Reflexões sobre a música em meio à pandemia: live stream

Lalai Persson
Es.piral
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11 min readMay 11, 2020

O mercado de música, turismo e eventos são alguns dos mais afetados pela pandemia causada pelo coronavírus. Lembro-me claramente a sensação que tive quando os festivais e shows que eu iria este ano foram sendo cancelados em efeito dominó começando pelo SXSW, que eu acreditei que aconteceria de qualquer jeito. Como todos sabem, não aconteceu. A minha ficha caiu junto com ele sobre a gravidade da Covid-19.

Me isolei no dia 14 de março e então passei a sair muito raramente de casa para fazer supermercado. Nesses dois meses de isolamento muitas coisas aconteceram no mundo da música. Eu fiz questão de assistir tudo de camarote.

A live streaming não é novidade. Ela já acontece há pelo menos 25 anos. No já distante ano de 1995 foi criado o Macintosh New York Music Festival. Apesar de toda a parafernália instalada para a transmissão online, ele não rolou da maneira esperada. Imagina como a internet rodava com modem discado e DSL no meio da década de 90? Mas foi ali que nasceu a era do live stream e aí não teve mais volta.

Enquanto o início das lives nesta quarentena foi totalmente caseiro e improvisado, o que temos assistido agora é uma série de iniciativas mais elaboradas e produzidas, mas muitos ainda emulando programas feitos para a TV. Muitas vezes não há diferença ao assistir um show (pré)gravado ou live stream de shows em festivais. Claro que os improvisos continuam em profusão e são muito bem-vindos. É neste último formato que os fãs têm conseguido se conectar com seus artistas favoritos e tem (pelas conversas que tive) curtido mais.

Artistas de todos os gêneros, tamanho, nacionalidades e gerações têm explorado essa nova era da música que nasceu a fórceps. O objetivo inicial que era apenas entreter os fãs começa a ser entender como monetizar. Como os artistas terão receitas uma vez que os shows ao vivo estão cancelados por tempo indeterminado? Os fãs vão pagar?

O que parece (porque certezas ninguém tem) é que no futuro as transmissões ao vivo continuarão sendo comuns, mas mais produzidas, mais imersivas, mais criativas e pagas. Sim! É a minha aposta, não que isso exclua lives gratuitas. As plataformas sociais, como o Facebook, estão justamente trabalhando para dar ao artista essa possibilidade de poder cobrar pelas suas lives, como o Twitch já permite e até mesmo o Youtube com a opção inscrição.

A FOMO (medo de perder algo ou fear of missing out), ao contrário do que eu previa, aumentou na quarentena justamente por conta de tantas opções incríveis de entretenimento a apenas um clique (e de graça). Passo horas espiando o Instagram, o Twitch, o Youtube, o Facebook para ver o que está rolando. Depois fico pulando de live em live. Muita coisa mudou desde o dia em que o James Blake sentou num piano na sala da casa dele e fez sua primeira live no Instagram contando ao público que essa era a sua maior audiência. Neste dia ele reuniu 27 mil pessoas simultaneamente. Logo depois tivemos a Patti Smith fazendo leituras, tocando e cantando ao lado de sua filha para uma audiência menor do que a que ela costuma ter porque foi uma live surpresa. Aí não paramos mais e seguimos assim com muita gente nova chegando e tentando seu lugar ao sol no mundo das lives.

O Instagram é uma das poucas plataformas que não permitem transmissões pré-gravadas usando a transmissão “ao vivo”. Ali é na raça mesmo. Esse é o trunfo da rede pois, talvez, seja o Instagram o único a manter os momentos mais descontraídos e íntimos das lives sem grandes firulas que estamos curtindo tanto.

É muito reconfortante e gostoso esse momento íntimo que estamos usufruindo com os artistas que gostamos. Entramos na casa deles, vemos-os vestidos como a gente se veste em casa, batemos papo com eles em tempo real, vemos eles responderem às mensagens que enviamos, tocarem músicas que pedimos ao vivo e até mesmo sentimos a insegurança deles quando estão fazendo uma live pela primeira vez. Isso tem sido incrível! Mas a minha aposta é que num futuro não tão distante isso será algo mais raro especialmente com artistas já consagrados. Ou teremos essa possibilidade de manter essa “proximidade” a partir de cobrança de ingressos.

Você pagaria para entrar na casa de um monte de artista que gosta, onde pode perguntar algo e ter a resposta, de ouvir uma música que pediu pra tocar, de ter a sensação que está sentando ao lado do seu ídolo? Esse será o novo meet & greet direto do seu sofá. A primeira artista que eu soube que cobrou por uma live nesta quarentena feita diretamente de seu quarto foi a Eryka Baduh. Ela pediu US$ 1 e deu ao público o direito de escolher as canções de seu show.

Uma pesquisa da Nielsen Music/MRC Data (EUA) detectou que os consumidores americanos estão dispostos a pagar mais pelo streaming durante a pandemia. 24% dos pesquisados adicionaram pelo menos um novo serviço de assinatura neste período, sendo 81% em vídeo, 38% em música e 14% em jogos. As pessoas pagam por conteúdo que elas querem consumir se for necessário.

O Youtube e o Instagram desenvolveram botão de doação para as lives logo que todo mundo começou a arrecadar fundos para ajudar artistas, clubes, ONGs, etc. O Facebook demorou um pouco mas agora está lançando a opção de cobrar para assistir a uma live, além de já ter botão “doar”.

O Twitch, plataforma usada por gamers, passou a ser uma das favoritas para livestreaming de shows por uma comunidade grande de artistas com direito a acessar métricas. Em 2015 já tinha gente cantando a bola sobre o uso do Twitch para shows ao vivo, mas até mesmo a plataforma demorou para dar atenção, tanto que somente há poucas semanas lançou uma seção dedicada à música facilitando assim a busca por lives de música. A ARCA é um exemplo de artista que tem produzindo conteúdo por lá e disponibilizando apenas para pagantes. O festival EDC Las Vegas fará uma edição virtual na plataforma. O Soundcloud acabou de entrar na plataforma e já tem algumas transmissões feitas.

Video game é o lugar perfeito para abrigar festas, shows, festivais e até mesmo construir um club. O Minecraft tem sido o lugar para experimentos musicais feitos pelos próprios jogadores há alguns anos. Dois clubs serão inaugurados no jogo: Club Matryoshka, de Manila; e o do duo londrino KOVEN, o Another Home, que terá uma cobrança de ingresso.

Mas como extrapolar esse modelo tradicional das lives? Provavelmente ninguém tem a resposta, mas quem melhor extrapolou foi o Fortnite ao criar com o Travis Scott a turnê Astronomical. Foram 5 shows e lançamento de uma música inédita com 12,2 milhões de jogadores assistindo simultaneamente e 27,7 milhões jogadores (fora os que como eu assistiram o show de plataformas como o Twitch) em 3 dias. Os jogadores puderam acompanhar a produção do palco na praia Sweaty Sands nos dias que antecederam aos shows. Foi uma experiência só possível de acontecer no mundo virtual e aí que está o que faz um show ao vivo e um virtual competirem como iguais: proporcionar uma experiência única. Esse vídeo do Luba é bem bacana pra sentir o absurdo (e sanguinário) que foi o show:

O sucesso foi tanto na empreitada com o Travis Scott que o Fortnite lançou o Party Royale Mode para ser possível assistir a um show sem ser assassinado antes do término. Steve Aoki e Deadmau5 fizeram os shows de estreia.

Com todas essas estratégias, o Fortnite bateu recentemente a marca de 350 milhões de jogadores registrados tornando-o um dos maiores jogos do mundo.

O TikTok também está testando um botão para que influencers possam cobrar por suas lives. A rede social bateu a marca de 2 bilhões de downloads. Somente no Q1 2020 (janeiro a março) foram 315 milhões de downloads. Ele está saindo na frente de nossas velhas conhecidas.

Tem artista indo além das lives para se conectar com fãs e com a mídia. É o caso da Charli XCX que tem feito conferências via Zoom para contar sobre o álbum que está produzindo durante a quarentena.

O Patreon é uma plataforma que tem sido explorada por artistas. A ideia por lá é produzir conteúdo e ter “patronos” que pagam uma assinatura e recebem conteúdo exclusivo de acordo com o tipo de assinatura. A Gop Tun (São Paulo) acabou de estrear por lá levando anos de conteúdo do coletivo para o seu público. A Amanda Palmer já está há um bom tempo no Patreon e hoje conta com quase 15 mil patronos. Aos poucos tem entrado novos artistas com diversos formatos de conteúdo para compartilhar com seus fãs, além de promoverem lives exclusivas.

Exemplos de “lives” de sucesso

Desde o dia em que me isolei em casa, eu virei uma entusiasta das lives. Elas não substituem o show físico ao vivo, pois além da banda/artista estar ali em carne e osso na sua frente, tem toda a experiência que envolve um show e principalmente as experiências envolvidas num festival que uma live em casa não oferece. Igual não será. Isso não quer dizer que será melhor ou pior. Será apenas diferente. Mas desde que tudo isso começou, eu tenho tentando entender para onde estamos indo (assim como todo mundo). Peço desculpa pelo meu atual eurocentrismo, mas com tanta coisa pra lidar no meio da minha mudança de país, eu ando territorial temporariamente.

Aqui em Berlim a cena se movimentou rapidamente mostrando porque é a capital do techno. Em uma semana o “United We Stream”, que tem o Comission Club Berlin e ARTEConcert por trás, estava no ar com lives diárias sendo feita de clubes e festas. Não demorou para trazer outras cidades alemãs e até mesmo o Hacienda, em Manchester, para dentro da plataforma. O objetivo é arrecadar fundos que são repassados para os clubes com capacidade para até 1.500 pessoas. Na Alemanha foram arrecadados quase 500 mil euros até o momento e Manchester arrecadou 260 mil libras.

O Klunkerkranich, um bar com pistinha no rooftop de um shopping center em Neukölln, também se mobilizou rapidamente com lives diárias sempre das 16 às 19h para garantir que seu público cativo não perdesse o pôr-do-sol de Berlim visto de sua varanda. Logo no início colocaram uma campanha no ar e desde então arrecadaram 6.700 euros. Com o relaxamento das regras de isolamento, o Klunkerkranich criou um crowdfunding com diversas recompensas. Uma delas é visitar a casa com mais 5 amigos, o que já é permitido na Alemanha após o relaxamento da quarentena, para ouvir a história do espaço, tomar um drink e matar saudades da vista que só eles têm. A meta de 10 mil euros já foi ultrapassada.

O Boiler Room começou com uma agenda com um live e depois diversos lives antigas. A segunda parte não deu certo, pois quem quer ver festa com um monte de gente aglomerada? Logo a plataforma deixou isso de lado e focou nas lives “em tempo real”. Desde então tem trazido grandes nomes com destaque pro Floating Points, que inovou fazendo uma live junto com uma cia. de dança se apresentando via Zoom com cada dançarino visto de uma câmera diferente. O público também pôde entrar no Zoom e fazer sua apresentação dentro da mesma live. Simples e genial! O Boiler Room tem arrecadado dinheiro pro FoodBanking e arrecadou mais de 26 mil dólares.

O selo inglês Defected Records fez uma bela maratona de música eletrônica com 12 horas de house music transmitida diretamente do Ministry of Sound bem no início da quarentena. Deu tão certo que não demorou para anunciar a outras edições (já está na 5ª).

A cantora brasileira Teresa Cristina começou a fazer lives em meados de março. Virou a sensação da madrugada e hoje está na lista das lives favoritas de muita gente que, diariamente, se conecta à meia-noite para ouvir seus bate-papos regados à música. Até a Anitta, Maria Ribeiro, Caetano Veloso e Conceição Evaristo fazem parte de sua audiência. Olha aí alguém dando um “pivot” na carreira. :)

O duo de música eletrônica 100 gcs construiu um lugar chamado Square Garden no Minecraft para promoverem um festival de música experimental que teve Charli XCX, Benny Blanco, Dorian Electra, entre outros no line-up. Quem não tinha acesso ao jogo, pode assisti-lo no Youtube ou no Twitch.

Surgiram diversos festivais em casa que foram sucesso de audiência: Festival em Casa, Festival em Casa BR, Festival Fico em Casa e o Festival dos Festivais que reuniu 8 festivais brasileiros para celebrar a música nacional, já contando com uma marca patrocinadora.

A jornalista Claudia Assef lançou o programa de entrevistas Todo Mundo é DJ, com transmissão ao vivo no Facebook e no Youtube. O programa promove um bate-papo com um DJ convidado (Marky e Eli Iwasa foram os dois primeiros) sobre música e carreira, tem o momento “doação” com o DJ convidado doando artigos de seu acervo pessoal para a audiência arrematar via leilão via chat. O dinheiro é doado para uma ONG escolhida pelo ganhador.

O formato pré-gravado funciona bem em plataformas como o Facebook e Youtube. Um dos maiores exemplos foi o grandioso One World Together At Home, que teve a transmissão feita por grandes canais de TV, parceria com a Pepsi e reuniu os maiores nomes da música mundial. A “pseudo live”, uma verdadeira colcha de retalhos para juntar as mais de 100 apresentações, foi meio entediante. Mas o festival arrecadou 128 milhões de dólares para a luta contra o coronavírus!!

Já o famoso Cercle anunciou uma live transmitida do topo do Arco do Triunfo com Bob Sinclair, porém sem público. Pegou super mal e teve que adiar.

Mas como eu encontro as “lives” que vão rolar?

Um dos problemas atuais é como pesquisar o que está rolando de lives? A maioria das plataformas que hoje as abrigam não tem uma landing page com a agenda. Quando falamos de live a única coisa que pode impedir alguém que está em Tóquio a assistir uma live que rola em São Paulo é não saber que ela vai rolar ou o fuso horário. A livestreaming nasceu globalizada, mas sofre o mal de ser descentralizada. Tem muito site especializado fazendo curadoria de agendas, tais como NPR, Pitchfork, Billboard, Resident Advisor, Brooklyn Vegan, Rolling Stone, DiceTV, Live From Home, mas ainda assim escapa muita coisa do radar, especialmente a agenda de artistas menores que acabam impossibilitados de expandirem suas audiências. É ainda mais difícil fazer busca por estilo, data, (fuso) horário, etc… a caça geralmente tem sido feita na unha.

Quem aí não passou a seguir muitos artistas que gosta nas redes sociais para poder estar atualizados de suas lives? Aliás, aqui fica uma dica: entre vários sites que fazem curadorias de lives e aplicativos que contam com agenda, o Bandsintown é um dos que eu mais gosto. É só conectá-lo com uma de suas redes (Facebook, Spotify ou Apple Music) para ele criar uma agenda personalizada a partir dos artistas que você curte e artistas similares.

O isolamento social global acelerou bastante o futuro do entretenimento. O da música me pareceu um segmento atrasado mesmo com tantas iniciativas virtuais feitas nos últimos anos. Ainda há muito por vir, inclusive porque as plataformas sociais e de música estão trabalhando a todo vapor para proporcionar melhor experiência para o artista e para o usuário. Eu estou bem curiosa com tudo que assistiremos nos próximos meses.

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