será essa a mesma pessoa com quem me casei?””

Se você nunca se passou pra conseguir ficar com alguém que você achou que seria a pessoa perfeita, parabéns. Pois o que vemos na nossa sociedade são valores de tudo que é coisa influenciando na forma como nos apresentamos ao outro e isso nos faz se sujeitar a muitas situações que não merecemos passar. Busque aprender com nossos ancestrais e procure se aproximar de pessoas que também querem ser mais felizes e livres de tantas opressões sobre nossos corpos e modos de vida. Isso também é cuidar da sua saúde mental.

E da próxima vez que você ler sobre relacionamento afrocentrado não existir, ou que seja algo nada a ver com o que é a afrocentricidade, procure mais uma vez aqueles que estão se dispondo a te entregar os saberes baseados na ancestralidade africana.

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Kinaya Black
Kinaya Black

Kinaya Black é o pseudônimo de Gisele Sousa Santos. Escritora desde quando se entende por gente. Mestra em Literatura Comparada e pesquisadora afrofuturista.