re-sentir

pietra inácio
Epifanias de Saturno
3 min readDec 11, 2018

ele fumou um cigarro e soltou a fumaça direto no meu rosto.

eu odiava quando ele fazia isso. e ele fazia isso sempre.

talvez eu o odiasse sempre. ou odiasse gostar dele. ou talvez apenas odiasse o cigarro.

quis perguntar como tinha sido o dia, se tinha brigado novamente com o chefe. ou se as coisas tinham sido tranqüilas. quis convidar pra tomar uma cerveja em algum lugar bonito, porque eu amo o horário de verão e a primavera chegou para resgatar sensbilidades. mas ele odiava tudo isso — o horário de verão, a primavera e as sensibilidades. quis falar de mim, mas ele tinha tanto ódio de tanta coisa que eu gostava, que tive a sensação que ele também odiaria isso — eu.

ele apagou o cigarro e continuou com os olhos fixos no trânsito imutável de final do dia.

me perguntei o que fazia com ele. se eu apenas esperava uma mudança e vivia todos os dias torcendo pra que parasse de fumar. ou se havia alguma coisa.

o que eu estava fazendo ali, incomodada naquele carro apertado, fingindo gostar de uma música que não gostava e abrindo a janela timidamente buscando algum escape pra todo aquele sufoco?

não era só a música — era tudo aquilo que eu fingia gostar mas não gostava.

percebi que não era sobre o fumo, que eu tentava tentava e tentava gostar ou fingir, pelo menos, que não me incomodava. era sobre a mesma ladainha de sempre e aquilo tudo que me disseram sobre aceitar incondicionalmente as pessoas ou escolher ficar sozinha, mesmo.

acho engraçado ficar incomodada com isso. logo eu, que preciso tanto de espaço e tempo só pra mim.

mesmo sem sentido, eu tentava aceitar tudo. e mesmo tentando muito eu não conseguia. ele entrava no prédio e não cumprimentava o porteiro. considerava que algumas pessoas nem eram gente. e pobre era adjetivo pejorativo — e ele odiava quando precisava usá-lo nas reclamações por conta de alguma interferência alheia.

eles deviam arranjar um emprego ao invés de tentar me vender balas

ou

bandido tem é que se foder — e que se foda sozinho e não me atrapalhe

a verdade é que eu tinha tornado ele uma missão de aceitação e transformação. e isso era errado comigo de todas as formas.

quis perguntar quais eram os nossos planos pro final de semana. mas percebi que o meu era pegar as minhas coisas e me mudar pra um lugar — alguém — com quem eu pudesse praticar outras aceitações.

não do cigarro, do ódio ou da traição. mas de mim, dos meus limites e do meu tamanho.

ele odiava quando eu divagava sobre o universo, a paleta de mudanças que os acontecimentos proporcionam nas nossas vidas e a multiplicidade de conexões entre as pessoas.

vocês de humanas pensam demais em coisa que não importa

os limites de ódio e silêncio dele não faziam parte dos meus encaixes. não havia sintonia. eu não cabia nos limites dele nem ele nos meus.

talvez tudo que eu odiasse era como mostrava me odiar ao ser incapaz de honrar meus próprios limites. e como eu tinha internalizado que isso era relacionamento, amor ou qualquer uma dessas palavras.

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pietra inácio
Epifanias de Saturno

chegou um tempo em que a vida é uma ordem - sem mistificação.