A Economia de Base Comum ou Commons-based economy

Escola Schumacher Brasil
Escola Schumacher Brasil
8 min readJan 23, 2019

Esse “nós” que somos não é o que produzimos em comum, não é o que criamos e organizamos em conjunto, mas é aquilo que nos permite existir.” — Antonio Negri e Judith Revel

O Comum(ns)

A forma usual que ouvimos falar sobre “os Comuns” é na publicação de Garret Hardin, “A tragédia dos Comuns” (ou, do título original em inglês, The Tragedy of the Commons, de 1968). Seu ensaio é muito conhecido e amplamente usado para retratar que quando múltiplos indivíduos — atuando de forma independente e orientados por interesses próprios — compartilham recursos, inevitavelmente estes recursos são excessivamente explorados e destruídos. A ideia básica seria a de que sempre existirá alguém mais ganancioso que vai arruinar a harmonia coletiva dos recursos usados de forma comum.

Hardin, no entanto, se limitou a um único cenário e, portanto, fez algumas suposições controversas. Em primeiro lugar, ele assumiu que pessoas não são capazes de conversar e resolver seus conflitos e/ou confiar umas nas outras. Segundo, ele postulou que pessoas agem somente em interesses próprios racionais e imediatos. Terceiro, ele se referiu apenas ao acesso completamente aberto, em vez de recursos gerenciados em comum. Ele também afirmou que todas as pessoas sempre querem maximizar seu lucro; no entanto, esse comportamento ganancioso pode, na realidade, ter se iniciado depois da criação da propriedade durante o “cercamento legal”, que destruiu o espírito coletivo de compartilhamento de recursos. Por fim, ele ofereceu apenas duas soluções: privatização (a criação da propriedade) ou regulação (pelo Estado e órgãos regulatórios).

De acordo com Antonio Negri, a propriedade começou quando um indivíduo se apropriou de algo do comum (por exemplo, um pedaço de terra) e disse “isso é meu”, expropriando aquilo de todos os outros. Deste ponto em diante a ideia de propriedade estabeleceu uma luta desleal entre aqueles que detém e os que não detém o controle.

A questão da democracia moderna: dado que a propriedade privada gera desigualdade, é como inventar um sistema político onde tudo pertence a todos, entretanto não pertence a ninguém?” — Antonio Negri e Judith Revel

Na segunda solução, o Estado toma posse daquilo que pertence a todos e a ninguém, pelo uso de representação política, delegação, força, regulação, legislação e gerência, ou seja, há criação de “recursos públicos”. Portanto, há uma contradição: estes recursos que “não pertencem a ninguém” passam a pertencer ao Estado.

A apropriação privada é normalmente garantida e legitimada pela apropriação pública, e vice-versa.

Elinor Ostrom diz que a visão dualística que coloca “O Mercado” e “O Estado” é um pensamento muito limitado. A melhor ideia, na sua opinião, é permitir a diversidade e fazer com que ela floresça através da autogovernança das pessoas; e, de fato, compreender que as pessoas podem tratar de suas próprias questões. No conceito denominado Comuns não há a necessidade do intermediário (público ou privado) para que as pessoas administrem seus recursos e conflitos. Na obra-prima de Elinor Ostrom, Governing the Commons (em livre tradução “Governando o Comum”), ela oferece alguns exemplos de como e porque os Comuns funcionam bem em algumas situações e não em outras. Seu livro é um grande aliado para quem quiser explorar esses exemplos.

Os ComuNS

O conceito Comuns não se refere apenas a recursos: são recursos, a comunidade, as regras e normas particulares daquela comunidade para a administração daqueles recursos. De acordo com David Bollier, “os Comuns é principalmente sobre construir sistemas funcionais para lidar com necessidades do dia a dia fora do Mercado ou do Estado”, onde tudo é orientado coletivamente por alguns valores centrais: participação, inclusão, equidade, controle de-baixo-para-cima, inovação baseada na comunidade e responsabilidade. Neste sistema, poder plano, descentralizado e distribuído de forma mais horizontal é uma maneira de endereçar questões do grupo de forma direta. Assim, este formato permite menor dependência — ou até nenhuma! — de instituições privadas hierarquizadas, controladas por uma minoria de elite, ou da esperança em um governo benevolente. Desta forma, todos têm controle e ninguém o tem ao mesmo tempo; todas as decisões são feitas pelo grupo, praticadas e resolvidas pelo grupo.

Tradicionalmente, “os Comuns” é um termo para se referir a recursos compartilhados e governados por um grupo de pessoas — seja um grupo pequeno, no nível de uma comunidade local ou no nível global, com fronteiras bem definidas, com fronteiras pouco claras ou com fronteiras não-definidas — sujeito a dilemas sociais particulares, que o próprio grupo precisa cuidar em conjunto, e não através de um poder central. De acordo com Rifkin, este conjunto de recursos administrados democraticamente e usados coletivamente demandam inevitavelmente que decisões, sanções, punições, normas e protocolos evoluam para se tornarem códigos de governança.

Para Ostrom, os Comuns auto-organizados necessitam de ações coletivas fortes — esforços voluntários de dois ou mais indivíduos com o mesmo objetivo — combinadas com mecanismos de autogovernança — arranjos consistentes, mútuos e abertos –, assim como um alto grau de capital social pelas partes interessadas.

No início, os Comuns eram entendidos como um conjunto de recursos físicos — como, por exemplo, terra, água, atmosfera, floresta, ruas, praças, ferramentas etc. –, mas cada vez mais coisas intangíveis vão sendo adicionadas a ele, como conhecimento, linguagem, dinheiro, informação, assistência a crianças e idosos etc.

Também podemos vê-lo através da lente de Ivan Illich e definí-lo como o espaço mais sensível e sensitivo, onde pessoas criam e negociam seu próprio sentido das coisas, “governados” de uma maneira mais informal — como Illich gosta de dizer, o “domínio vernacular”.

Commoning

“Uso a palavra commoning porque quero um verbo para o Commons.”

Peter Linebaugh, o primeiro a descrever commoning

Entendo commoning como a prática cotidiana de gerenciar um bem comum. Isso significa que nós todos, cidadãos, cuidamos uns dos outros e tentamos entender juntos que a propriedade não é uma coisa individual. Na verdade, trata-se de encenar uma história diferente, com responsabilidades compartilhadas reais por tudo que temos em comum, desprendendo do comando governamental ou do setor privado, em todos os aspectos de nossa vida.

O conceito de commoning também traz à tona as ideias contidas no artigo Enlivenment, por exemplo, quando Weber fala sobre liberdade individual e autonomia, sendo completamente correlacionada com a liberdade e autonomia da comunidade, que exploramos nos capítulos anteriores.

“Organizar uma comunidade entre agentes humanos e não humanos, de acordo com o princípio do Comum, significa aumentar a liberdade individual, ampliando a liberdade da comunidade. Ambos se expandem juntos e mutuamente, um pelo outro.” — Andreas Weber

De fato, Andreas Weber está se referindo a economia baseada no Comum como a economia do Enlivenment (ou economia avivada). Ele compara os Comuns com os sistemas de natural commoning (padrões ecológicos da “governança” da Natureza), que em sua opinião reproduzem os mesmos elementos, tais como:

- interbeing (ou “interser”);

- produção de recursos materiais ligados a um propósito e significado comunitário;

- reciprocidade constante;

- Zero resíduos — (recursos são trocados/comercializados como um presente para a produção de outro recurso, num ciclo circular de produção sem perdas e desperdício, onde tudo é reaproveitado no próprio sistema);

- poder e oportunidades descentralizados (por exemplo não há um controle dos meios de produção por nenhuma parte);

- sem propriedade (sem privatização de nada, sem um “dono”, o que significa pertencer a todos que participam e não impedir os direitos e a privacidade individual).

Weber desencadeia a ideia de um entendimento relacional diferente entre nós, baseado em respeito mútuo e mais entrelaçamento com a vida. “Ao contrário da economia de mercado, os Comuns não são apenas produzir e distribuir recursos, mas construir relacionamentos significativos para um lugar, para a Terra e para o outro”. O “Comuns”, portanto, não são apenas um nome para um regime econômico ou ecológico, mas também uma maneira política de reorganizar as relações com todas as dimensões da vida.

O Comum

Apesar de Antonio Negri se inspirar positivamente no conceito do Comum, ele acredita que precisamos de uma revisão desse paradigma. Assim, ele usa o Common — sem o “S”, o Comum — porque “Os Commons” refere-se a espaços pré-capitalistas compartilhados que foram perdidos com o advento da propriedade privada. Portanto, o Comum não é sobre um retorno ao passado, mas sobre um novo desenvolvimento. É um processo. “Somos esse Comum: fazer, produzir, participar, mover, compartilhar, circular, enriquecer, inventar, recomeçar”.

Para ele, a gestão do Comum “não consiste mais em definir uma forma de contrato que faz com que tudo, pertencente a todos, não pertença a ninguém. Não: tudo, sendo produzido por todos, pertence a todos”. Por produção entende-se uma produção social mais ampla — não apenas econômica — que envolve a produção de bens materiais e de comunicações, relacionamentos e formas de vida — ou a produção de significados e subjetividade, ou seja, a produção de cultura.

O contemporâneo Comum, de Negri e Hardt, fala sobre isso: o encontro de singularidades em todos os tipos de redes, produzindo novas formas de participação política comum e democratizante.

O Comum, de uma maneira mais ampla, não pertence a ninguém, já que não o criamos. O Comum é a nossa terra, o nossos valores, é o que temos sob nossos pés: nossa natureza, nossa identidade. O Comum realmente não nos pertence: ser é não ter.

Nesse contexto, Hardt e Negri desenvolvem um conceito dialético de revolução reformista para manifestar a autonomia da “multidão” e criar uma sociedade em uma base comum, nos seguintes termos:

- Infraestrutura física: água potável, fatores básicos da vida, condições sanitárias, eletricidade, acesso a alimentos baratos e outras necessidades básicas à vida;

- Infraestrutura social e intelectual: ferramentas linguísticas, ferramentas afetivas para construir relacionamentos, ferramentas para pensar;

- Camada física: incluindo o acesso a redes de comunicação com e sem fio, como a internet;

- Camada lógica aberta: por exemplo, códigos abertos e protocolos;

- Camada de conteúdo aberta: como trabalhos culturais, intelectuais e científicos;

- Pesquisa científica aberta;

- Fundos para atender aos requisitos tecnológicos de pesquisa avançada: não localizados em organizações com fins lucrativos;

- Infraestrutura imaterial: liberdade de movimento, liberdade de migração, liberdade de permanecer em um só lugar, liberdade de espaço;

- Rendimento mínimo garantido, em escala nacional ou global, pago a todos, independentemente do trabalho;

- Mínimo básico de vida;

- Autonomia, liberdade e controle sobre seu próprio tempo;

- Poder de construir relações sociais e criar instituições sociais autônomas;

- Democracia participativa em todos os níveis de governo para permitir que a multidão aprenda a cooperação social;

- Auto-organização.

Como Negri e Hardt, Jeremy Rifkin também destaca a importância da internet para alavancar a produção entre pares próximos, o acesso universal e a inclusão social. Segundo ele, a Internet “trouxe o Comum para fora das sombras” e “é a alma gêmea tecnológica de um Comum colaborativo emergente”.

Esse texto foi retirado de um trecho do livro “Economia Colaborativa — Recriando Significados Coletivos” (2018) de Felipe Cunha. Disponível para compra em: https://www.bambualeditora.com/product-page/economia-colaborativa-felipe-cunha

Sobre o autor deste artigo:

FELIPE CUNHA é consultor de mudança organizacional, nova economia e facilitador de processos colaborativos. Atualmente é assessor técnico do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável. Autor do livro “Economia Colaborativa — recriando significados coletivos”. Mestre em Economia para Transição (Economics for Transition) pela Schumacher College (UK) e formado em Geografia pela PUC-Rio.

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