Iniciação para um planeta vivo

Guilherme Lito
Escola Schumacher Brasil
22 min readNov 21, 2018

Texto escrito por Charles Eisenstein, publicado originalmente no seu site nesse link. Traduzido por mim com revisão de Carolina Bergier.

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Foto: Disponível no site Nosso Foco

A maioria das pessoas passou por alguma iniciação na vida. Com isso, quero dizer uma crise que desafia o que você sabia e quem você era. Dos escombros do colapso que se segue, um novo eu nasce em um novo mundo.

As sociedades também podem passar por uma iniciação. É isso que as mudanças climáticas representam para a atual civilização global. Não são um mero “problema” que podemos resolver a partir da visão de mundo atualmente dominante e seu conjunto de soluções, mas um pedido para habitarmos uma nova História das Pessoas e uma nova (e antiga) relação com o resto da vida.

Um elemento-chave dessa transformação é sair de uma visão de mundo geomecânica para uma cosmovisão do Planeta Vivo. Em meu último ensaio, argumentei que a crise climática não será resolvida ajustando os níveis dos gases atmosféricos, como se estivéssemos mudando a mistura num motor a diesel. Na verdade uma Terra viva só pode ser saudável — só pode permanecer viva de fato — se seus órgãos e tecidos tiverem vida. Estes compreendem as florestas, o solo, os pântanos, os recifes de coral, os peixes, as baleias, os elefantes, as pradarias de ervas marinhas, os manguezais e todo o resto dos sistemas e espécies da Terra. Se continuarmos a degradá-los e destruí-los, então, mesmo se reduzirmos as emissões para zero da noite para o dia, a Terra ainda morreria uma morte de um milhão de cortes.

Isso porque é a vida que mantém as condições de vida, através de processos mal compreendidos, tão complexos quanto qualquer fisiologia viva. A vegetação produz compostos voláteis que promovem a formação de nuvens que refletem a luz solar. A megafauna transporta nitrogênio e fósforo através dos continentes e oceanos para manter o ciclo do carbono. As florestas geram uma “bomba biótica” de baixa pressão que traz chuva aos interiores continentais e mantém padrões de fluxo atmosférico. As baleias trazem nutrientes do fundo do oceano para nutrir o plâncton. Os lobos controlam populações de cervos para que o sub-bosque da floresta permaneça viável, permitindo a absorção das chuvas e prevenindo secas e incêndios. Os castores retardam o avanço da água da terra para o mar, amortecendo enchentes e modulando a descarga de lodo nas águas costeiras para que a vida ali possa prosperar. Os tapetes miceliais unem vastas áreas em uma rede neural que excede o cérebro humano em sua complexidade. E todos esses processos se interligam.

Em meu livro Climate — A New Story (ainda sem versão em português), defendo o argumento de que grande parte do desequilíbrio climático pelo qual culpamos os gases de efeito estufa na verdade vem da perturbação direta dos ecossistemas. Isso vem acontecendo há milênios: a seca e a desertificação se seguiram onde quer que os humanos tenham derrubado florestas e exposto o solo à erosão.

A frase “perturbação dos ecossistemas” soa científica em comparação com “prejudicar e matar seres vivos”. Mas, do ponto de vista do Planeta Vivo, a segunda frase é mais precisa. Uma floresta não é apenas uma coleção de árvores vivas — ela mesma está viva. O solo não é apenas um meio em que a vida cresce; o solo está vivo. Assim é um rio, um recife e um mar. Assim como é muito mais fácil degradar, explorar e matar uma pessoa se vemos a vítima como menos que humana, também é mais fácil matar os seres da Terra quando já os vemos como não vivos e inconscientes. As “limpezas” de floresta, as minas exploradas, os pântanos drenados, os derramamentos de petróleo e assim por diante são inevitáveis ​​quando vemos a Terra como uma coisa morta, que não sente, uma pilha instrumental de recursos.

Nossas histórias são poderosas. Se vemos o mundo como morto, vamos matá-lo. E se vemos o mundo como vivo, aprenderemos a servir sua cura.

A Visão do Planeta Vivo

E, de fato, o mundo está vivo. Não é apenas o anfitrião da vida. As florestas e recifes e pântanos são seus órgãos. As águas são o seu sangue. O solo é a sua pele. Os animais são suas células. Esta não é uma analogia exata, mas a conclusão a qual ela convida é válida: se esses seres perderem sua integridade, todo o planeta vai perder vigor.

Não tentarei defender intelectualmente a vida do planeta Terra, que dependeria da definição de vida que uso. Além disso, gostaria de ir além e dizer que a Terra é senciente, consciente e inteligente também — uma afirmação cientificamente insustentável. Então, em vez de tentar argumentar, peço ao cético que fique de pé descalço na terra e sinta a verdade disso. Acredito que independente de quão cético você é, mesmo que você defenda fervorosamente que a vida é apenas um acidente químico fortuito impulsionado por cegas forças físicas, uma pequena chama de conhecimento queima em cada pessoa na Terra dizendo que a água, o solo, o ar, o sol, as nuvens, e o vento estão vivos e conscientes, sentindo-nos ao mesmo tempo em que os sentimos.

Eu conheço bem o cético porque sou ele. Uma dúvida insidiosa toma conta de mim quando passo muito tempo dentro de casa, diante de uma tela, cercado por objetos inorgânicos padronizados que espelham o caráter morto da concepção modernista do mundo.

Certamente a proposta de se conectar descalço com a Terra viva seria fora de tom em uma conferência acadêmica sobre clima ou reunião do IPCC. Ocasionalmente, esses eventos propõem um momento de cerimônia mais emocional ou apresentam um indígena para invocar as quatro direções antes que todos entrem na sala de conferências para começar os negócios, o negócio de dados e gráficos, modelos e projeções, custos e benefícios. O que é real, nesse mundo, são os números. Tais ambientes — de abstrações quantitativas, bem como ar condicionado, luz artificial, cadeiras idênticas e ângulos retos onipresentes — banem qualquer vida, exceto o humano. A natureza existe apenas em representação e a Terra parece viva apenas em teorias, e provavelmente não em todas.

O que é considerado real nesses lugares são os números — que irônico, dado que os números são a quintessência da abstração, da redução dos muitos à um. A mente orientada por dados também procura resolver os problemas pelos números. O nerd matemático dentro de mim amaria resolver a crise climática avaliando todas as políticas possíveis de acordo com seu saldo de pegada de carbono. A cada ecossistema, cada tecnologia, cada projeto de energia, eu atribuiria um valor de efeito estufa. Então eu encomendaria mais deste e menos daquele, compensando as viagens a jato com o plantio de árvores, compensando a destruição dos pântanos aqui com painéis solares lá para atender a um certo orçamento de efeito estufa. Eu aplicaria os métodos e mentalidades que cresceram em torno da contabilidade financeira — o dinheiro sendo outra maneira de reduzir os muitos para o um.

Infelizmente, como no caso do dinheiro, o reducionismo do carbono ignora tudo o que parece não afetar o balanço patrimonial. Assim, as questões ambientais tradicionais, como a conservação de habitats, salvar as baleias ou limpar resíduos tóxicos, causam pouca atenção ao movimento climático. “Verde” passou a significar “baixo teor de carbono”.

Na visão do Planeta Vivo isso é um grande erro, já que as baleias, os lobos, os castores, as borboletas e assim por diante estão entre os órgãos e tecidos que mantém Gaia inteira. Ao compensar nossas milhas de viagens aéreas com o plantio de árvores, suprindo nossa eletricidade a partir de painéis solares e, assim, vestindo o manto de “eco-friendly”, nós amenizamos a consciência e obscurecemos o dano que nosso atual modo de vida gera. Nós implicamos que “sustentabilidade” significa a sustentação da sociedade como a conhecemos, mas com fontes de combustível não fósseis.

Isso não quer dizer que é bom continuar queimando combustíveis fósseis como sempre. Em reação ao meu último ensaio, algumas pessoas me rotularam como um negador das mudanças climáticas ou uma ferramenta usada por negadores das mudanças climáticas. Essa é uma reação natural em um ambiente altamente polarizado no qual a primeira lente aplicada a qualquer pessoa ou posição é “De que lado você está?” Em um contexto de guerra, qualquer informação que seja inconsistente com a narrativa do nosso lado, por mais verdadeira que seja, deve ser rejeitada e lida como ajuda e conforto sendo estendido ao inimigo. Quando ambos os lados fazem isso, o resultado é uma escolha binária que exclui qualquer alternativa que possa estar fora de qualquer dos pólos e até mesmo fora do espectro de opinião que os dois pólos definem. Além disso, ao excluir dados conflitantes, cada lado se torna imune ao crescimento, à mudança e à verdade.

É assim que a visão do Planeta Vivo (como eu interpreto) provoca hostilidade não apenas da direita anti-ambientalista, mas também da esquerda alarmista do aquecimento global — mesmo que a esquerda pelo menos esteja temperamentalmente alinhada com sua premissa. Sua hostilidade origina-se na implicação do que agora vou dizer: que o aquecimento global não é a principal ameaça à biosfera, e que o foco nas emissões de carbono e energia limpa não é a resposta de maior prioridade.

A verdadeira ameaça à biosfera é, na verdade, pior do que a maioria das pessoas, mesmo à esquerda, compreende; inclui e transcende de longe o clima; e só podemos encontrá-la através de uma resposta multidimensional de cura.

As emissões de gases de efeito estufa são um problema? Sim. As emissões estressam os sistemas globais de vida que o desenvolvimento, o ecocídio e a poluição já enfraqueceram perigosamente. Aqui está uma analogia frouxa: imagine que os ventos e correntes da Terra, os fluxos de temperatura e umidade e os padrões climáticos que sustentam a vida são como uma gigantesca e sinuosa mangueira de jardim, perfurada com pequenos orifícios para irrigar as plantas. Imagine que essas plantas tenham crescido em torno da mangueira para mantê-la mais ou menos no lugar. Agora, arranque as plantas (destrua os ecossistemas) ao mesmo tempo em que aumenta drasticamente a pressão da água (aumentando o efeito estufa). Sem as plantas segurando-a, a mangueira começa a se contorcer e se debater e sai completamente de controle, deixando de fornecer água para onde ela é necessária.

Na Terra, os ecossistemas — em particular florestas, savanas e pântanos — que antes ancoravam os padrões de fluxo no local, estão severamente danificados. Enquanto isso, os gases do efeito estufa intensificaram o fluxo termodinâmico do sistema, alterando ainda mais os padrões atmosféricos e prejudicando ainda mais os ecossistemas enfraquecidos. No entanto, mesmo sem o aumento dos gases do efeito estufa, o massacre da vida seria um desastre. As emissões de combustíveis fósseis intensificam uma situação já ruim.

Reordenando as Prioridades

Com ecossistemas saudáveis, CO2, metano e temperaturas elevadas podem representar pouco problema. Afinal de contas, as temperaturas eram indiscutivelmente (isso é extremamente controverso) maiores do que hoje no Holoceno inicial, bem como durante o Período Quente Minoico, Período Quente Romano e Período Quente Medieval, e não havia nenhum loop de feedback de metano ou algo parecido. Um ser vivo com órgãos fortes e tecidos saudáveis ​​é resiliente.

Infelizmente, os órgãos da Terra foram danificados e seus tecidos foram envenenados. Ela está em um estado delicado. É por isso que o corte de emissões de efeito estufa é importante. No entanto, uma visão do Planeta Vivo convida uma ordem de prioridades diferente daquela que o discurso climático convencional sugere:

A primeira prioridade é proteger todas as florestas primárias remanescentes e outros ecossistemas não danificados. Particularmente importantes são os manguezais, pradarias de ervas marinhas e outras zonas úmidas, especialmente nas costas. Estas florestas e zonas úmidas são tesouros preciosos, reservatórios de biodiversidade, estufas de regeneração para a vida. Eles detêm a inteligência profunda da terra, sem a qual a cura total é impossível.

A segunda prioridade é reparar e regenerar ecossistemas danificados em todo o mundo. As formas de fazer isso incluem:

  • Uma expansão massiva das reservas marinhas para a regeneração dos oceanos
  • Proibições de pesca de arrasto pelo fundo, redes de deriva e outras práticas de pesca industrial
  • Práticas agrícolas regenerativas que reconstroem o solo, como o cultivo de coberturas, agricultura perene, agrofloresta e o pastoreio holístico
  • Florestamento e reflorestamento
  • Paisagens de retenção de água para reparar o ciclo hidrológico
  • Proteção de superpredadores e megafauna

A terceira prioridade é parar de envenenar o mundo com pesticidas, herbicidas, inseticidas, plásticos, PCBs, metais pesados, antibióticos, fertilizantes químicos, resíduos farmacêuticos, resíduos radioativos e outros poluentes industriais. Estes enfraquecem a Terra ao nível do tecido, permeiam toda a biosfera ao ponto em que, por exemplo, as orcas são agora encontradas com níveis de PCB altos o suficiente para classificar o corpo da orca como lixo tóxico. Os pesticidas e a destruição do habitat também estão causando uma grande mortandade de insetos, anfíbios, pássaros, biota do solo e outras formas de vida, enfraquecendo a capacidade de Gaia de se manter.

A quarta (e ainda importante) prioridade é reduzir os níveis atmosféricos de gases de efeito estufa. Em grande medida, esse resultado será um subproduto das outras três prioridades. Tanto o reflorestamento quanto a agricultura regenerativa podem sequestrar quantidades massivas de carbono. Além disso, proteger e consertar ecossistemas de fato exigiria uma moratória em novos dutos, poços de petróleo em alto mar, fraturamento hidráulico (fracking), escavação de areias betuminosas, remoção de montanhas, minas de tiras e outras extrações de combustíveis fósseis, pois todos eles acarretam graves danos e riscos ecológicos. A visão do Planeta Vivo também apóia certas propostas motivadas pelo carbono que têm benefícios ecológicos e sociais mais amplos: energia solar, dietas e economias locais, cidades pelas quais se pode pedalar, pequenas casas solares passivas, desmilitarização, bens reparáveis, reutilização e upcycling ​​em vez de descartáveis. Para amar e cuidar de cada parte preciosa deste planeta, temos que transformar a infraestrutura de combustível fóssil, independente da questão dos gases de efeito estufa.

Paradoxalmente, não precisamos do argumento do efeito estufa para reduzir os gases de efeito estufa. Seguindo as prioridades listadas acima, nós alcançaremos (e talvez superaremos) a maior parte do que o movimento climático mainstream está exigindo, mas de uma motivação diferente. Há, no entanto, pontos de partida significativos. A abordagem do Planeta Vivo rejeita grandes projetos hidrelétricos porque eles destroem as terras úmidas, degradam os rios e alteram o fluxo de lama para o mar. Ela abomina as plantações de biocombustíveis que estão cobrindo vastas áreas da África, Ásia e América do Sul, uma vez que elas freqüentemente substituem os ecossistemas naturais e a agricultura camponesa sustentável de pequena escala. Teme esquemas de geoengenharia, como o branqueamento do céu com aerossóis de enxofre. Não vê utilidade em máquinas gigantes de sugar carbono (tecnologia de captura e armazenamento de carbono). Olha com horror para o consumo de florestas em todo o mundo para produzir aparas de madeira para usinas de energia a carvão convertidas. É duvidosa em relação a grandes turbinas eólicas matadoras de pássaros e vastas matrizes fotovoltaicas em paisagens desnudas.

Polarização e negação

Na seção anterior, referi-me à controversa afirmação de que o Período Quente Medieval era mais quente que o presente. Eu gostaria de revisitar isso, não porque eu acho que é importante definir se era ou não era, mas porque ela oferece uma janela para endereçarmos um problema mais profundo que congela nossa cultura em várias questões, não apenas o aquecimento global. O problema mais profundo é a polarização.

Reconstruções do taco de hóquei parecem mostrar o contrário da afirmação do Período Quente Medieval — indicando que hoje é mais quente do que em qualquer outra época nos últimos dez mil anos. Por outro lado, os céticos atacam os fundamentos metodológicos e estatísticos desses estudos e, em seguida, apresentam evidências de temperaturas quentes precoces, como níveis mais altos do mar no Holoceno inicial e médio.

Depois de alguns anos de pesquisa para meu livro, estou confiante de que posso argumentar pelos dois lados da questão. Eu poderia, com citações de pesquisas impressionantes, argumentar que o Período Quente Medieval (agora chamado de Anomalia Climática Medieval) não era realmente tão quente, e em qualquer caso, estava concentrado na bacia do Atlântico Norte e do Mediterrâneo. Eu também poderia argumentar, novamente citando dezenas de artigos revisados ​​por especialistas, que a anomalia era significativa e global. O mesmo vale para praticamente todos os aspectos do debate sobre o clima — posso argumentar bem de ambos os lados para impressionar seus partidários.

O leitor já pode estar se arrepiando por eu estar implicando uma possível equivalência entre os dois lados, um dos quais consiste em pseudocientistas de direita sem escrúpulos financiados por empresas que deixam sua ganância vir antes da sobrevivência da humanidade, e o outro de humildes cientistas com integridade apoiados por instituições auto-corretivas de revisão por pares que asseguram que a posição de consenso da ciência se aproxime cada vez mais da verdade. Ou será que um dos lados é formado por bravos dissidentes que arriscam suas carreiras para questionar a ortodoxia reinante, e o outro de carreiristas com pensamento de grupo, avessos ao risco, comprometidos com a agenda globalista de raivosos esquerdistas ecochatos ?

A calúnia polarizadora vinda de ambos os lados sugere um alto grau de investimento do ego em suas posições e me faz duvidar de que qualquer dos lados admita evidências que contradigam sua visão.

Diante da atual extrema polarização da sociedade americana (e até certo ponto ocidental), adotei uma regra prática, que se aplica tanto aos casais em guerra quanto à política: a questão mais importante a ser encontrada está fora da luta em si, em que ambas as partes tacitamente concordam ou se recusam a ver. Tomar partido é validar os termos do debate e participar na ignorância de questões ocultas.

Um acordo tácito no debate climático reduz a questão da saúde planetária focando na discussão sobre se as temperaturas são mais altas agora do que há X anos. Ao fixarmos o alarme em cima da deterioração ecológica no aquecimento global, sugerimos que, se os céticos estão certos, não há motivo para alarde. Assim, o movimento climático deve provar que os céticos estão errados a todo custo — até mesmo ao ponto de excluir evidências de temperaturas quentes históricas, já que elas não se encaixam na narrativa.

Qual é o motivo para provar que estão errados a todo custo? Peço desculpas à blogosfera climática de direita, mas não é para ajudar as diabólicas tramas de George Soros e Al Gore para implementar um governo mundial único socialista. O motivo é um alarme bem fundamentado sobre o estado do planeta. Um grupo alarmista está canalizando um autêntico alarme contra a deterioração antropogênica da biosfera para o aquecimento. Basicamente, ambos os lados concordaram em equiparar a catástrofe com o aquecimento global descontrolado e debater sobre isso como uma proxy para a questão maior da saúde planetária. Ao fazê-lo, temo que os ambientalistas tenham cedido um terreno sagrado e concordado em travar a luta em campos difíceis. Eles substituíram uma venda difícil por uma venda fácil. Eles substituíram uma narrativa de medo (os custos da mudança climática) por uma narrativa de amor (salve as baleias). Eles têm um cuidado pré-condicionado com a Terra a partir da aceitação de uma teoria carregada de política, que requer confiança nas instituições científicas e nos sistemas de autoridade que a incorporam. E tudo isso no momento em que a confiança geral nas autoridades está em declínio — e por boas razões.

Quanto aos céticos, receio que a ofensa que recebem de serem “negacionistas” seja, em muitos casos, precisa. Quer se trate ou não de críticas válidas sobre a ciência climática do establishment, a posição cética é tipicamente parte de uma identidade política maior que, para manter sua coerência, deve descartar todos os problemas ambientais junto com o aquecimento global. Recorrendo a uma posição de que tudo está bem, os blogs céticos sobre o clima geralmente insistem que resíduos plásticos, rejeitos radioativos, poluentes químicos, perda de biodiversidade, gases do efeito estufa, organismos geneticamente modificados, pesticidas, etc. não são um problema; portanto, nada precisa mudar. A resistência à mudança está no cerne da negação psicológica. Em algum nível, a mulher sabe que tem câncer, mas admitir isso exigiria que ela parasse de fumar. O homem sabe que seu casamento está desmoronando, mas admitir isso exigiria que ele parasse de trabalhar o tempo todo. E para sair requer uma investigação mais profunda sobre o que impulsiona esses vícios.

Assim também com a nossa civilização: em algum nível, sabemos que a maneira como estamos vivendo — mais, do jeito que estamos sendo — está destruindo nossa saúde e nosso casamento (com o resto da vida). Sentimos uma crescente infelicidade em relação ao nosso vício coletivo de consumo e crescimento. E sabemos que estamos à beira de uma iniciação em um tipo totalmente diferente de civilização. Uma profunda mudança está sobre nós e, temerosos dessa mudança, negamos que qualquer coisa seja o problema. Os céticos do clima são apenas os negadores mais óbvios, mas perversamente, o mainstream do aquecimento global perpetua um tipo de negação também, mantendo uma visão de sustentabilidade atingível meramente trocando fontes de energia. O oximoro comum do “crescimento sustentável” exemplifica essa ilusão, pois o crescimento em nosso tempo implica a conversão da natureza em recurso, em produto, em dinheiro. Em vez disso, podemos abraçar toda a metamorfose da civilização e entrar em um mundo onde desenvolvimento não significa mais crescimento, onde o abstrato não precede mais o real, e onde o mensurável não mais subjuga o qualitativo.

Um aspecto dessa mudança é a recuperação de formas não quantitativas do saber, aquelas que estão além do que chamamos de científicas, baseadas em dados ou métricas. Deixe-me sair do armário aqui: não confio na ciência do clima, nem na instituição da ciência em geral. Geralmente, confio na sinceridade e na inteligência de cientistas individuais, mas, como instituição, a ciência está sujeita a um tipo de viés de confirmação coletiva mediada por suas instituições de publicação, subsídios, promoção acadêmica e assim por diante. Minha desconfiança também é parcialmente pessoal: eu tive muitas experiências que a ciência julga como absurdas e impossíveis. Eu pesquisei e me beneficiei de modalidades de cura que a ciência diz serem charlatanismo. Eu tenho vivido em culturas onde fenômenos cientificamente inaceitáveis ​​são comuns. Eu vi o consenso científico falhar (por exemplo, na hipótese lipídica da arteriosclerose). E vejo como a ciência está profundamente enraizada em uma história mundial civilizacional obsoleta. Isso não quer dizer que eu saiba que a narrativa padrão do aquecimento global está errada. Eu não sei disso. É só que eu não sei se está certo também. É por isso que voltei minha atenção para o que eu sei, começando com o conhecimento que vem através dos meus próprios pés descalços.

O Vivo e o Local

De modo perverso, a narrativa dominante sobre o aquecimento global facilita o negacionismo, deslocando o alarme para uma teoria científica inviável, cuja prova definitiva só pode acontecer quando for tarde demais. Com efeitos que são distantes no espaço e no tempo e também causalmente distantes, é muito mais fácil negar a mudança climática do que negar, digamos, que a caça às baleias mata as baleias, que o desmatamento seca a terra, que o plástico está matando as vida e assim por diante. Da mesma forma, os efeitos da cura ecológica baseada em locais são mais fáceis de ver do que os efeitos climáticos de painéis fotovoltaicos ou turbinas eólicas. A distância causal é menor e os efeitos mais tangíveis. Por exemplo, onde os agricultores praticam a regeneração do solo, o lençol freático começa a subir, as nascentes secas há décadas voltam à vida, os riachos começam a fluir durante todo o ano novamente, e pássaros e animais selvagens retornam à área. Isso é visível sem precisar confiar em instituições científicas distantes.

O solo regenerado também acumula muito carbono. O carbono é a base atômica da vida — a própria palavra orgânica significa conter o solo. Podemos chegar a entender os níveis atmosféricos de CO2 como uma espécie de barômetro ecológico que nos diz o quão bem-sucedidos fomos em restaurar a vida na Terra.

A regeneração do solo tipifica a aplicação intrinsecamente local do paradigma do Planeta Vivo. Em contraste, porque números e métricas são genéricos — uma tonelada de carbono aqui é o mesmo que uma tonelada de carbono ali — conceber a crise ecológica em termos quantitativos dos níveis de CO2 estimula soluções padronizadas e globalizadas, que são avaliadas em termos do seu impacto de carbono mensurável. Um resultado disso foi o plantio generalizado de árvores ecologicamente e culturalmente inadequadas, que às vezes acabam criando efeitos desastrosos. O carbono armazenado em sua biomassa é medido, mas não o carbono perdido quando eles usam as águas subterrâneas disponíveis e morrem trinta anos depois, deixando o solo estéril e vulnerável. Também não medimos os efeitos difusos do ecossistema que se seguem, nem os custos de manejo de pragas, nem a interrupção dos meios tradicionais de subsistência que impulsionam a urbanização. Tais são os riscos da tomada de decisões baseada em métricas: ignoramos o que escolhemos não medir, o que é difícil de medir e o que é imensurável.

Quando vemos os lugares e ecologias deste planeta como seres vivos e não como conjuntos de dados, percebemos a necessidade do conhecimento íntimo baseado no lugar. A ciência quantitativa pode ser parte do desenvolvimento desse conhecimento, mas não pode substituir a observação qualitativa próxima dos agricultores e de outras pessoas locais que interagem com a terra todos os dias e através de gerações.

A profundidade e a sutileza do conhecimento de caçadores-coletores e camponeses tradicionais são difíceis de entender pela mente científica. Este conhecimento, codificado em histórias culturais, rituais e costumes, integra seus praticantes nos órgãos da terra e do mar, de modo que eles podem participar da resiliência da vida na Terra.

Ritual e Relacionamento

Um dos enigmas da ciência climática é a persistência do Óptimo Climático do Holoceno (Holocene Optimum) — dez mil anos de clima anormalmente estáveis que permitiu o florescimento da civilização. A ciência, até onde eu sei, atribui isso basicamente à boa sorte. Eu encontrei entre os povos indígenas uma explicação completamente diferente: que os rituais realizados por culturas que estavam em um bom relacionamento com os espíritos da Terra mantinham condições propícias ao bem-estar humano. Culturas indígenas estavam em constante comunicação com seres não-humanos, suplicando ou negociando por chuvas amplas e oportunas, invernos amenos e assim por diante. Mas eles não estavam apenas rezando pelo bom tempo, eles também viam a si mesmos como mantendo as relações de longo prazo com os poderes naturais que eram necessários para manter um mundo adequado para a habitação humana. Alguns Dogon que encontrei certa vez me disseram que a mudança climática é o resultado da remoção de artefatos rituais sagrados da África e de outros lugares e seu transporte para museus na Europa e na América do Norte. Deslocados e ritualmente negligenciados, eles não podem mais exercer sua função geoespiritual. Os Kogi dizem algo semelhante: não apenas os locais sagrados da Terra devem ser protegidos ou o planeta morrerá, mas também devemos manter a relação cerimonial adequada com esses lugares.

A mente moderna tende a reduzir tais práticas a orações para a chuva a superstições impotentes. Nossa teoria da causalidade tem pouco espaço para reconhecer a eficácia da cerimônia e do ritual para manter o equilíbrio climático local ou global. Eu, por exemplo, sou propenso a aceitar crenças e práticas indígenas pelo seu valor aparente, porque acredito que o entendimento moderno de causa e efeito físico baseado na força nos cegou para outras camadas misteriosas de causalidade. Mas se você preferir manter a causalidade moderna, a ecologia moderna e a ciência climática moderna, você ainda pode validar os rituais das culturas baseadas no lugar como inseparáveis ​​de todo um modo de vida, que de maneiras práticas e mundanas incluía o cuidado com a água, terra e vida. O que motiva esse cuidado? É o respeito por todos os seres e sistemas como seres vivos sagrados. Nessa mentalidade, claro, procura-se comunicar com eles.

A conclusão a ser tirada não é que devamos imitar rituais indígenas, mas aprender a visão de mundo por trás deles — a visão de mundo que os localizou dentro de um mundo sagrado, vivo e inteligente. Então poderemos traduzir essa compreensão em nossos próprios sistemas de ritual (os que chamamos de tecnologia, dinheiro e lei).

Para uma parte primitiva de minha psique, parece óbvio que os assuntos humanos afetam o clima por meio de vetores de símbolo e metáfora. Essa intuição não está tão distante da visão medieval de que a desigualdade social destravou a ira de Deus na forma de desastres naturais. Enquanto escrevo isso, a chuva cai na fazenda; tendo enchido todos os bueiros e bacias, está agora violando as valas, causando a destruição, levando o solo superficial. Já choveu quatorze polegadas, e ainda derrama. Enquanto isso, o sudoeste americano sofre um calor recorde e uma seca extrema. A distribuição desigual da chuva espelha a distribuição desigual da riqueza em nossa sociedade. Tanto aqui que ninguém sabe o que fazer com isso; tão pouco ali que a própria vida se torna impossível. Nossa cultura também tem seus rituais: manipulamos os símbolos que chamamos de dinheiro e dados na crença mágico-religiosa de que a realidade física mudará com isso. E de fato ela muda — nossos rituais são poderosos. No entanto, eles carregam um preço oculto. Como outras culturas entenderam, invocar magia para fins egoístas inevitavelmente traz desastre. Mais cedo ou mais tarde, um clima terrestre perturbado será seguido pelo desarranjo no clima social, no clima político e no clima psíquico. Eu posso estar projetando significado num ruído, mas 2018, um ano de extrema polarização nos assuntos humanos, também tem sido um ano de extrema polarização de temperatura: calor em alguns lugares e estações, frio em outros.

Pra que serve o Ser Humano?

A visão do Planeta Vivo, essa visão consciente de um planeta com alma, reconhece um vínculo íntimo entre os assuntos humanos e ecológicos. Muitas vezes ouço as pessoas dizerem: “A mudança climática não é uma ameaça para a Terra. O planeta ficará bem. Os seres humanos é que podem se extinguir.” Se entendermos a humanidade, entretanto, como a criação amada de Gaia, nascida para um propósito evolutivo, então não poderíamos mais dizer que ela ficará bem sem os humanos, como não poderíamos dizer que uma mãe fica bem se perder um filho. Me desculpe, mas ela não vai ficar bem.

A ideia acima mencionada de um propósito evolutivo, embora contrária à ciência biológica moderna, decorre naturalmente de uma visão do mundo e do cosmos como senciente, inteligente ou consciente. Ele abre as perguntas: “Para que somos nós?” “Por que estamos aqui?” e “Por que estou aqui?”. Gaia criou um novo órgão. Para que serve? Como a humanidade poderia cooperar com todos os outros órgãos — as florestas, as águas, as borboletas e as focas — a serviço do sonho do mundo?

Eu não sei as respostas para essas perguntas. Eu só sei que devemos começar por fazê-las. Nós devemos — não como uma questão de sobrevivência. Seja como indivíduos ou como espécie, vivemos para algo. Não nos é dada a vida meramente para sobreviver. Ao que servimos? Que visão de beleza nos chama? Essas são as perguntas que devemos fazer ao passarmos pelo portal iniciático que chamamos de mudança climática. Ao perguntá-las, evocamos uma visão coletiva que forma o núcleo de uma história comum, um acordo comum. Não sei o que será, mas não creio que seja o velho futuro dos carros voadores, dos robôs e das cidades-bolha com vista para uma paisagem desolada e árida. É um mundo onde as praias estão repletas de conchas, onde vemos as baleias aos milhares, onde bandos de pássaros cobrem o céu, onde os rios correm limpos e onde a vida voltou aos lugares que estão hoje arruinados.

Nós vivemos por algo. Podemos não ter uma grande visão do destino humano para nos guiar, mas ainda assim uma bússola interna aponta o caminho. Segui-la significa cuidar de si. Servindo a ela, sentimos que sim, é por isso que estou aqui. Talvez seu cuidado o guie a marchas climáticas convencionais e similares, ou talvez o guie para curar e proteger uma pequena parte da Terra, ou talvez para abordar o clima social, o clima espiritual, o clima relacional — a saúde do novo órgão de Gaia que chamamos de humanidade. Algumas dessas atividades não têm efeito perceptível na pegada de carbono, mas a intuição nos diz que todos fazem parte da mesma revolução. Uma sociedade que explora as pessoas mais vulneráveis ​​necessariamente também explorará os lugares mais vulneráveis. Uma sociedade dedicada à cura em um nível inevitavelmente servirá a cura em todos os níveis.

Agora posso ser mais preciso sobre a natureza da iniciação a qual me referi no início. Sua questão geradora é: por que estamos aqui? — um marco importante do processo de amadurecimento para a idade adulta. Poderíamos, portanto, entender a convergência atual das crises como uma iniciação na vida adulta coletiva — a graduação da civilização moderna em seu propósito. Isto não é sobre sobrevivência; é por isso que a narrativa do medo, a narrativa do custo-benefício, a narrativa da ameaça existencial não servem à causa da cura ecológica. Poderíamos substituí-las pela narrativa do amor? Pela narrativa de beleza? Pela narrativa da empatia? Poderíamos nos conectar com nosso amor por este planeta vivo que está sofrendo, e olhar para nossas mãos e mentes, nossa tecnologia e nossas artes, e perguntar: Qual a melhor maneira de participar da cura e do sonho da Terra?

Charles Eisenstein é professor, palestrante e escritor com foco em temas de civilização, consciência, dinheiro e evolução cultural humana. Seus escritos na revista Reality Sandwich geraram um vasto número de seguidores online. Eisenstein se formou na Universidade de Yale em 1989 em Matemática e Filosofia; e é autor do livro “Sacred Economics”.

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