Os monumentos de nossa vida ‘conversacional’: porque habitar o detalhe importa

Juliana Schneider
Escola Schumacher Brasil
8 min readFeb 24, 2019

Juliana Schneider (2018)

Ao longo dos últimos oito anos dentro do contexto da educação experiencial tenho cada vez mais mergulhado no fenômeno de organização humana. Por ‘organização humana’ refiro-me aos esforços humanos no sentido de criar ou expressar ação no mundo. Seja na forma de organizações, de grupos, movimentos, projetos — quando nos reunimos para iniciar e/ou sustentar ação no mundo. Dentro deste amplo campo, há muita literatura, das mais tradicionais às mais alternativas. Ao longo destes anos de pesquisa, estudo e participação nestes contextos, percebi que o aspecto dentro deste campo que tem cada vez mais chamado minha atenção é completamente marginal nestas abordagens, com algumas raras exceções. Por mais alternativos que sejam os olhares para a organização humana (hoje existem abordagens horizontais, sociocráticas…), eles ainda tendem a ser representacionais — ou seja, apoiam-se em representações conceituais que abstraem estabilidades de um fluxo dinâmico que em si não é estático.

E os movimentos desse fluxo dinâmico é onde o meu olhar tem sido chamado. E o ‘material’ desse fluxo mora no detalhe. E às vezes sinto que o detalhe ficou apenas no trabalho do poeta. No entanto, não há contexto social que não aconteça no/pelo/a partir do detalhe, que não seja formado/influenciado por ele. Como dizia Hannah Arendt, o menor ato, na circunstância mais limitada, tem o poder de mudar toda uma constelação. Alguns outros autores em campos diferentes têm me alimentado esse olhar, como uma abordagem específica da complexidade com autores como Ralph Stacey e Patricia Shaw, o olhar fenomenológico da filósofa-política Hannah Arendt, na antropologia como Tim Ingold, da comunicação-psicologia como John Shotter, na filosofia-fenomenologia com Henri Bortoft.

Ao falar do detalhe, refiro-me àquilo que é quase inarticulável. Aquele sentido-não visto. Sentido-não articulável. Sentido-não explícito. Sentido-pela metade. Mas presente.

E quanto mais ele é ‘atendido’ (de receber atenção) mais ele se torna sentido-visto. Sentido-articulável. Sentido-explícito. Sentido-por-inteiro. Mais presente.

Relacionando a nossa vida de todo dia

Vou tentar tangibilizar um pouco trazendo exemplos de uma certa natureza — poderia abordar cenas de várias naturezas da nossa participação social, mas vou focar em um contexto que acredito ser mais comum. Por exemplo, quantos de nós já passaram por cenas com outras pessoas — seja em encontros, reuniões, conversas — em que depois geraram questionamentos-sensações que articularíamos de alguma forma parecida com:

  • “a reunião foi ok, ,mas tinha algo estranho, tinha alguma coisa…”
  • “a conversa até que foi bem mas parecia que ele estava incomodado”
  • “era como se eu tivesse feito algo errado mas ninguém falou nada”
  • “a fala deles(as) estava interessante, mas tinha alguma coisa a mais ali…”
  • “eu queria ter falado algo mas foi tão rápido, quando vi já tinha mudado a pauta e achei estranho voltar”
  • “eu estava incomodada com alguma coisa…, mas parecia que todos estavam acompanhando”.

Estes são alguns exemplos simples de ‘sensações’ triviais, de todo o dia, que, acredito eu, todos já sentiram — seja em contextos mais ou menos formais. Estão presentes em interações cotidianas e por serem assim tão triviais, esquecemos que elas carregam em si sementes de novos caminhos. Que ao ‘atendermos’ a esses momentos, a esse sentido-não-explícito, há um terreno fértil de possibilidades. Qualquer novelista sabe que naquela cena em que ela diz tal frase, e ele respira de forma mais pesada — algo acontece, e dependendo do menor gesto que segue, o rumo das vidas está alterado. Hoje quando falamos em mudança, cobrimos um amplo território de teorias e frameworks mas dificilmente aterrissamos nesse lugar — do trivial do trivial, do em comum, do entre nós, do perceptível-invisível. Acontece que esse ‘trivial’ tem algo de imprevisível e de potência.

Nos últimos anos, o meu trabalho tem baseado-se em adentrar esse aparente desinteressante. Como pegar uma lupa. Mas uma lupa não-instrumento. Uma lupa como extensão do olhar. Uma lupa como próprio órgão de percepção, como dizia Goethe. E a partir desse ‘pequeno’ voltar-se para o todo. Como que o detalhe das nossas interações locais influencia (e ao mesmo tempo é influenciado por) esse todo que chamamos de grupos, organizações, sociedade? A ciência da complexidade nos alerta para esse pequeno detalhe que, pela sua inescapável temporalidade, amplifica-se gerando mudanças impossíveis de serem previstas. Como experimentos de Edward Lorenz na década de 60 que geraram o artigo — e depois o famoso termo — ‘efeito borboleta’. Ele se perguntava “pode o bater de asas de uma borboleta no Texas causar um tornado no Brasil?”. A resposta é ‘sim’. Mas atender a esta qualidade da mudança tem algo de desinteressante — porque esse lugar não rende grandes teorias prescritivas de ação que nos oriente a percorrer um caminho já prescrito. Não tem mapa. E nos tempos de GPS pouca gente se coloca a farejar.

Voltando a essas cenas e o sutil nelas — há alguns ‘motivos’ que eu entendo nos impedirem de dá-las alguma atenção:

  1. Fazem parte do background das nossas atividades — como dizia Ludwig Wittgenstein, elas fazem parte do hurly-burly da atividade humana — o pano de fundo que está sempre lá, e por isso, por ser familiar — do contrário daquilo que objetificamos e colocamos na nossa frente — é difícil vermos, enxergarmos.
  2. Acontecem muito rapidamente. Essas percepções são como sopros, como respiros, e quando vemos já passou. Ainda assim, esses sopros chegam como sensos ‘half-formed’ (formados pela metade) sem que na hora consigamos claramente dizer ‘eu acho isso” ou “ eu estou incomodada com isto”. Eu acho alguma coisa que não sei dizer. Estou incomodada com algo mas não sei o que. São mais ‘ar’ e menos terra.
  3. Se tornam terra no momento que nos jogamos ao ar, ao vento, como se fosse em queda livre — por exemplo, tentar articular esse senso ainda-não-formado no meio da conversa, no meio da reunião, sem que esteja ensaiado na ‘nossa cabeça’ ou minimamente claro do que se trata, vai trazendo mais ‘terra’ ao aparente éter.
  4. Essa tentativa envolve arriscarmos nossa própria identidade. Neste grão de ação está o risco de perda de quem somos — perante os outros e perante nós mesmos. Para a identidade, é mesmo como um vôo em queda livre. E o risco é, como na queda, eu me desfigurar de como eu me reconhecia antes. Hannah Arendt, no livro A Condição Humana, aponta para esse fenômeno quando distingue os termos ‘comportamento’ (behaviour) de ‘ação’ (action). Segundo ela, comportamento é quem você já é enquanto que na ação revelamos quem podemos ser, nos tornamos… e para se tornar existe a mudança do ‘eu’ conhecido para um vir-a-ser. No ato de trazermos nossa voz para iniciar algum movimento novo cujas respostas e repercussões não sabemos, nos tornamos. E por isso o risco, por isso o ‘peso’ que essa ação — por mais minúscula que seja — carrega.
  5. Ganham mais contorno, clareza e certeza apenas retrospectivamente — só depois do evento/acontecimento, e geralmente quando estamos em conversa com alguma outra pessoa. A conversa em si revela, a clareza aparece no decorrer. Ela se mostra.

Tragédia da Vale em Brumadinho — seguindo a relacionar com a vida

Para relacionar isso tudo com um exemplo bem atual — recentemente li duas matérias que tratavam sobre o recente desastre ambiental da Vale, da barragem em Brumadinho. Na primeira matéria, uma funcionária que conseguiu sobreviver narra sua experiência e, em dado momento da narrativa, relata: “eu nunca tive receio dessa barragem, porque a Vale sempre passava muito treinamento de segurança. Inclusive, uns três meses antes, tinham feito uma simulação (de evacuação de emergência)”. E seu colega, também sobrevivente: “Nunca imaginamos que isso ia acontecer. A Vale tem um trabalho 100% em termos de segurança. E eu já trabalhei perto da barragem, parecia que era (feita de) terra. Nunca ficava água lá. Se enchia de água, uma bomba logo tirava”.

Ambos fazem referência aos procedimentos aprendidos/repetidos, protolocos, procedimentos maquinários que eram garantidos de acontecer para evitar uma tragédia desse porte. Não nos surpreende essa afirmação pois é o lugar-foco mais imediato quando uma tragédia como essa acontece e aos trabalhos preventivos de garantir que não aconteça. Porém, enquanto isso, existe um outro lugar — onde os detalhes das relações sociais habitam, que fica inexplorado, que não falamos a respeito e de onde uma tragédia também decorre. Já na outra matéria, publicada no mesmo dia e pelo mesmo veículo, um dos engenheiros que prestou depoimento à polícia, e que assinou o laudo de estabilidade, relatou uma reunião com funcionários da Vale em que segundo ele um funcionário da Vale perguntou: “A TÜV SÜD vai assinar ou não a declaração de estabilidade?” O engenheiro disse à polícia ter respondido que assinaria o laudo se a Vale adotasse as recomendações indicadas em uma dada revisão periódica, mas acabou mesmo assim assinando o documento. Ao ser questionado o porquê, ele disse que apesar de ter dado esta resposta para o funcionário da Vale, ele sentiu a pergunta feita como uma pressão para que assinasse a declaração de condição de estabilidade sob o risco de perderem o contrato.

Obviamente esse é apenas um recorte da cena e não sabemos o que aconteceu de fato. No entanto, se levarmos a sério esse relato, então uma tragédia desse porte poderia ter sido evitada se o não-dito tivesse sido ‘atendido’. Eu não estou entrando no mérito das motivações, mas trazendo a nossa atenção para o quanto desse tecido invisível das interações sociais vai costurando formas que se materializam em acontecimentos. Já dizia Ernst Junger, que — infelizmente — a conversa não deixa monumentos como a literatura e a pintura deixam. “Inúmeras conversas sempre permeiam todos os elementos de um tempo até os menores detalhes, criando um tecido é que tão leve e indeterminado quanto as nuvens, embora contenha nele toda a água que irá então movimentar moinhos e carregar embarcações”.

Por não deixar traços visíveis, a nossa vida conversacional permanece ‘unatended’ (não atendida) como o pano de fundo que Wittgenstein aponta. Difícil de ver porque está sempre lá, ela vai criando monumentos invisíveis, destruindo outros.. enquanto nossos treinamentos em procedimentos e metodologias vão ficando cada vez mais sofisticados. E o que acontece se trouxermos esse ‘material’ para o plano da frente de nossa atenção? Quais as implicações para a orientação aos processos de organização humana, que é baseada na clareza de identidade, se fossemos explorar uma atenção mais baseada nessa forma detalhada e visceral de atenção? Quais os riscos de se trabalhar dessa forma e por que navegar esse risco importa?

Novo Curso — Participando do Processo Formativo de Organização Humana

Como parte das minhas explorações, abri um espaço para segui-las de forma conjunta, em um grupo de pessoas interessadas nesse campo. Nos encontraremos por quatro noites/semanas, começando em 19 de março e vamos aprofundar nosso olhar criando repertórios corporais que ampliam nossas capacidades de percepção, reflexão e resposta para adentrar de forma viva os diferentes contextos de nossas práticas. Vamos fazer isso a partir de quatro ‘fios’:

Prática Reflexiva: ao abrirmos mão de ferramentas e frameworks já formatados e entrarmos ’em cheio’ no território da experiência vamos adotar como ‘método’ um fluxo de experiência e reflexão. Estaremos atentos a nossa experiência como grupo e encontraremos nosso próprio ritmo de experiência-reflexão para adentrar estes detalhes e experienciarmos corporalmente os movimentos de resposta/não-resposta atrelados a nossa capacidade de participar do fluxo dos eventos.

Outras práticas: receberemos alguns convidados ‘practitioners’ de diferentes áreas e que trabalham com elementos do movimento, do detalhe, do improviso, e que compartilharão conosco seus repertórios e suas próprias indagações e entendimentos a partir do que fazem e assim nos gerando inspirações, experiências e metáforas para iluminar o nosso próprio território de exploração.

Descrição — narrativas: um material importante para desenvolver esse olhar ao fluxo será prestarmos atenção a narrativas detalhadas de eventos e explorar como trazer à narrativa esse movimento que é tão presente na ação mas tende a desaparecer quando fazemos relatos posteriores sobre o que aconteceu.

Referenciais teóricos: Iremos costurar essas experiências e elementos também com campos de estudo já percorridos por outros autores que ‘levam a experiência à sério’ e que assim contribuirão para o processo de ‘sense-making’ e de aterramento das nossas reflexões e percepções. Estes autores são, em sua maioria, aqueles mencionados no começo deste texto.

— > Mais informações: https://bit.ly/2swxxXh

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