releitura do tato

relações metamorfoseadas em texto metamorfose de mim

pietra inácio
Epifanias de Saturno
3 min readMar 17, 2018

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imagem por eli craven

observei minhas próprias pernas bronzeadas jogadas preguiçosamente em cima das suas. nossos tons já não contrastavam tanto, ambos tocados pelo sol e marcados pelo verão. senti nossos corpos relaxados e me permiti relaxar diante da nudez compartilhada. era nudez de corpo, mas também de alma, tive certeza. seria ordinário e medíocre mencionar a voracidade dos seus olhos que ousavam tentar disfarçar a procura por mim. você sabia que eu estava ali, claro que sabia, mas sabia que parte de mim não estava. nunca está. nunca ousa se apresentar e quando é chamada, se esconde forçadamente dentro da outra parte.

eu não queria ser aquela que foge, mas eu sou.

senti os pêlos da sua perna se arrepiarem, você respirar fundo e tentar encaixar seu corpo no meu de forma mais confortável. conforto com outro alguém costuma ser um mistério. tem sempre um braço sendo esmagado, um ombro que cansa de ser apoio e pés que ficam dormentes ao ficarem por baixo. sinto vontade de rir do seu esforço, mas aprecio. e aprecio junto o movimento e a forma como os dedos da sua mão direita desvendam minha pele, minhas curvas e pintas. esbarram em cicatrizes, medem sua extensão e continuam. aprecio a forma como nesse trajeto seu corpo me diz que aceita e respeita as marcas do meu. sem maiores perguntas sabendo que cada cicatriz, cada marca, faz parte da soma que resulta em mim.

você roça sua barba no meu pescoço, recente demais em minha vida para saber da exploração de ponto fraco que isso significa. minha respiração se aprofunda e eu permito. permito que minha mente silencie. aceito que por hora é certo te ler através do meu próprio corpo. aceito que a releitura de quem você é (e quer ser) pelo toque pode se revelar mais precisa que a mesura pela razão.

lembro que na aula de artes da quarta série fazíamos releituras de quadros famosos toda semana. muito embora nenhum dos clássicos realmente fossem famosos aos nossos olhos ingênuos que não conheciam a maioria, mas mesmo assim nós tentávamos, muitas vezes em vão, extrair essências e reproduzir o que mais nos chamava atenção. se coloquem no lugar do pintor. por que vocês acham que ele usou essas cores? por que acham que exagerou nesse traço? dizia, sem parar, minha professora na época.

esse devaneio me atinge quando você beija, ordenadamente, minha bochecha e testa. e eu não faço muita ideia do que faço aqui mergulhada no seu perfume sabendo que tão logo não estarei mais. eu te leio e releio, sem precisar saber, por hora, de alguma outra resposta. talvez em vão, me coloco no seu lugar, me pergunto por que só te vejo usando meias brancas e por que exageras tanto em certas medidas. te releio através do tato. e não consigo, talvez nem queira ou deva, transcrever certas trocas e respostas.

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pietra inácio
Epifanias de Saturno

chegou um tempo em que a vida é uma ordem - sem mistificação.