O decrescimento e a desconstrução do capitalismo

Fernanda Rocha Vidal
5 min readMay 28, 2020

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Por Giuseppe Feola e Olga Koretskaya, originalmente publicado no portal Ontgroei, o portal holandês para pesquisa e ação para o decrescimento. Texto original em inglês em: https://ontgroei.degrowth.net/degrowth-and-the-unmaking-of-capitalism/

Libertar nossas mentes dos imperativos do crescimento econômico ilimitado e da maximização de lucros é uma das ideias inspiradoras centrais do decrescimento. Pesquisadores e ativistas chamam essa libertação de “descolonização do imaginário”. As iniciativas de decrescimento, de fato, quebram o nosso entendimento comum sobre a economia capitalista, mas vão além — elas também questionam as normas sociais e espaços físicos. Como podemos enriquecer nossa compreensão sobre essas rupturas do capitalismo de uma forma que vá além do imaginário?

Nossas sociedades enfrentam múltiplos desafios interconectados, que incluem a emergência climática, a crescente desigualdade e a poluição plástica. O que conecta esses desafios é o modelo econômico capitalista, que prioriza a maximização de lucros acima do bem-estar e requer um crescimento econômico ilimitado simplesmente para se manter.

O decrescimento oferece uma visão alternativa — é um projeto de uma transformação urgente e fundamental. O decrescimento exige reimaginar nossas sociedades, saindo da perspectiva focada no lucro para uma focada no bem-estar. Essa abordagem diferencia o decrescimento de outras visões mais acomodadas de transformação, como o “crescimento verde”. Mas como poderia a sociedade fazer a transição na direção do decrescimento?

Uma ideia que tem se tornado proeminente é pensar essa transição como uma “descolonização do imaginário”, um conceito desenvolvido por Serge Latouche. Esse conceito sinaliza a necessidade da quebra com as visões de mundo não questionadas e presumidas, bem como das práticas, normas e regras associadas a elas. A descolonização do imaginário questiona as crenças profundamente arraigadas sobre quem somos, como vivemos e sobre o nosso lugar no mundo. Será que somos somente indivíduos egoístas, focados no interesse próprio, ou também somos membros de comunidades, voltados ao cuidado comum? Em qual medida as tecnologias e consumo contribuem para o bem-estar humano? É possível que nossa economia em expansão constante ameace comunidades humanas e também o mundo natural?

A descolonização do imaginário tem sido uma ideia inspiradora para pesquisadores e ativistas. Ainda assim, parece que, por si só, seja insuficiente para nos levar a compreender, totalmente, as profundezas das rupturas no capitalismo causadas por algumas iniciativas como as cidades em transição, fazendas de permacultura e repair cafes. A descolonização do imaginário enfatiza as dimensões simbólicas da mudança social, mas minimiza a dimensão material dessa mudança. É também entendida com um destino e, assim, falha em nos auxiliar a reconhecer — e aprender — sobre o que acontece ao longo do caminho.

Como podemos pensar sobre os processos através dos quais as rupturas com o capitalismo acontecem de formas mais abrangentes, profundas e dinâmicas? É possível capturar melhor o que acontece nessas iniciativas concretas?

Em um artigo recente, Giuseppe Feola sugere que pensemos sobre as rupturas do capitalismo em termos de uma “des-construção”, um “des-fazer”. Ele sugere que essa desconstrução não é só necessária, mas possivelmente uma pré-condição para uma transformação da magnitude e natureza exigida pelo decrescimento. “Des-fazer” se refere às ações individuais ou coletivas de libertação ou ativa desconstrução dos sistemas capitalistas existentes para “abrir espaços” para as alternativas. Essas ações podem ter a forma de uma decisão pessoal de limitar o consumo ou largar um emprego com bom salário em uma empresa petrolífera. A desconstrução também pode ser reconhecida em uma fazenda comunitária que se recusa a se submeter às pressões do mercado para expandir sua produção e se volta, ao contrário, a um modelo de apoio comunitário para se sustentar.

Os processos de desconstrução são dependentes de um contexto histórico particular.

Isso significa que não existe uma única forma para romper com as práticas, normas e regras capitalistas. O que pode causar a ruptura em um ponto no sistema pode não causar a ruptura em outro. Várias iniciativas populares, assim, terão focos diferentes, se complementando. Essa dependência do contexto também significa que as lições aprendidas em uma experiência de desconstrução devem ser aplicadas e transferidas com cuidado entre iniciativas concretas.

Os processos de desconstrução envolvem tanto rupturas simbólicas quanto materiais

Em muitas iniciativas populares e ações individuais, as críticas da cultura capitalista são acompanhadas de desconstruções materiais e práticas do status-quo. Se voltarmos ao exemplo da auto-limitação de consumo em um nível pessoal, veremos que através de suas ações os indivíduos estão quebrando a obrigação social (simbólica) do consumo sempre crescente, enquanto mudam, simultaneamente, rotinas concretas (materiais).

A desconstrução é uma experiência pessoal contraditória

Se libertar das práticas e da lógica capitalista envolve uma rejeição deliberada das narrativas dominantes, aquelas referentes aos seres humanos egoístas e auto centrados. Essa rejeição abre espaço para outras lógicas de ação, incluindo aquelas de cooperação, reconhecimento e dignidade. Essas lógicas alternativas não são desconhecidas nossas: sacrifícios em prol de um bem maior e atos que surgem da ética do cuidado acontecem em várias esferas da vida cotidiana, como na vida dos pais. As alternativas à lógica e práticas capitalistas, entretanto, são frequentemente negligenciadas e socialmente não reconhecidas e podem, por vezes, serem inclusive punidas pelas regras econômicas dominantes. Isso significa que a desconstrução pessoal pode ser “confusa” e pode envolver negociações, acordos, reveses e dilemas.

A desconstrução é, com frequência, escondida, mas pode ser usada estrategicamente

Atos de desconstrução enfraquecem a ordem estabelecida, incluindo: normas culturais (ex consumismo), infraestrutura material (ex carros a diesel, indústrias de produção em massa), regras e regulamentações (ex a semana de trabalho de 44 horas) e expectativas socialmente aceitas (ex metas de crescimento econômico, a maximização de lucros aos acionistas). Ainda assim, para evitar o confronto direto com atores poderosos, as iniciativas de base mantém, frequentemente, privadas ou escondidas suas rupturas. Além do mais, a natureza pessoal, de pequena escala de muitas formas de desconstrução fazem com que essas mudanças fiquem de fora dos holofotes — muitas vezes não aparecem nas manchetes dos jornais. Em outros casos, ao contrário, a desconstrução pode ocorrer por ações públicas como a desobediência civil e protestos, assim como através do surgimento de um discurso público disruptivo; o movimento social “Extinction Rebellion” é um exemplo.

A desconstrução é generativa

Os processos de desconstrução tem como objetivo a interrupção da reprodução das lógicas e práticas capitalistas. Ao mesmo tempo, a desconstrução tem e implica inerentemente um poder criativo: ela libera a imaginação e criação de diferentes futuros. Ao criar vácuos simbólicos, materiais, espaciais e temporais que podem ser preenchidos por outros caminhos, a desconstrução permite o estabelecimento de outras prioridades éticas e práticas. Ela abre e cultiva possibilidades que seriam, de outra forma, impensáveis, ou consideradas inatingíveis.

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O estudo completo ‘Degrowth and the Unmaking of Capitalism Beyond “Decolonization of the Imaginary”’ foi publicado em ACME: An International Journal for Critical Geographies e está disponível para livre acesso aqui. Essa pesquisa é parte do programa UNMAKING.

Autores

Giuseppe Feola ;e Associate Professor of Social Change for Sustainability (Professor Associado de Mudança Social para Sustentabilidade) do Copernicus Institute of Sustainable Development (Instituto Copérnico de Desenvolvimento Sustentável) Utrecht University (na Holanda) e membro da Plataforma Holandesa para o Decrescimento Ontgroei.nl.

Olga Koretskaya é pesquisadora no Copernicus Institute of Sustainable Development na Utrecht University (Instituto Copérnico de Desenvolvimento Sustentável) (na Holanda) e membro da Plataforma Holandesa para o Decrescimento Ontgroei.nl.

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Fernanda Rocha Vidal

Interessada no papel que escolhemos ter como humanos na vida do nosso planeta. Mestre em Economia para Transição, Sócia da Casa Horta, Coordenadora da Casa Gaia