Economia da agrofloresta segundo Ernst Götsch

Lúcio Proença
Escola Schumacher Brasil
4 min readSep 20, 2020

Desde 2015, quando fiz meu primeiro curso sobre agroflorestas sucessionais, fiquei muito instigado com a ideia de que abundância ecológica pudesse ser o resultado de uma atividade econômica (neste caso, do cultivo de agroflorestas sucessionais e biodiversas). Trabalhando, já há alguns anos, com políticas públicas no Ministério do Meio Ambiente, observei que os debates sobre redução de danos de atividades econômicas eram muito mais frequentes do que as possibilidades de atividades, de fato, regenerativas.

fonte: SMA/SP

Desde então, passei a estudar mais sobre agrofloresta e a cultivar no quintal de casa, aprendendo, com muitos erros e acertos, como a abundância é o caminho natural dos processos da vida. Ao mesmo tempo, fui refletindo sobre os significados do cultivo de regeneração para uma sociedade onde, há séculos, prevalece a lógica da extração (da madeira, do ouro e outros minérios ou da fertilidade do solo na forma de monoculturas de cana, café, soja…).

Em 2018 tive a oportunidade de ir mais fundo nessa reflexões, investigando sobre os significados econômicos da agrofloresta no mestrado de Economia para a Transição no Schumacher College, que é uma comunidade de aprendizado na Inglaterra que trabalha a partir de uma perspectiva holística e é muito aberta a investigações deste tipo. Esta experiência resultou na dissertação “Cultivando regeneração: contribuições da agrofloresta para a transição econômica”.

Como início do trabalho de campo da dissertação, em abril de 2019, fiz um curso sobre o tema com Ernst Götsch e Fernando Rebello em Alto Paraíso de Goiás/GO. Ernst é um dos principais responsáveis pela popularização da agrofloresta no Brasil nas últimas décadas. Embora eu já estudasse a abordagem agroflorestal do Ernst desde 2015, foi neste curso que tive a chance de conhecê-lo pessoalmente. Fernando pratica a abordagem de Ernst há mais de 20 anos e coordena o Centro de Pesquisa em Agricultura Sintrópica em Alto Paraíso — Cepeas.

Ao final do curso, Ernst conversou comigo para a dissertação sobre sua visão da economia da agrofloresta. O áudio da conversa está disponível na íntegra neste link (34 minutos).

Na conversa, Ernst afirmou que precisamos mudar do atual sistema econômico baseado em extração/mineração para outro baseado, principalmente, em recursos renováveis locais. Essa filosofia também se aplica à agrofloresta: os “insumos” necessários para a agricultura podem ser produzidos in loco, assim como as florestas o fazem através da fotossíntese e de outros processos vitais, sem a necessidade de “emprestar” recursos acumulados de outras áreas.

Sua visão sobre a economia da agrofloresta abrange um entendimento holístico da relação entre fatores como tecnologia, bem-estar e propriedade da terra. Ernst discorreu sobre como os humanos têm lutado contra florestas há mais de 12.000 anos, quando, ao contrário, árvores e seres humanos podem ser grandes aliados.

Ernst falou sobre seus esforços no desenvolvimento de máquinas que permitam uma agricultura de processos, facilitando o gerenciamento de árvores e cultivos em geral. Defende a necessidade de máquinas leves, projetadas para favorecer os processos vitais, em oposição às atuais máquinas pesadas e derivadas de tecnologia de guerra, que compactam solos e espalham venenos. Para Ernst, muitas das atividades agroflorestais podem ser mecanizadas, visando facilitar o trabalho humano. Mas não todas. Atividades como poda e colheita de culturas delicadas (por exemplo, tomate) não devem ser mecanizadas. Ernst as define como “agroyoga”:

“…são atividades muito agradáveis… os momentos que são para mim de extrema criatividade, que ativam o lado direito do cérebro … não é algo que cansa.”

Ernst também prevê uma transição para uma economia em que a maioria de nossas necessidades é atendida pelas florestas. A madeira pode ser um subproduto muito abundante do cultivo de alimentos. “Ao cultivar trigo [em um sistema agroflorestal], posso produzir mais madeira do que qualquer projeto de reflorestamento”. A madeira pode ter um papel muito mais amplo na economia, não apenas em setores da construção ou celulose, mas em vários outros. Götsch afirma que esse tipo de produção sinérgica poderia nos permitir ter mais tempo livre, por exemplo, para música e outras artes.

Embora Ernst entenda que a agricultura mecanizada em larga escala seja essencial para a transição (porque ocupa atualmente a maior parte do território agrícola), defende que a agricultura é uma atividade mais adequada para os sistemas familiares de pequena escala. Em sua visão de transição econômica, Ernst vê uma grande parte da população mantendo algum nível de envolvimento saudável com a agricultura, praticando o “agroyoga”. Argumenta que todas as civilizações que concentraram a maior parte de sua população nas cidades entraram em colapso.

Ernst também falou sobre sua visão de propriedade. Ele argumentou que a terra não pode ser possuída. Defende que é nosso dever cuidá-la e passá-la enriquecida para a próxima geração, ao invés de minerada, como é comum atualmente.

Durante o curso, Ernst e Fernando citaram frequentemente o pesquisador austríaco Viktor Schauberger e o livro “Living Energies”, de Callum Coats, que traz um compilado do trabalho e das ideias de Schauberger. No livro, há uma imagem em particular que ilustra bem a lógica econômica que Ernst descreve (Figura 1): enquanto a economia da natureza leva ao aumento da acumulação de recursos (matéria, energia, informação…), a economia tecno-mecânica dissipa recursos, levando à decadência, à deterioração e, finalmente, à falência.

Figura 1- “O destino fatal”, como apresentado em Coats (2001)

De acordo com essa lógica, os processos da vida sempre evoluem para níveis crescentes de acumulação e complexidade de energia, que é a tendência que Ernst denomina “sintropia”.

Com este contexto e propostas, que desafiam a lógica econômica dominante, fui visitar agroflorestas de diferentes escalas pra ver como estas possibilidades de diferentes economias se manifestavam na prática. Os resultados estão descritos na minha dissertação e foram mais um passo nas minhas reflexões sobre como transitar para economias regenerativas a partir das lições da agrofloresta.

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Lúcio Proença
Escola Schumacher Brasil

ambientalista, servidor ambiental federal, doutorando em economia ecológica, interessado na interface entre pós-crescimento, agroecologia e agrofloresta.