Lobos, pensamento sistêmico e cascatas tróficas

Rafaela G Scheiffer
Escola Schumacher Brasil
5 min readFeb 11, 2019

Sistemas naturais nos ensinam como reparar os danos causados pelo consumo de carne em grande escala, além da poluição e agronegócio

O vídeo How Wolves Change Rivers (em português, Como os Lobos mudam Rios), narrado por George Monbiot, começa com a frase: “Uma das descobertas científicas mais animadoras do último meio século foi a descoberta de cascatas tróficas que se encontram em vários níveis. Uma cascata trófica é um processo ecológico que começa no topo da cadeia alimentar e desce todo o caminho até o fundo “.

O vídeo continua com a maravilhosa descrição da reintrodução de lobos no Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos, em 1995. Muitas pessoas acreditam que lobos sejam animais sanguinários (que causam derramamento de sangue).

No entanto, eles realmente mataram alguns dos veados e coiotes, mas eles também forneceram meios para roedores e aves de rapina terem seu lugar no ecossistema local. O pensamento sistêmico revela o papel imprevisto dos lobos como engenheiros ecossistêmicos.

Floresta em regeneração

As consideravelmente mau gerenciadas populações de veados estavam bloqueando o fluxo de energia na cadeia alimentar local.

Ao mudar o comportamento dos veados que começaram a evitar certas partes do parque, os lobos ofereceram às árvores uma chance de aumentar seu tamanho em cinco vezes em um curto período de tempo, atraindo muitas espécies de pássaros.

Os castores vieram também, alimentando-se das árvores e controlando o crescimento delas através de construção de habitações aquáticas também usadas por centenas de outras espécies, como ratos almiscarados, lontras, patos, peixes, anfíbios e répteis.

Os ursos se deliciavam com o grande número de frutas do bosque. Surpreendentemente, o comportamento dos rios também mudou — ao formar meandros eles também erodiram menos, estreitaram seus canais e aumentaram o número de reservatórios naturais e cascatas são ótimos habitats de vida selvagem.

A floresta em rejuvenescimento estabilizou as margens dos rios e diminuiu a erosão do solo. Surpreendentemente, os lobos não apenas restauraram a ecologia local do Parque, mas também mudaram sua geografia.

Infelizmente, a presente história é degenerativa. Um ecossistema incrivelmente biodiverso é sistematicamente destruído por uma espécie que ignora sua interconexão com toda a teia da vida.

Expansão da agricultura

Eu nasci no Brasil, o quarto maior emissor de gases do aquecimento global e perpetrador de desmatamento severo. Isto é feito em nome do lucro: as corporações cortam árvores, contaminam o solo e a água, consomem a maioria dos recursos hídricos e frequentemente executam suas atividades com trabalho escravo.

A indústria da carne emite o mesmo volume de gases do aquecimento global emitida por todos os carros, caminhões, aviões e navios de todo o planeta juntos, e em países como o Brasil isso está diretamente relacionada à suspensão dos direitos dos trabalhadores, povos indígenas e outras comunidades tradicionais.

Além das áreas para pastagem de gado, o aumento na produção de soja está impulsionando a expansão agrícola — essencial para a atividade altamente lucrativa e mal fiscalizada de produzir carne.

Os 1,5 bilhão de cabeças de gado do mundo levam a fama de vilões. Um único animal produz mais de uma centena de gases poluentes, mais de 100 kg de metano por ano e para se produzir um litro de leite cerca de 990 litros de água para são consumidos. Além disso, as fezes bovinas acarretam na formação de “zonas mortas” no oceano.

Para conhecer a questão em profundidade, é necessário entender seu contexto de forma mais ampla.

Rede de Interconexões

Como seria contada a mesma história de How Wolves Change Rivers se culpássemos o veado? Ao nos concentrar em seu efeito adverso, perderíamos fatos que abrissem as portas para um entendimento mais sistêmico do fenômeno em questão.

A rede de relações delicadas da floresta amazônica levou alguns milhões de anos para chegar ao seu estado atual.

O trabalho diário de uma grande árvore é bombear cerca de 1000 L de água para a atmosfera, onde a água encontra substâncias produzidas pela planta que facilitam sua condensação e asseguram abundância na formação da chuva. Isso significa que, como as algas oceânicas, as plantas “semeiam nuvens” ao passo que toda a floresta é o agente liberador de 20 bilhões de litros por dia — um número que excede o fluxo de água do rio Amazonas em 3 bilhões de litros.

Além disso, a floresta mantém o ar em movimento úmido e, como uma bomba biótica, suga o ar úmido sobre o mar para o continente, mantendo assim as chuvas sob quaisquer circunstâncias. As correntes de ar carregam a água atmosférica para o interior do continente, formando um rio voador.

Outros serviços incluem a prevenção da desertificação ao distribuir umidade, estabilizar o ciclo da água e prevenir eventos climáticos, como tornados.

Ultrapassando limites

Nada disso é possível se o gado se tornar o substituto das árvores — o resultado é um bloqueio a longo prazo dos fluxos ecológicos causado pela ausência das funções fundamentais desempenhadas pelas plantas, o que indicam sua importância para o sistema climático planetário. As árvores apresentam uma relação íntima com o ciclo da água, assim como com os ciclos de carbono, nitrogênio e fósforo nos níveis local e global.

O desmatamento leva a eventos climáticos extremos, perda da biodiversidade, habitats e a degradação de ambientes próximos e distantes, mais cedo ou mais tarde. Por exemplo, o aumento do consumo de carne na Alemanha ameaça os ecossistemas sul-americanos, já que dois terços da soja fornecida à pecuária no país europeu vêm do Brasil.

Infelizmente, não somos encorajados a saber das histórias que estão por trás do que consumimos. Podemos começar a mudar isso ao expandir a educação formal para além dos limites da causação linear — o pensamento eco-sistêmico deve ser ensinado nas escolas.

Uma dívida ambiental escandalosa não é transferida para o consumidor final, muito menos paga com dinheiro — todos nós a pagamos com a perda de vidas humanas, malformação de fetos, intoxicações por metais pesados, doenças crônicas, câncer e a destruição das condições fundamentais para todas as formas de vida no planeta.

A forma usual de se fazer negócios dirigida por uma economia predatória (do inglês, “business as usual”) destrói o patrimônio que a todos pertence, muitas vezes irreversivelmente.

Causa para otimismo

A indústria da carne deve ser vigiada de perto pela sociedade civil. Justamente com o comprometimento em se tornar mais responsáveis e transparentes em suas operações, gigantes como a brasileira JBS precisam adotar modelos de produção baseados na economia circular se quiserem evitar intersecções governamentais.

Pode ser desafiador entender a inter-relação de toda a vida em um mundo onde a natureza foi mercantilizada.

A situação de ciclos da água em nível local causada pela degradação ecossistêmica é amplamente ignorada e pode ser comparada ao fracasso do sistema circulatório no corpo humano. Nós estamos devastando os vasos sanguíneos do nosso corpo estendido, o planeta Terra.

Apesar disso, podemos ser otimistas porque carregamos o potencial de sermos seres regenerativos como os lobos, que significa criam nichos para outras espécies e dão vida ao ecossistema ao serem quem são. Quem sabe que rios iremos mudar?

Matéria originalmente publicada pela revista inglesa The Ecologist

Tradução para o português de Marcella Abate

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Rafaela G Scheiffer
Escola Schumacher Brasil

BSc, MSc H. Science, MSc Urban Water Cycle, currently living in Portugal. Passionate about water and climate. Believes in Beauty, Benevolence and Truth.