ritualística e recombinação

pietra inácio
Epifanias de Saturno
3 min readMay 5, 2020

gosto de ritualizar algumas coisas na minha vida. como isso de só de madrugada começar a escrever esses textos desavisados no bloco de notas e cessar apenas quando as palavras também cessam seu fluxo. ou… fazer pausas em minhas falas – escritas, faladas, pensadas. sinalizá-las com três pontos. lembrar que, se em três míseros pontinhos cabe tanto, deve caber um tanto mais dentro de mim quando também me permito o espaço das pausas. ou beber uma grande xícara de chá antes de dormir e no meio da manhã. pela tarde não, só se alguma parte do meu corpo parece adoecida ou desencaixada. e… se bem que, sendo sincera, não desgosto tanto assim do desencaixe. o ritmo produzido por ele – encaixa desencaixa busca novos encaixes e encaixa de novo só pra desencaixar – me coloca em movimento. dizem que o ritmo é uma das leis do universo. queria muito descobrir qual é o meu – ritmo, mas também, universo. talvez no fundo, e nem precisa ser tão lá no fundo, eu até já saiba.

ritualizo conversas. conversar – com meu gato, com as plantas e às vezes, comigo mesma. e responder aquelas mensagens que sempre deixo pra depois e deixo pra depois… porque preciso de calma, silêncio e preciso me sentir terreno fértil para absorver. não gosto de diálogos-monólogos. acho que infelizmente diz muito sobre uma pessoa quando ela só sabe dizer e pouco ouve ou se ouve demais por achar ter pouco a dizer. sei que por várias vezes assumo esses papéis. um ou outro ou um e outro em momentos distintos. vivendo a vida tenho aprendido que algumas conversas dizem muito mesmo… mas é bem verdade, também, que às vezes, mesmo que a gente queira muito, não dizem nada.

ritualizo minhas chegadas em casa e minhas partidas porque cada dia escolho um caminho diferente. isso porque me disseram uma vez que fazer isso treinava partes do cérebro que, com excesso de rotina, perigam atrofiar e gerar problemas dos grandes no futuro. tenho medo de psicossomatizar as coisas – até mesmo de psicossomatizar o próprio medo da psicossomatização. sobre isso, não posso fazer nada. já aceitei.

leio demais e às vezes preciso também me ler. pra fazer isso direito, distancio. finjo que as palavras não são minhas. é mais fácil se olhar sem se reconhecer e há uma agonia latente em todos os seres diante do seu reflexo. lacan chamou isso de teoria dos espelhos. ou dos reflexos. bem… na verdade mesmo, nem tenho certeza se chamou de algum desses dois ou mesmo se foi esse cara aí. enfim, é sobre algo desse tipo e envolve uma conclusão impactante sobre criança despedaçada, imagem despedaçada… sei lá, mas achei isso bonito e muito interessante quando li. me ocorre que talvez seja sobre falta de correspondência.

e…me pergunto se correspondo. enquanto corro nas areias de uma praia vazia, muito pergunto e pouco respondo. por exemplo… o que é corresponder? se tenho mais perguntas do que respostas, não é melhor ser conduzida por elas do que deixá-las sufocadas por preenchimentos limitantes das suas indagações? ah… talvez eu não necessariamente vá verbalizar todas elas, porque algumas perguntas parecem ter nascido pra morar dentro da gente. nossas perguntas sem resposta talvez sejam o ritmo da nossa existência. sei que não foi isso que descartes quis dizer quando falou que penso, logo existo. e não gosto quando minhas palavras se aproximam de um clichê. de mais do mesmo. mas… deixo elas virem mesmo assim. nem todas as palavras conseguem se recombinar. sorte a minha que eu consigo.

fotografia minha por @manuellasecco

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pietra inácio
Epifanias de Saturno

chegou um tempo em que a vida é uma ordem - sem mistificação.