Suavizando a(s) curva(s): curando a pandemia e o planeta

Lúcio Proença
Escola Schumacher Brasil
7 min readApr 15, 2020
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Nos últimos meses, talvez pela primeira vez na história, o mundo globalizado passa a discutir massivamente (na grande imprensa, nas redes sociais, nos grupos de família e amigos) um gráfico de crescimento exponencial. Hoje, boa parte da população mundial acompanha diariamente a curva de aumento de casos de contaminação com o novo coronavírus. Em comum, apelos governamentais, hashtags e lives no YouTube e Instagram falam com desenvoltura para um grande público sobre a necessidade de “achatar a curva”. Aprendemos juntos que, eventualmente, quando essa curva “perder força” e começar a se inclinar para baixo, teremos um sinal de que poderemos respirar mais aliviados.

Figura 1- Casos ativos de COVID-19 no mundo em 2020 (fonte)

Na matemática, crescimento exponencial é aquele em que uma variável (por exemplo, os casos da doença COVID-19) cresce de forma acelerada. Ou seja, não é só a variável que cresce, a velocidade de crescimento também aumenta: quanto mais pessoas contaminadas pelo coronavírus, mais gente contaminando outras pessoas e, portanto, maior a velocidade da contaminação. No final de fevereiro, o Brasil identificou seu primeiro caso de coronavírus; uma semana depois tínhamos apenas mais 1 caso confirmado, mas nas semanas subsequentes os casos aumentaram para 34, depois para 346, 2.247, 6.900 até chegar a 16.000 na 7a semana (e segue aumentando de forma acelerada no momento em que este texto é escrito). Isso significa que, quanto mais a curva cresce, mais difícil de controlá-la.

Mas, acredite, esse crescimento vai ter um fim. No nosso mundo físico de carne e osso, o fenômeno do crescimento exponencial nunca é infinito e tem basicamente dois resultados possíveis: ou a curva, em algum momento, vai perder velocidade, se estabilizar e eventualmente decair, ou ela irá colapsar (cair de forma abrupta). A primeira opção é exatamente o que aconteceu com a China, Coréia do Sul e outros países que tomaram medidas eficazes para conter a epidemia (figura 2). A segunda opção é o que aconteceria em um cenário em que nada estivesse sendo feito para evitar as contaminações, onde a curva de casos ativos cresceria ainda mais rápido até colapsar, implicando num desastre humanitário de dezenas de milhões de mortes, decorrentes do aumento do número de doentes para além da capacidade de atendimento dos sistemas de saúde.

Figura 2- Casos ativos de COVID-19 na China em 2020 (fonte)

O que a população em geral não tem se dado conta ainda é que vivemos em meio a outras curvas exponenciais ainda mais perigosas para a continuidade da vida humana na Terra do que a epidemia do coronavírus. E pior: muitas dessas curvas são incentivadas por governos e instituições que defendem sua aceleração como parte de políticas de estabilização da “saúde”, no caso, econômica. Para entender a analogia, é importante revisitar a década de 1950 e as políticas de promoção de crescimento econômico acelerado instituídas naquele contexto para recuperar as economias nacionais dos efeitos da Segunda Guerra Mundial. O estímulo à produção de bens, serviços e infra-estrutura, alimentadas por combustíveis fósseis baratos, transformaram a presença humana no planeta em vários gráficos de crescimento exponencial, muito parecidos com os que vemos hoje em relação ao avanço da COVID-19. Crescimento da população mundial, crescimento do PIB, consumo de água, consumo de energia, emissão de gases do efeito estufa, contaminação do solo, são exemplos de curvas exponenciais que ganharam força nessa época. Alguns autores chamam este período de “A Grande Aceleração”, onde crescimentos que já vinham acontecendo desde a Revolução Industrial do século XIX tiveram sua aceleração intensificada. O site http://anthropocene.info/great-acceleration.php reúne gráficos de 24 variáveis mostrando esta aceleração (figura 3).

Figura 3- A Grande Aceleração (fonte)

A forma como nossa sociedade tem lidado com as informações deste tipo de gráfico tem sido, na maioria das vezes, reducionista. Nossa tendência é neles enxergar informações ora “boas” ora “ruins” e, assim, buscar uma solução que, separadamente, seja capaz de resolver cada situação. Por exemplo, para o aumento da emissão dos gases de efeito estufa, algo entendido como “ruim”, buscamos remediar o impacto com alguma ação, geralmente tecnológica (como aumentar as energias renováveis ou melhorar o controle de poluentes de indústrias). Para efeitos como o crescimento do PIB, o acesso à energia elétrica ou à telecomunicação, nossa tendência é assumi-los como “bons” e atuar para acelerá-los ainda mais. E assim, tratando cada tema de forma isolada, seguimos sem grandes mudanças no metabolismo da nossa sociedade, nunca conseguindo de fato reverter a tendência de quase nenhuma destas curvas.

Mas a verdade é que nada existe no mundo de forma isolada. Tudo está interligado. E dividir estes gráficos somente entre “bons” versus “ruins” não nos ajuda a enxergar a relação entre todos eles e o papel de cada um em uma perspectiva sistêmica. Se enxergamos que tudo está interligado, ao invés de tentar suprimir o que julgamos “ruim” e aumentar o que julgamos “bom”, podemos concentrar forças em buscar um equilíbrio do todo. E há algumas décadas muita gente tem se dedicado a esta visão mais sistêmica do mundo com insights importantes sobre como alcançar um melhor equilíbrio.

Na década de 70, o relatório “Os Limites do Crescimento” já havia identificado que todo este crescimento exponencial não é sustentável em um planeta finito (Figura 4). E alertou que, se quisermos tornar a presença humana na Terra sustentável, há duas variáveis principais que precisam ser estabilizadas para possibilitar a estabilização de todas as outras: população e economia (Figura 5).

Cenário de colapso do sistema global, usando o modelo WORLD3. A busca por acelerar continuamente o crescimento econômico faz a atividade industrial crescer a taxas bem mais altas do que o crescimento da população, os níveis de poluição dispararem e os estoques de recursos não-renováveis diminuírem rapidamente; Em algum momento os níveis de poluição comprometem severamente a produção de alimentos, levando a um colapso populacional e da atividade industrial.
Cenário de sustentabilidade do sistema global, usando o modelo WORLD3. A população e a atividade industrial se estabilizam, permitindo a redução da poluição por melhorias tecnológicas, uma retomada e posterior estabilização na produção de alimentos e uma diminuição na taxa de uso de recursos não-renováveis.

Uma das autoras deste estudo, chamada Donella Meadows, concluiu com sua experiência de décadas em modelagem de sistemas que, frequentemente, as pessoas sabem quais são os pontos mais sensíveis para mudar o comportamento de um sistema, mas trabalham para alterá-lo na direção contrária. É exatamente isso que temos feito com relação à economia mundial. Sabemos, há décadas, que mudar a economia impacta todo o sistema do planeta Terra, mas ao invés de trabalhar para estabilizar a economia num tamanho suportável para o planeta, envidamos enormes esforços para fazê-la crescer infinitamente e de forma acelerada. Praticamente todo país tem este objetivo, estando inclusive oficializado como um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (ODS 8.1). Por quê?

Em seu livro “Economia Donut”, a economista Kate Raworth elenca várias razões para nosso “vício” em crescimento econômico e mostra como, ao longo do século XX, nossa sociedade foi sendo configurada para funcionar baseada nisso. O vício vai desde o sistema financeiro (como a emissão de moeda a partir de dívidas, que dependem de crescimento econômico para serem pagas) até questões psicológicas (na sociedade de consumo, “crescimento econômico” foi associado psicologicamente a “prosperidade” e “status”). Mais do que uma conveniência financeira, “crescimento econômico” é hoje um dos pilares da narrativa neoliberal que domina a política há pelo menos 40 anos, sendo oferecido como solução para qualquer que seja o problema, desde desigualdade de renda até o aquecimento global.

Segundo esta narrativa, o contínuo desenvolvimento tecnológico permitiria sustentar indefinidamente um “crescimento verde”, por meio da dissociação entre crescimento econômico e uso de recursos naturais. Na prática, no entanto, não há evidências empíricas de que essa dissociação seja possível, muito menos na velocidade e intensidade necessárias para evitar um aquecimento global de mais de 1,5 ou 2ºC (meta do Acordo de Paris).

Já para a atual narrativa que vemos se desenrolar com a epidemia do coronavírus, tem chamado atenção o aprendizado sobre o quanto estamos inexoravelmente interligados. Driblando fronteiras, embargos e distâncias entre as nações, o vírus cruzou o espaço de continentes e, em poucos meses, se fez presente muito perto de cada um de nós. Ainda sem uma vacina que nos imunize, contamos com a mobilização uns dos outros para que o isolamento social preserve nossas vidas.

É por isso que estabilizar a curva exponencial de crescimento da COVID-19 é hoje um esforço global e individual. Juntos, temos entendido que existe um limite a ser respeitado (do sistema de saúde) e, com o passar das semanas, temos buscado a duras penas formas de chegar a um novo equilíbrio, aquele que estabilize o atual crescimento exponencial da epidemia.

Da mesma maneira, também precisamos encontrar caminhos para estabelecer outros equilíbrios no planeta que nos abriga. Novas formas de nos organizar como sociedade que permitam que a vida humana na Terra continue o seu ciclo de forma saudável, elegante, sagrada. E isso significa, entre outras coisas, co-criar uma economia em equilíbrio, uma economia em homeostase, uma economia a serviço da vida. E repensar nossa economia para promover bem-estar social e regeneração ecológica, mesmo sem crescimento econômico, pode ser um dos passos iniciais. Como Satish Kumar sempre nos lembra, o significado original da palavra “economia”, do grego oikonomia, não é ciência da “maximização de lucro” ou da “multiplicação de riquezas”, mas sim do “gerenciamento do lar”.

Como seria essa outra economia a serviço da vida? Que tipos de instituições se encaixam nessa nova economia? Quais são as políticas públicas necessárias para apoiar o surgimento dessa economia? Que formas de trabalho atendem a este chamado? Que comportamentos e narrativas respondem a estes anseios?

Este texto foi escrito por Lúcio Proença com contribuições de Fernanda Rocha Vidal e Flavia Bueno, e integra os movimentos da Rede Schumacher Brasil para refletir e agir em relação à pandemia do coronavírus.

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Lúcio Proença
Escola Schumacher Brasil

ambientalista, servidor ambiental federal, doutorando em economia ecológica, interessado na interface entre pós-crescimento, agroecologia e agrofloresta.