Se a natureza fosse infinita e seu uso como mero recurso não tivesse consequências, o sistema econômico atual seria nosso sonho ideal?

Fernanda Rocha Vidal
Escola Schumacher Brasil
10 min readMay 3, 2020

Nos grupos que se dedicam a repensar a economia e a questionar o pressuposto do crescimento econômico como algo bom em si mesmo, é comum que os limites da natureza sejam o ponto de partida para as propostas de mudança. Afinal, buscar o crescimento infinito em um planeta com recursos finitos não faz muito sentido, certo?

A realidade nos mostra que não se trata apenas de fazer sentido ou não. Geração após geração, vemos a narrativa do crescimento sendo defendida como a melhor solução para as nações, independente de suas particularidades. Proponho então um exercício: imagine que os recursos naturais são infinitos e que o consumo exacerbado para a produção de toda sorte de bens e serviços não traga consequências ao mundo natural (isso, sem nem entrar na conversa sobre a natureza ser muito mais do que mero recurso). Nesse cenário, poderíamos nos perguntar: por que então não crescer sempre, e o mais rápido possível? Com o “problema” da natureza fora do caminho, como pensam aqueles que querem explorar outros planetas como fonte de matérias primas ou que sugerem que as novas tecnologias serão sempre capazes de resolver a situação, a sociedade ficaria desimpedida para buscar meios de crescer sempre mais, e mais rápido.

Mas o que queremos com o crescimento econômico? Ou melhor, o que, de fato, desejamos quando almejamos crescer?

Para ajudar a iluminar esta pergunta, recorro ao economista e filósofo chileno, Manfred Max-Neef, que defendia a importância de se entender o que está por trás dos indicadores de sucesso que escolhemos medir como sociedade. Ele dizia:

“a imagem que temos de desenvolvimento é a imagem ofertada por seus indicadores. Se eles são inadequados, não somente nossa percepção será distorcida, como também nossas ações serão contraprodutivas”.

Nas sociedades ocidentais modernas, o indicador mais comum para medir o desenvolvimento de um país é o PIB, ou Produto Interno Bruto. Para isto, ele considera o valor total de todos os bens e serviços finais recém-produzidos dentro das fronteiras de um país durante um ano: carros, geladeiras, armas, livros, pão, o serviço prestado pelo banco, o eletricista, a manicure…mas só o que for produzido durante o ano corrente: a venda de um carro usado, por exemplo, não entra na conta. Outra característica do PIB é incluir bens produzidos dentro de um país mesmo que os lucros saiam de suas fronteiras, como acontece nas empresas multinacionais que enviam dividendos para suas sedes em outros países, ou mesmo recursos enviados para paraísos fiscais.

O PIB, no entanto, não lida com diversas questões essenciais para a economia de uma nação, como por exemplo:

  • ele não inclui atividades que são essenciais para a sociedade, mas que não são monetizadas e não envolvem comércio, como o trabalho doméstico, a economia do cuidado (cuidado de crianças, idosos, enfermos, pessoas com necessidade especiais) e o trabalho voluntário. Também não são consideradas na composição do PIB os “serviços” gratuitos oferecidos pela natureza (ar, água, solo, biodiversidade, fotossíntese…). Na linha de tornar visível partes como essas que compõem a economia, a economista futurista Hazel Henderson tornou-se conhecida por sua representação de modelo econômico em formato de bolo. Nele, o sentido da palavra economia é preservado (“ cuidado com o nosso lar comum”), e revela como a perspectiva do PIB monetizado é limitada em representar a nossa realidade:

Fig 1. O modelo expandido que representa a economia de Hazel Henderson. O bolo de três camadas com glacê (Henderson, 1999: 11). *figura traduzida para o português por Lala Deheinzelin.

  • Além de invisibilizar importantes camadas da economia, o PIB também não reflete as desigualdades presentes dentro de um país, especialmente, quando falamos sobre PIB per capita. No podcast What’s wrong with GDP? (O que está errado com o PIB?) a economista Diane Coyle cita aspectos problemáticos do indicador nesta linha, como o seu descolamento do mundo do trabalho atual e a dificuldade de medir as diferenças salariais de uma nação, por exemplo. Seguindo a metáfora do bolo, o PIB nos mostra quanto o “o bolo cresceu”, mas não informa para quem e como foi distribuído.
  • Por fim, chamo atenção para um aspecto do PIB (e da noção de crescimento econômico) que considero crucial para o entendimento de suas limitações. Ambos não fazem distinção entre o que seria uma atividade econômica “boa” e “má”. E, no caso do PIB, ele não considera em sua composição nenhuma questão social. Para ilustrar esses pontos, segue um trecho do discurso do senador americano Robert Kennedy, que em 1968 já pontuava:

“Por muito tempo, parece que abrimos mão de nossa excelência pessoal e dos nossos valores comunitários à mera acumulação de bens materiais. Nosso Produto Interno Bruto agora ultrapassa US$ 800 bilhões de dólares por ano, mas esse Produto Interno Bruto — se julgarmos os Estados Unidos da América por isso — contabiliza a poluição do ar, a publicidade de cigarros e as ambulâncias que limpam nossas rodovias da carnificina.

Contabiliza as fechaduras especiais para nossas portas e as prisões para as pessoas que as arrombam. Contabiliza a destruição de nossas florestas de sequoia e a perda de nossa maravilha natural em nome de uma expansão caótica. Contabiliza as ogivas nucleares e os carros blindados usados pela polícia no combate à baderna em nossas cidades. Contabiliza o rifle de Whitman, a faca de Speck e os programas de televisão que glorificam a violência com o objetivo de vender armas de brinquedo para nossos filhos.

No entanto, o Produto Interno Bruto não contabiliza a saúde de nossos filhos, a qualidade da educação ou a alegria que experimentam quando brincam. Não inclui a beleza de nossa poesia ou a força de nossos casamentos, a inteligência de nosso debate público ou a integridade de nossos funcionários públicos. Não mede nem a nossa inteligência, nem a nossa coragem, nem a nossa sabedoria, nem a nossa aprendizagem, nem a nossa compaixão ou a nossa devoção ao País.

Mede tudo, exceto o que faz a vida valer a pena. E pode nos contar tudo sobre a América, exceto o porquê de termos orgulho de sermos americanos.”

De fato, em países como os Estados Unidos, chamados desenvolvidos, percebemos que existe pouca correlação entre crescimento econômico e bem estar, medidos em termos pessoais e subjetivos ( como o nível de felicidade do indivíduo) ou em termos de expectativa de vida, em relação a um valor mínimo de renda. O que quer dizer: depois que necessidades materiais básicas são garantidas, crescer mais, economicamente, não confere necessariamente mais bem-estar à população. Para ilustrar isto, o primeiro gráfico a seguir mostra, ao longo dos anos, o percentual de pessoas que se declarou feliz nos EUA, em relação ao crescimento do PIB per capita no mesmo período.

Fonte: “How Much Can Money Buy Happiness? Is the Debate Over for the Easterlin Paradox?”, Christo Albor, de 2009

O segundo gráfico mostra o percentual médio de satisfação com a vida, e o PIB per capita de cada país no mesmo ano. Nele, podemos ver que, a partir de um determinado valor (US$10 mil/ano), o aumento do PIB per capita não resulta em uma avaliação de satisfação significativamente maior.

Fonte: “How Much Can Money Buy Happiness? Is the Debate Over for the Easterlin Paradox?”, Christo Albor, de 2009

No terceiro gráfico, temos a expectativa de vida, em anos, para diferentes países, de acordo com o PIB per capita (com resultados semelhantes ao acima). Até um valor de PIB per capita de US$ 5.000, a expectativa de vida cresce exponencialmente; após este valor, a melhoria na expectativa de vida passa a ser muito menor.

Fonte: “How Much Can Money Buy Happiness? Is the Debate Over for the Easterlin Paradox?”, Christo Albor, de 2009

Assim, entendendo a economia como um processo vivo cujo objetivo deve ser determinado pela sociedade e cujos indicadores devem ser definidos a partir deste(s) objetivo(s), fica mais clara sua dimensão política e, também, a constatação de quão limitado é o nosso sistema atual: nos falta criatividade; a capacidade de sonhar um mundo melhor.

Começar a rever nossas crenças no crescimento econômico parece ser um bom caminho. O imperativo do crescimento carrega consigo alguns valores sustentados pela nossa sociedade como: a competição, a ganância e a necessidade de acumulação. Segundo Max-Neef, para substituirmos esses valores pela solidariedade, compaixão e colaboração, precisamos de “uma mudança de paradigma que implica se distanciar da ideia de crescimento a qualquer custo”.

Assim: quais seriam nossos objetivos comuns como sociedade? Quais indicadores fariam sentido para representar esses sonhos?

Essa reflexão tem intrigado pesquisadores e ativistas no mundo todo. Já existem vários modelos e possíveis caminhos, como Indicadores de Felicidade Interna Bruta, Índices de Felicidade, Índices de bem estar, modelos que integram os limites ambientais aos indicadores sociais (como da Economia Donut proposto por Kate Raworth e o trabalho também nessa linha desenvolvido pelo economista Daniel O’Neill), sugestões de economistas renomados como o relatório elaborado em 2009 por Joseph Stiglitz, Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi (traduzido no livro Mismeasuring our lives). Mas, não quero pular aqui para possíveis soluções, proponho ficarmos um pouco mais no universo das boas perguntas e reflexões.

Voltando para elas, se riqueza e crescimento econômico não são sinônimos de bem estar, é possível pensar em desejos ou necessidades básicas comuns a todos os seres humanos? Sobre isto, Max-Neef afirmou em seus estudos que “as necessidades humanas são finitas, poucas e classificáveis”. Talvez não somos, enquanto seres humanos, consumidores desenfreados, mas podemos viver, atualmente, uma distorção do que são e do que satisfaz nossas necessidades. Ele propôs uma tabela para essas necessidades, classificadas em 9 categorias de necessidades básicas (subsistência, proteção, afeto, entendimento, participação, ócio, criação, identidade, liberdade) que podem ser trabalhadas em 4 categorias existenciais (ser, ter, fazer, interagir), apresentando também o que seriam os seus “satisfadores”:

Fonte: Desenvolvimento em Escala Humana, Manfred Max-Neef

Max-Neef continuou sua análise dos satisfadores que, segundo ele, podem mudar ao longo do tempo e de acordo com cada sociedade, e alertou que poderiam existir aqueles falsos satisfadores (por exemplo, quando compramos um bem tentando, na verdade, obter senso de pertencimento) e também satisfadores sinergéticos, aqueles que atuam em várias categorias ao mesmo tempo. Ele dá o exemplo da amamentação: a princípio, ela cuida da necessidade de subsistência. Ao mesmo tempo, ela traz proteção, afeto e identidade. Outro conceito trazido foi o de satisfadores inibidores: aquele que cuidam de uma necessidade, mas suprimem outras ao fazê-lo. Para continuar no âmbito familiar, ele trouxe o exemplo de uma família super-protetora: ela pode atender à necessidade de proteção, mas inibir, ao mesmo tempo, as necessidades de afeto, entendimento (conhecimento), participação, identidade e liberdade. No seu estudo, ele ressaltou que a matriz é ilustrativa e não normativa, cabendo a cada sociedade, grupo ou pessoa imaginar os satisfadores que se adequariam melhor ao cenário específico. E nos sugere que:

“o esquema pode ser utilizado para diagnóstico, planejamento, análise e avaliação. A matriz de necessidades e satisfadores pode servir, em um estágio preliminar, como um exercício participativo de auto-diagnóstico para comunidades de um local específico. Através de um processo de diálogo constante — de preferência com a presença de um facilitador como elemento catalisador — o grupo poderia, gradualmente, começar a se caracterizar ao preencher cada quadrado correspondente”.

Tanto a matriz de Max-Neef quanto o bolo de Hazel Henderson nos trazem o alerta de que, embora o dinheiro possa viabilizar o atendimento de algumas necessidades humanas, muitas outras não podem ser compradas no mercado e dependem da qualidade de nossas dinâmicas sociais. Se economia é a forma como nos organizamos para gerenciar nosso lar comum, para atender nossas necessidades, medir o sucesso desta economia apenas considerando atividades monetárias (que é o que o PIB faz), ignora a maior parte de nossa experiência humana e distorce a forma como enxergamos a saúde de nossa sociedade.

Como seria uma economia baseada em cultivar formas saudáveis de atender nossas necessidades básicas tanto de formas monetárias quanto não monetárias? Como seria nossa sociedade se nossos objetivos coletivos não fossem vinculados ao crescimento da produção de bens e serviços, mas sim na qualidade da satisfação das necessidades das comunidades das quais fazemos parte?

Como seria a economia se ela fosse configurada para passarmos menos tempo fazendo trabalho remunerado e mais tempo cuidando de nossa família, da manutenção de nossas comunidades, nos dedicando à arte, à culinária, a agricultura e a outras atividades que suprem necessidades humanas básicas de forma sinergética?

Para finalizar, uma boa notícia: essa mudança de paradigma sobre o sistema econômico, seus objetivos, indicadores e o que queremos de fato crescer como sociedade não exige o exercício proposto no começo do texto, de imaginar que a natureza é infinita — parece-nos que, ao contrário, essa criação do “mundo mais bonito que nossos corações sabem ser possível”, se alinha com uma relação muito mais benéfica e regeneradora com a natureza. Mas aí já é um tema para uma próxima conversa…

Este texto foi escrito por Fernanda Vidal, com contribuições de Lúcio Proença, Caroline Busatto e Flavia Bueno, e integra os movimentos da Rede Schumacher Brasil para refletir e agir em relação à pandemia do coronavírus.

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Fernanda Rocha Vidal
Escola Schumacher Brasil

Interessada no papel que escolhemos ter como humanos na vida do nosso planeta. Mestre em Economia para Transição, Sócia da Casa Horta, Coordenadora da Casa Gaia