Ensino domiciliar: o homeschooling em debate

Coluna Reg. traz dois textos, com posições diferentes, de modo a ampliar o debate a respeito da regulação do ensino

AGÊNCIA ESCALA
EscalaEsc
7 min readAug 30, 2018

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Nesta quinta-feira, dia 30 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciará o julgamento de assunto importante: a legalidade do homeschooling, isto é, da possibilidade de os responsáveis pelas crianças educarem-nas em casa, e não em escolas.

O tema é polêmico. A coluna Reg. traz dois textos, com posições diferentes, de modo a ampliar o debate a respeito da regulação do ensino. A dinâmica da elaboração dos textos foi a seguinte: o primeiro texto foi elaborado, e, então, lido pelos segundos autores, que elaboraram seu próprio texto.

Boa leitura!

O ensino domiciliar já existe no Brasil; falta regular

Fernanda Morgan
José Vicente Mendonça

O plenário do STF se reúne nesta quinta para julgar o Recurso Extraordinário n. 888815, que trata do ensino domiciliar. A decisão, com repercussão geral, é aguardada por milhares de famílias, que buscam educar filhos e filhas segundo convicções que não encontram no ensino tradicional e/ou colmatar falhas do processo educativo, causadas pela alegada precariedade do sistema convencional. Estima-se que mais de seis mil crianças brasileiras recebam educação domiciliar.1 O número deve ser maior, já que muitos, por medo, omitem a informação.

Toda essa insegurança, além de prejudicar o monitoramento da prática da educação em seus múltiplos exercícios, revela contrassenso interpretativo quanto às normas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Se, por um lado, é possível afirmar que ECA e LDB exigem matrícula e frequência na rede de ensino, sob pena de destituição do poder familiar, por outro, não há como negar que a aplicação cega da regra pode contrariar o melhor interesse da criança, princípio estruturante do próprio ECA (art. 227). Especialmente quando a educação domiciliar, em certos casos e sob certas condições, pode vir a atender às suas necessidades biopsicossociais de modo mais adequado do que, por exemplo, o ensino em algumas escolas da rede pública, cuja realidade é a de poucos professores, nenhuma condição de aprendizado, e muita violência.

Impedir, de modo absoluto, que pais e responsáveis eduquem seus filhos no ambiente domiciliar é ferir garantias fundamentais. Se não há, no meio público, alternativa acessível para quem não pode pagar mensalidade, não se deve responder à falta de direitos com menos direitos. Fora isso, é preciso notar que, à época de criação do ECA e da LDB, não se pensava no potencial do homeschooling vis-à-vis, por exemplo, o uso das mídias digitais, que, quando bem empregadas, podem facilitam o trabalho educacional conjunto entre família e escola. É por isso que ambas as leis merecem interpretação finalística e sistemática, à luz (i) da Constituição da República, que não veda a educação domiciliar (art. 205 e ss.); e (ii) de tratados e convenções internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 26.3) e o Pacto de São José da Costa Rica (art. 12.4), com base nos quais a prioridade na escolha do tipo de instrução que será ministrada aos filhos e filhas pertence aos responsáveis pelas crianças.

O homeschooling nem sempre é a melhor solução. É provável que, na maioria dos casos, a matrícula e frequência em escolas seja o mais adequado para a criança. Mas daí não se pode concluir que não possa ser opção em alguns casos. Quer-se destacar aqui, a importância de se reconhecer o fenômeno fora da lógica da responsabilização punitiva. O Estado brasileiro não pode responder a um pai dedicado, que, diante de reiteradas frustrações com o ensino tradicional, resolve educar sua filha em casa, com o Direito Penal. Já temos suficientes criminosos de verdade no Brasil; não precisamos inventar novos.

É preciso regular o homeschooling. É preciso identificar-lhe condições de admissibilidade constitucional. Pode-se pensar, a título de sugestão ao STF, em algumas condicionantes para o como (o quando também é tema essencial): (i) primeiro, a criança deve estar matriculada na rede regular de ensino — ainda que sem obrigatoriedade de frequência; (ii) ela deverá se submeter a avaliações periódicas, preparadas por equipes pedagógicas da rede regular; (iii) pode-se pensar num controle, físico ou digital, para aferir o material escolar que está sendo utilizado, consoante conteúdos mínimos fixados para o ensino fundamental2; (iv) a família que optar pelo homeschooling pode ser objeto de visitas do Conselho Tutelar direcionadas a esse foco; (iv) pode-se exigir a participação regular da criança em projetos acadêmicos e atividades esportivas oferecidas pela escola. Quanto a este último critério, vale salientar que homeschooling não se confunde com o isolamento social, tal como indicam estatísticas do documento Condition of Education,3publicado pelo Centro Educacional dos Estados Unidos.

Sejamos realistas: o homeschooling já existe no Brasil. Regulamentá-lo — inclusive pela fixação de parâmetros pelo STF — é trazê-lo a público. É evitar longas judicializações individuais, com seus custos e seus casuísmos. É atuar para que a educação que está dentro de nossas possibilidades caminhe, com alguma segurança, em direção à educação de nossos sonhos.

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Homeschooling no Brasil: entre o idealismo e a realidade constitucional

Ana Luiza Calil
Daniel Capecchi

A educação tem seu ponto de partida regulatório na própria Constituição da República. O julgamento do RE 888815 pelo STF, que discute a licitude do ensino domiciliar, foca-se nos limites interpretativos do art. 205 da Constituição, sobre os limites da relação entre Estado e Família quanto ao dever de educar. O art. 205 é o abre alas de um complexo conjunto de dispositivos constitucionais, e normas deles derivadas, que compõem o sistema de educação do país. O sistema normativo que regulamenta a Constituição não pode e nem deve ser negligenciado no que tange à análise da possibilidade de permitir o ensino domiciliar.

Alerta-se, desde já, que a visão aqui defendida não é pela proibição completa da educação domiciliar. A questão central, entretanto, é que o reconhecimento da Repercussão Geral alça a decisão judicial a um patamar relevante no contexto social, cuja interpretação a ser aplicada afeta um setor tão sensível e complexo que nem mesmo foi submetido a audiência pública na Corte. O alerta, portanto, é que a decisão de caráter erga omnes do STF pode carecer do embasamento técnico suficiente, de docentes, pedagogos e outros profissionais capacitados para estabelecer uma regra geral. Assim, entende-se que a opção mais precavida seria a análise concreta de cada caso judicializado do ensino domiciliar, permitindo que, ao apreciar o tema, o Poder Judiciário possa fazer uma análise mais coerente e tecnicamente embasada das questões em jogo.

A Constituição, ao definir diretrizes e valores, partiu de uma posição que não pode ser considerada neutra do ponto de visto do ensino. Tanto é que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) fixa como princípios do ensino o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, o respeito à liberdade e apreço à tolerância e a consideração com a diversidade étnico-racial. Tais princípios não se desenvolvem como mero discurso nas salas de aula: o ambiente escolar se estrutura pela proposta pedagógica desenvolvida em cada unidade de ensino, por docentes capacitados para tal fim.

Em linha contrária, um dos argumentos de defesa do ensino domiciliar seria o da autonomia familiar e da liberdade de educar seus filhos à sua maneira. Em face da inexistência de escolas que atendam suas crenças, valores ou convicções, as famílias poderiam optar por educar seus filhos em casa. No entanto, conforme ressaltado, essa estrutura argumentativa parte do pressuposto de uma neutralidade não absorvida pelo sistema constitucional brasileiro.

O argumento, muito forte em tradições constitucionais de cunho liberal, nas quais as famílias são um espaço quase que imune à interferência estatal, parece ter pouca relação com a Constituição de 1988. Nossa Constituição, em diversos dispositivos, assume uma posição segundo a qual educação não tem apenas uma função técnica, mas, igualmente, de formação para a cidadania, de compartilhamento de valores comuns e do pluralismo de ideias, de acordo com o disposto nos artigos 205, 206 e 210 da mesma.

Outro argumento utilizado a favor do ensino domiciliar seria o do direito à educação das próprias crianças. Diante da crise do ensino público e dos altos valores cobrados para que se tenha acesso à educação de qualidade, a solução seria permitir que os pais pudessem educar seus filhos. O argumento faz sentido, desde que não se dê atenção às condições do Brasil. Qual a real probabilidade de uma família, que não tem quaisquer condições de pagar o ensino privado, ter formação suficiente para educar seus filhos?

Em regiões nas quais prevaleça perspectivas de mundo excludentes da autonomia de determinados grupos vulneráveis, a educação domiciliar pode servir para restringir ainda mais o acesso de tais grupos a perspectivas de mundo que possam emancipá-los. Nessa linha, a suposta afirmação discursiva do direito à educação poderia ser sua negação prática.

Do ponto de vista real, em um país tão desigual quanto o Brasil, parece que o uso da educação domiciliar pode ser mais restritivo ao direito à educação do que, efetivamente, promotor. Afinal, se o cenário é de escolas que não conseguem oferecer condições mínimas para os alunos presentes em seu espaço físico, qual a chance de que elas consigam fiscalizar o que ocorre para além de seus muros? Parâmetros para o ensino domiciliar que exijam do poder público a aplicação de testes periódicos, fiscalização do conteúdo lecionado em casa e da sua aderência ao currículo definido pelo Ministério da Educação, certamente geram custo para o Estado — o que não pode ser negligenciado em um cenário de corte de gastos justamente na educação.

A despeito de todos esses argumentos, não negamos a possibilidade de que a educação domiciliar seja necessária ao direito à educação em circunstanciais especiais. Por exemplo, em situações excepcionais, pessoas com deficiência podem ter melhores condições de aprendizado em casa — muito embora a demanda por inclusão escolar parece ser bem grande dentro do próprio grupo. O que nos opomos é a ideia de que seja possível criar regras gerais para a educação domiciliar a partir de parâmetros pouco conectados com a realidade brasileira e com as capacidades institucionais do próprio Supremo Tribunal Federal.

Via Jota

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