pietra inácio
Epifanias de Saturno
2 min readJul 1, 2019

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observadora & observada

observei seu rosto magro, o nariz ossudo e os olhos escuros, ainda avermelhados por ter chorado muito na noite anterior. sabia que choraria e que sentiria coisas que lhe despertariam imensidões no momento em que fosse tocada de novo.

ainda que as feições do choro fossem marcantes, por ter se permitido chorar e ter aceitado seus sentidos, sua feição tinha ficado incrivelmente mais leve. e por mais falacioso que pareça, até a pele parecia ter melhorado.

tinha desistido de trancar as emoções em si. antes era como se deixá-las livre fosse um crime. mas como tentar segurar uma avalanche? ou uma onda do mar? ou qualquer outro movimento perfeitamente natural do seu corpo, dos outros corpos e de tudo o que a circundava — que eram, no fim das contas, tão fora de controle quanto qualquer fenômeno natural?

a aceitação do descontrole fazia parte de viver em paz e parar de travar batalhas impossíveis — previamente definidas assim não por fraqueza, mas por respeito consigo, com a natureza das coisas e dos outros. precisava aprender a respeitar e amar mesmo o que estava fora do domínio ou do controle — talvez, justamente por estarem colocados dessa forma em sua vida.

por isso os olhos continuavam vermelhos — tinha tanto pra chorar que começou e foi como se não pudesse parar mais. agora, olhando pra mim, ri disso com orgulho, alívio e leveza.

notei que a observação parecia distante e me assustei. não passava de uma observação minha de mim naquele espelho sujo do corredor. a observação mais próxima se torna justamente a mais assustadora — vivemos em rede estabelecendo conexões de aprovações fúteis e diálogos vazios.

a conexão consigo passa tão ou mais despercebida quanto a conexão com o outro — o reflexo e a reflexão que moram nas lágrimas quando as deixamos cair passam igualmente despercebidos. e quase sempre morrem afogados.

[por quanto tempo você choraria se pudesse chorar tudo o que guardou no bolso e fingiu que não existia mais? ]

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pietra inácio
Epifanias de Saturno

chegou um tempo em que a vida é uma ordem - sem mistificação.