O livro é realmente melhor do que a série? Um reflexão sobre Birdgerton e Anne with an E

Luana Silva
Epifanias Aleatórias
6 min readJan 2, 2021

Certamente a frase acima já foi proferida por algum leitor e fã apaixonado, na tentativa de defender a obra fruto da sua admiração da inescrupulosa indústria audiovisual. Eu já repeti essa mesma frase algumas vezes e, preciso dizer, que na maioria das vezes ela é verdadeira. No entanto, a compreensão da complexidade que é adaptar uma obra literária para as telas requer que paremos um momento e reflitamos um pouco sobre aquilo que estamos vendo.

Adaptar qualquer coisa não é uma tarefa fácil, muito longe disso. Especialmente quando se trata de uma obra textual em que muitas vezes temos acesso aos pensamentos dos personagens. Eis então que toda descrição precisa ser transformada em cenários, imagens, figurinos, expressões faciais, entre tantos outros recursos. Sem contar que o audiovisual muitas vezes requer um tempo muito limitado para a história que vai ser contada, diferente da liberdade fornecida pelo papel. Uma descrição, que pode conter páginas inteiras, ao passar para uma tela pode se transformar em algo tão efêmero que vai durar apenas alguns segundos. Então, cabe ao leitor aceitar que algumas cenas, mesmo que sejam as suas preferidas, ficarão de fora da obra.

Não importa quão bem feita seja uma adaptação, sempre haverá um fã obstinado a defender que uma cena X não poderia ter ficado de fora. Em alguns casos, já amplamente discutidos, como em Harry Potter ou Game of Thrones, ausência de cenas ou personagens pode acabar alterando o contexto ou até mesmo o rumo da história. Mas o intuito desse texto é destacar exatamente o contrário, adaptações em que, na minha opinião, a série superou o livro.

Começando com Anne with an E, a série da Netflix (2017 – 2019) adaptou uma série de livros da escritora Lucy Maud Montgomery. A primeira temporada da série retrata os acontecimentos do primeiro livro intitulado Anne de Green Gables (1908). Vou deixar uma pequena sinopse ao final desse texto, caso você ainda não esteja familiarizado com a história.

Anne with an E, série da Netflix

A história se passa no Canadá, no início do século XX, e seu conteúdo é na maior parte infantil. O primeiro livro aborda a vida de Anne desde os 13 até os seus 16 anos. Ao longo da série de livros acompanhamos a história da órfã, desde a infância, até a adolescência enquanto estuda para se tornar uma professora, se forma, casa e tem seus próprios filhos. Já na série da Netflix, precocemente cancelada, vemos história de Anne até ela ir para faculdade com 17 anos.

Ao longo das três temporadas a série deixa evidente questões feministas, além de abordar o assunto da homossexualidade, tudo de uma maneira bastante leve. A terceira temporada também introduz a temática dos povos nativos indígenas, que é uma das pontas soltas deixadas devido ao cancelamento da série. Apesar disso, a série atualiza muito bem a história original trazendo questões da atualidade que não pertenciam, à princípio, ao livro sem perder de vista todo o encanto e a leveza da proposta original.

Em Bridgerton, o que acontece é muito similar.

Bridgerton, série da Netflix

Apesar de o primeiro dos oito livros da série ser de 2000 (O Duque e Eu, de Julia Quinn), a história se passa no longínquo ano de 1813 e retrata os costumes da sociedade da época. Já comentei em um texto anterior, que a série da Netflix (2020 — atual) atualiza muito bem a história de época para os dias atuais, colocando questões como diversidade em evidência, tanto pela questão racial quanto em se tratando de relacionamentos homoafetivos. A produção, que é uma parceria de Shondaland com a Netflix, também traz outro ponto curioso que é a trilha sonora: com músicas atuais em versões instrumentais que tocam durante os bailes. Um acerto e tanto.

A série retrata o papel da mulher e seu valor para esta sociedade através dos olhos de Daphne Bridgerton, cujo sonho é se casar por amor e constituir uma família. Esse papel é constantemente questionado pela sua irmã mais nova Eloise, que sonha em ir para a universidade, assim como seus irmãos mais velhos.

Em um determinado ponto da série, fica evidente a mudança de status da mulher na sociedade depois que ela casa e como algumas mulheres usam isso a seu favor, por proteção e também liberdade. Ao contrário do que possa parecer, as mulheres não são submissas e elas sabem jogar com as armas que têm, para conquistar seus objetivos.

Um ponto alto dessa adaptação foi a exploração de personagens secundários, como a Família Featherington e outros que aparecem durante a temporada. Todas as tramas paralelas são igualmente interessantes e impelem o espectador a querer saber qual será o futuro dessas pessoas.

Além de questionar a honra de seus personagens durante toda a temporada, a série também deixa clara a hipocrisia existente entre os comportamentos que são aceitáveis para homens e mulheres. Apesar de ser um romance de época, são temas que pernacem atuais, infelizmente.

The Handmaid’s Tale, série da Hulu

Eu não poderia deixar de lembrar aqui também de The Handmaid’s Tale ou O Conto da Aia, em português. A série da Hulu (2017 — atual) é baseada no livro de mesmo nome da escritora Margaret Atwood. No romance distópico (1985) ficamos sabendo tudo o que aconteceu depois que um governo totalitário toma o poder dos Estados Unidos, que passa a se chamar República de Gilead, através dos pensamentos de uma mulher (Offred). Apesar de não sabermos o que acontece com ela no final das contas, temos o seu relato do período em que ela esteve nesse lugar, no papel de aia.

A série, além de contar com a incrível interpretação de Elisabeth Moss no papel de Offred, precisou adaptar um livro que é todo narrado através de pensamentos e lembranças e faz isso de maneira espetacular. Assim como Bridgerton, eles ampliam o papel dos personagens secundários e exploram pontos que são apenas mencionados no livro, como a divisão da sociedade por castas. A trilha sonora no final de cada episódio faz a gente lembrar que, apesar de parecer que os fatos tenham acontecido há centenas de anos, eles poderiam muito bem acontecer hoje mesmo.

Em todos os casos mencionados, acredito que a discussão se o livro é ou não melhor que a série, simplesmente não valha à pena. Mas que deixar de assistir de à série seria se privar de uma experiência incrível que pode ser tão enriquecedora quanto.

Sinopse — Anne with an E
Anne é uma garota órfã, que termina sendo adotada por engano por um casal de irmãos solteirões. A menina, que tem uma imaginação infinita, acaba se envolvendo em muitas confusões. Fã de palavras difíceis, Anne é muito inteligente e adora inventar histórias.

Sinopse — Bridgerton
Londres, 1813. A temporada social começou com tudo! A alta sociedade se prepara para imponentes bailes onde jovens donzelas devem encontrar o par perfeito para selar uma união e ir rumo ao matrimônio, de preferência, evitando qualquer possível escândalo. Porém elas não contavam com Lady Whistledown, um jornalzinho de fofocas que expõe os podres de todos. Daphne Bridgerton sonha em encontrar o amor, porém no seu caminho aparece um Duque libertino que não pretende se casar.

Sinopse — The Handmaid’s Tale
Após uma crise na taxa de fertilidade devido à poluição e ao uso de agrotóxicos, uma grupo ultraconservador sobe ao poder e transforma os Estados Unidos na República de Gilead. A sociedade passa a se organizar em castas, as mulheres perdem seus direitos e aquelas que são férteis são obrigadas à servir como aias para famílias de grandes escalões militares. As aias, sempre vestidas de vermelho, são obrigadas a ter relações com os comandantes das famílias a que servem para gerar filhos.

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Luana Silva
Epifanias Aleatórias

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