O que as crianças sabem da África (ou o que todo mundo acha que a África é)

Kinaya Black
Kinaya Black
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5 min readJun 1, 2019

Eu dou aula para crianças, criancinhas mesmo, de até 5 anos, a maioria são um amor comigo, mas sempre temos aqueles que são mais resistentes, pra mim, ensinar para crianças é uma oportunidade de conhecimento incrível, uma vez que esses seres mostram suas perspectivas sobre o mundo.

Porém, temos que cuidar muito bem das nossas crianças, afinal o mundo vai ser delas um dia também e se não bem orientadas na infância, vão cometer os mesmo erros dos adultos de nossa época, justamente por terem aprendido conceitos equivocados sobre povos, cultura e economia. Eu decidi ser professora mesmo sem querer por acreditar que eu poderia abrir caminhos na mente dos meus alunos.

Educação e práxis, são um elo, não dá pra ser professor sem posicionamento crítico, afinal estamos em sala mas chegamos a ser responsáveis por vários efeitos para além do espaço escola. Efeitos estes positivos ou não. O número de evasão escolar é grande e isso não é uma culpa inteiramente do aluno.

Sou responsável pelo que entra nos ouvidos dos meus alunos, mas não sou responsável pela interpretação destes. Quando entramos no conteúdo de bandeiras de países, fui surpreendida mas não fiquei surpresa ao mostrar a bandeira da África do Sul. Uma vez que, já cheguei a ouvir dentro da minha própria casa que a África era um país e imediatamente corrigi durante a revisão das atividades de minha irmã, que também é uma criança.

Certa vez, ao realizar algumas atividades de história com ela, me deparei com uma página sobre etnias, onde deveria relacionar as fotos com o lugar de onde vinham, e pra mais uma vez minha não surpresa: África era representada por crianças em situação de miséria. É um fato que há lugares na África realmente muito pobres, mas a África, mesmo tendo sido um continente exageradamente explorado, não é feita apenas por crianças desnutridas.

Sou leitora assídua de Chimamanda, uma escritora nigeriana que nos insere em realidades tanto dentro como fora da Nigéria. E busquei ler mais autores africanos desde então. Um dia conheci o ex ministro de cabo verde(farei um texto sobre isso depois) e pude conversar sobre diversos assuntos e um deles foi sobre essa representação da África, que é equivocada não, mas sim errada. E no Brasil temos lugares miseráveis também.

Conhecer pessoas de outros lugares e países nos abre muito a visão humana de mundo, ou seja, ficamos mais aptos a enxergar realidades e identificar mentiras, isso também pode e deve ser feito a partir da leitura, principalmente lendo autores de diferentes culturas. Meus alunos ainda não sabem ler, mas eles observam o mundo ao redor, e absorvem muito mais que um adulto. E como diz Toni Morrison, esses aprendem através de exemplos.

Mostrei várias bandeiras, e aí chegou na vez da bandeira da África do Sul, isso pelo fato de termos personagens de diferentes etnias nos livros, creio que todo livro infantil possui seus personagens. Estávamos estudando sobre a origem deles, e estava correndo tudo bem. Porém ao pedir para eles repetirem South Africa, eles só diziam África.

E então começou: “tia a África é o que?”, “ minha mãe disse que lá tem muitas crianças pobres”, “ tia a África só tem criança que não come”, dentre outros que estou cansada de ouvir. Ao receber tais comentários tive que ativar meu modo ativista, não aguentei e respondi a todos em linguagem simples, para que eles pudessem entender que a África não é um país, que não existe só pessoas pobres, e por aí foi. O olhar das crianças ao absorver tais palavras era como uma grande descoberta, afinal isso é o que eles e a maioria da população brasileira não sabe.

Em pleno século 21, ainda estamos vivendo a perpetuação do Salvador Branco, muitos artistas vão à África e visitam lugares miseráveis e tiram fotos sorrindo com as crianças ou até mesmo expondo elas em vídeo enquanto estas estão sentindo dores e muito mais. Eu não vou mentir que se eu pudesse ajudar lugares pobres eu ajudaria na hora, e o movimento negro não reclama em relação à ajuda, mas sim a forma como esta é estabelecida e propagada.

Cresci vendo pessoas brancas indo para o continente africano sob o slogan “salvando vidas”. Mas esse ano de 2019 tivemos um ciclone que devastou países africanos como Moçambique e Zimbábue e os veículos de mídia, fora os alternativos, noticiaram de uma maneira superficial, não deram muitos detalhes, o incrível é que estamos acostumados a passar a semana inteira ouvindo sobre desastres ambientais na Europa e América do Norte, de uma forma que na quarta-feira a gente chega a dizer: de novo essa mesma coisa.

Vidas negras importam, não é só uma hastag, ou uma frase em um cartaz de manifestação, é uma conscientização de que o lugar subalterno que foi determinado pelos brancos ao negro, continua até hoje, e que não iremos mais aceitar esses espaços.

Não somos mais invisíveis à vocês, como quando nos escravizaram e tivemos que apagar nossa negritude e nossa ancestralidade. Estamos diante dos seus olhos agora, vocês terão que aceitar o fato de nos ver em todo lugar, inclusive no restaurante burguês que você come e pede desconto. Durante anos fomos obrigados a se subalternizar para sobreviver, mesmo a escravização sendo uma morte lenta.

Se nós não repassamos o conhecimento de forma correta, (e não distorcida como passei a vida toda na escola aprendendo) o mundo continuará o mesmo, sem empatia com outras culturas, e sem empatia consigo mesmo. A imagem da África como sinônimo de fome e pobreza é diretamente relacionada aos filhos da diáspora, ou seja, nós. E as coisas precisam ser colocadas de forma correta para os próximos que virão e para aqueles que também estão à sua volta neste momento.

O ser professor é uma profissão delicada e esmagadora, podendo deixar qualquer recém formado com vários sonhos à beira de replicar métodos ruins devido os sistemas escolares que não se atualizam.

Não exercem a representatividade nem discutem sobre problemas atuais, afinal falar que o negro era escravo parece ser mais fácil que dizer que não foi princesa Isabel a nossa rainha abolicionista, é mais fácil falar pros seus alunos negros que a África é pobre, do que mostrar novas perspectivas pra eles. É mais fácil contribuir com uma sociedade racista do que ajudar a erradicar essa realidade? As escolas esquecem que estamos lidando com pessoas reais, e não uma mera alienação. É um peso, eu sei, mas não está tudo em nossas mãos, professores. Pois uma hora todos crescem e devem crescer sabendo como o mundo realmente é e isso implica muito na educação de cada. Detalhe que eu não disse antes, eu ensino para crianças burguesas.

Vidas negras importam, existem, estamos vivos, apesar de nos matarem lentamente e nos assassinarem aos montes. Digam o certo para nossas crianças, antes que elas cresçam e se tornem mais um negro oprimido ou mais um branco racista.

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Kinaya Black
Kinaya Black

Kinaya Black é o pseudônimo de Gisele Sousa Santos. Escritora desde quando se entende por gente. Mestra em Literatura Comparada e pesquisadora afrofuturista.