Depois do Vírus Por Stephan Harding

María Eugenia Salcedo
Escola Schumacher Brasil
6 min readMay 4, 2020
Stephan Harding, no pôr-do–sol, fotografado em live da Schumacher College Brasil. Foto: María Eugenia Salcedo

Para onde estamos indo depois do vírus? O que há do outro lado? A primeira coisa a dizer, com base em minha compreensão científica, é que provavelmente não haverá um “depois do vírus”, pois assim como o vírus da gripe e do resfriado, parece provável que a Covid-19 vai continuar por aí por um bom tempo.

Então, como vamos viver com o vírus depois de conseguirmos algum tipo de controle sobre ele e termos ultrapassado os piores efeitos desta pandemia? Charles Eisenstein escreveu uma análise profunda destes questionamentos no seu ensaio recente e leitura essencial “A Coroação” [disponível aqui]. Ele identifica dois principais caminhos divergentes, os quais podemos caracterizar como totalitarismo ou compaixão.

Nesta altura, já sabemos o que é totalitarismo. Pense nos exemplos óbvios: Hitler, Stalin, Mao e hoje em dia, felizmente, por enquanto, menos perigoso, mas definitivamente na mesma linha: Trump, Oban, Erdogan, Bolsonaro e outros. O perigo é que o vírus dê para estas pessoas a desculpa para controlar todos os nossos movimentos e escutar cada uma das nossas palavras. Não me leve a mal. A tática atual de confinamento e distanciamento social estão funcionando bem contra o vírus e nós devemos segui-las à risca pelo tempo que a ciência sugira que o façamos.

Mas nós não queremos manter distância social e nos isolar em momentos que isto não seja de fato necessário, bem como não queremos ser rastreados quando isto não for necessário. No entanto, uma vez que as práticas de vigilância, como as impostas pelo governo chinês (e no Ocidente por Google e similares), já existam há algum tempo para estes fins, vamos nos acostumar com elas, assumindo-as como o novo normal? Provavelmente, e os totalitários esperam que sim. Será que eles nos conduzirão a uma nova tirania na qual a tecnologia é utilizada para nos manter temerosos, isolados e brutalizados, longe uns dos outros e da natureza? Esse inferno seria o paraíso deles.

Como vimos, a alternativa é compaixão, então como isso se dá? Bem, talvez a forma mais fácil e moderna de expressá-lo é que isso é ‘Gaiano’. Novamente está aí essa palavra — ‘Gaia’ — a deusa da Grécia antiga, Mãe de Tudo, que se enrolou no formato da bola da Terra no início dos tempos para se tornar uma jóia deslumbrante da vida e de significado. Gaia, como Mãe Terra, indica uma concepção que a nossa cultura como um todo odeia e destrói há cerca de 2.000 anos. Aqui está a palavra que representa os excêntricos hippies, a terra da fantasia e o pensamento desordenado. Errado. Gaia é a palavra mais sagrada e saudável que poderíamos ter agora, porque a cura para os nossos males é redescobrir o sagrado como terreno e saudável e Gaia é a grande contribuidora para este novo sagrado. Sou um cientista e não tenho vergonha de falar em alto e bom tom sobre essa Gaia essencialmente poética, mesmo que tenham me feito sentir quão inferior é isto durante minha educação científica, sem aqui atribuir culpa aos meus excelentes professores — estamos todos, em grande medida, cegos à Gaia por causa das visões anti-Gaianas da nossa cultura.

Então o caminho da compaixão requer que nós redescubramos Gaia. O que isso implica, esta compaixão Gaiana? Primeiro, você precisa aprender a ouvir à música dos pássaros. O canto dos pássaros, especialmente com os quais somos presenteados pelos pássaros na Europa, tem a capacidade mágica de re-despertar a admiração. Portanto, para sermos compassivos, devemos ter um senso de admiração diante da natureza, diante de Gaia. Devemos aprender a ouvir profundamente ao som do vento nos seus galhos, a correnteza da água em seus rios e o quebrar das ondas nas costas de seus oceanos. Devemos aprender a pensar poeticamente diante de Gaia, pois, tanto quanto ela ama a ciência, ela ama a poesia mais do que tudo. Você consegue praticar isso? Você precisa praticá-lo, porque a compaixão aumenta com a prática. Você deveria tentar. Seu coração começa a abrir, a sua cabeça a clarear e você simplesmente começa a se sentir feliz, ao ser simplesmente você dentro da grandeza profunda e rodopiante do nosso maravilhoso planeta, flutuando pelo espaço em uma missão para aumentar a compaixão e a sabedoria. Esse é um caminho e tanto a seguir e, se o fizéssemos, viveríamos em pequena escala, comunidades locais profundamente enraizadas na natureza selvagem ou livre, cada uma vivendo de maneira consideravelmente simples, com artefatos feitos, principalmente, de materiais locais e pelas próprias pessoas. Eu já vi lugares assim na cultura tibetana. Eles abrem a tua alma para Gaia. Haveria comércio e intercâmbio cultural entre comunidades em uma escala modesta, implicando uma mistura de viagens lentas principalmente, mas também uma quantidade limitada de viagens rápidas. Desta forma seria fácil cortar o avanço de um vírus pandêmico em potencial, caso surgisse em qualquer uma das comunidades. Haveria tecnologia de ponta, mas cada elétron seria visto como um grão de sacralidade transformada em energia. Assim, toda a nossa tecnologia seria tratada com o maior respeito e teríamos implementado ciclos fechados de reciclagem para todos os seus átomos e moléculas. Todos e todas teriam acesso a boa comida, água, cuidados médicos gratuitos e, provavelmente, algum tipo de apoio básico da comunidade global em geral. Diferentes comunidades ao redor do mundo estariam em contato próximo via Internet, abolindo o nacionalismo e o paroquialismo para sempre. Todas as pessoas ajudariam no cultivo de alimentos para si e a sua comunidade em jardins no estilo permacultura onde crescem alimentos nutritivos enquanto oferecem refúgio para a biodiversidade.

E, talvez o mais importante, o principal objetivo da vida de todos e todas seria descobrir e desenvolver sua própria espiritualidade da natureza, sua própria ecosofia (sabedoria ecológica), como diria, meu querido amigo e professor, Arne Naess. Em uma sociedade assim, as coisas ficariam melhores muito rapidamente, porque todos e todas estariam trabalhando para transformar o mundo ao seu redor em um paraíso Gaiano.

Então, o que é mais provável que aconteça, dado o atual estado psicológico global da humanidade, a tirania ou a compaixão? Infelizmente, não vejo o segundo acontecendo tão cedo. Mas devemos trabalhar para isso, dentro de nós e no mundo mais amplo. O mundo está uma bagunça, e fomos enviados aqui para ajudar a limpá-lo. A visão de Gaia como um grande planeta vivo (demonstrado ser um organismo auto-regulado por meu amigo e professor, James Lovelock) pode nos ajudar — mas só funcionará se Gaia for mais do que uma ideia intelectual. Ela deve implicar em mudanças internas radicais — uma transformação da consciência de maneira que todos e todas possam ver, ouvir, provar, sentir e adorar Gaia com sua maravilhosa capa de biodiversidade na terra e em seus oceanos, cheios de todo tipo de vida aquática.

O primeiro caminho — a tirania — é atualmente o mais forte e haverá uma poderosa atração nesse sentido sob o pretexto do vírus. Devemos resistir com todo o nosso coração e toda a nossa compaixão, porque é um caminho cego à Gaia. Para fazer isso, devemos continuar ponderando o significado da nossa vida em Gaia, continuar encontrando respostas mais ricas e energias mais profundas para contribuir com o que pudermos, nos mantendo felizes, seguros/seguras e acolhidos/acolhidas. Para nos orientarmos na direção da compaixão, precisamos nos dedicar a tornar-nos sábios em Gaia. Passar tempo na natureza ouvindo profundamente o canto dos pássaros — essa é uma boa forma de começar.

Vista da janela na hora da tradução deste texto.

Stephan Harding é doutor em ecologia pela Universidade de Oxford e pesquisador em Ecologia Profunda na Schumacher College, em Dartington, no Reino Unido. Ele é autor de “Terra Viva: Ciência, Intuição e a Evolução de Gaia” e editor de “Grow Small Think Beautiful: Ideas for a Sustainable Planet from Schumacher College”. Ele está atualmente cumprindo a quarentena com sua família na Schumacher College, na Inglaterra.

O texto de Stephan Harding foi publicado originalmente no blog da Schumacher College na segunda-feira dia 20 de abril de 2020 e está disponível aqui.

Este artigo foi traduzido por María Eugenia Salcedo com revisão de Sandra de Paula e Luis Gabriel Vasconcelos.

Fazer uma tradução do inglês implica a escolha de gênero no português. Optei por incluir, quando possível, uma forma feminina e masculina, praticando assim, em um outro nível, uma visão Gaiana da nossa realidade.

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María Eugenia Salcedo
Escola Schumacher Brasil

Sou artista, educadora, mediadora, gestora cultural, professora de Lu Jong (yoga Tibetana de cura) dentre outras coisas. Para limpar o olhar, gosto de traduzir.