O que é ficção especulativa?

Jacob Paes
Escotilha NS
Published in
5 min readJan 29, 2019

Pense em um guarda-chuva que consiga abrigar diferentes sensações, perspectivas e realidades. Um guarda-chuva que se deixa livre de preconceitos ou amarras para pensar em um mundo mais engajado e justo. Ou ainda, um guarda-chuva capaz de abrigar especulações, críticas e provocações sobre a sociedade. É a esse guarda-chuva que chamamos de ficção especulativa.

Assim como o romance, a crônica ou o conto, por exemplo, a ficção especulativa é um gênero literário. Os gêneros literários nada mais são do que formas de linguagem, e é graças a eles que conseguimos compreender os diferentes textos com quais nos deparamos diariamente. Uma placa de trânsito será reconhecida como uma placa de trânsito esteja você no Brasil, na Inglaterra ou no Japão. Isso também vale para um jornal, por exemplo. Assim, os gêneros textuais nos ajudam a nos comunicarmos melhor.

Como já escrevi no Blog do Book4you, “os gêneros literários, por sua vez, são reconhecidos, basicamente, por contarem com um foco narrativo (aquela voz que conta a história, o narrador) e a presença de personagens (os seres que dão ação à história), que estão dentro de um enredo (a história que está sendo contada: um conflito que quebra a normalidade das coisas, gera dúvidas, faz os protagonistas tomarem decisões, que geram repercussões) com tempo e espaço”. E a ficção especulativa é o gênero que de certa forma desafia ainda mais essa quebra da “normalidade” das histórias, muitas vezes para nos tirar da nossa zona de conforto de maneira brutal e nos alertar para um perigo, para algo que corrói o nosso mundo aos poucos.

A ficção especulativa abriga subgêneros que lidam com essa motivação de diferentes formas. Há a ficção científica, cujas bases sempre estão ligadas a eventos científicos; o terror e o horror (sendo a diferença entre esses dois termos assunto para outro post), que se diferenciam pelo aspecto macabro e o objetivo de chocar o leitor; e a fantasia, que se desprende bastante do que é considerado real, mas sem ter uma base científica ou um elemento macabro, e muitas vezes remonta às histórias orais. Mas o guarda-chuva da ficção especulativa abarca ainda muitos outros subgêneros, como as histórias de super-heróis, as utopias e distopias e também as histórias sobrenaturais.

Como outros campos culturais, a ficção especulativa é um domínio de atividade que existe não apenas através de textos, mas através de sua produção e recepção em múltiplos contextos. O campo da ficção especulativa reúne formas extremamente diversas de ficção não mimética, operando em diferentes mídias com o objetivo de refletir sobre seu papel cultural, especialmente em oposição ao trabalho realizado por narrativas miméticas ou realistas — Marek Oziewicz, no artigo “Speculative Fiction”.

Jason e Medea por John William Waterhouse (Reprodução).

As origens do termo

As raízes da ficção especulativa podem ser encontradas até mesmo em histórias clássicas. São exemplos os antigos dramaturgos gregos, como Eurípides e sua peça Medeia, conhecida por ter chocado os atenienses por volta de 431 a.C. Isso porque a história retrata a vida de uma mulher tomada pela fúria, que se revolta contra o status quo da sociedade em que vive. Para se vingar de seu marido, ela chega a cometer filicídio, matando os filhos que teve com ele.

Ao longo dos anos, muitos termos foram utilizados para “classificar” histórias como essa, que, de maneira geral, tentam trazer à tona a psicologia humana, dar sentido ao mundo ou responder a seus desafios das mais inventivas maneiras. Já utilizou-se, por exemplo, “ficção histórica” ou “especulação ficcional”. Essa mudança é natural, uma vez que uma das características dos gêneros textuais é a sua mutabilidade; eles estão em constante mudança e sempre refletem sua época.

Mas foi em meados do século 20 que surgiu o termo “ficção especulativa” na língua inglesa, e de uma maneira mais próxima do que conhecemos hoje. Foi em fevereiro de 1947, no editorial do jornal The Saturday Evening Post, que o termo foi utilizado por Robert A. Heinlein, embora o tenha empregado para se referir à ficção científica — mais tarde excluindo claramente a fantasia. No entanto, o termo apareceu algumas vezes antes disso, em trabalhos isolados. Já nos anos 2000, começou-se a utilizar de maneira mais ampla para se referir ao conjunto de gêneros citados aqui.

Ficção especulativa hoje

As classificações literárias podem ser subjetivas, e com a ficção especulativa não poderia ser diferente. Ainda mais por conta de todo esse histórico do termo. Portanto, o entendimento do que é ficção especulativa pode variar.

No livro In Other Worlds: SF and Human Imagination, Margaret Atwood, por exemplo, autora de O conto da aia (The Handmaids’s Tale), já declarou que considera as histórias “sem marcianos” como ficção especulativa de verdade, ou seja, a autora restringiria o termo a tudo aquilo que “realmente poderia acontecer”. No livro, Atwood se envereda sobre outra eterna discussão: de o que conta como ficção científica e o que conta como fantasia, analisando falas de outros clássicos da ficção especulativa, como Ursula K. Le Guin (A mão esquerda da escuridão) e obras como a de H.G. Wells (A guerra dos mundos).

É de rixa semelhante que também surge o emprego do termo “ficção especulativa” como um contraponto para a ficção científica, diferenciando um suposto enredo que não seja “puro” em relação às bases científicas e, assim, até mesmo sendo considerado pejorativo. No entanto, é esse tipo de preconceito que acaba por prejudicar a difusão dessas obras e cria um estigma até hoje difícil de ser combatido.

Se remontarmos a tempos clássicos, como vimos, as histórias que fugiam da realidade sempre existiram, mostrando que nós precisamos delas para enxergarmos coisas que não somos capazes de ver facilmente no plano realístico. A verdade é que existe espaço para diferentes histórias, e a ficção especulativa é o guarda-chuva que consegue abrigar aquilo que é diferente, e com o qual precisamos — ainda no século 21 — nos acostumar a aceitar, respeitar e conviver com.

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Jacob Paes
Escotilha NS

Editor de livros, graduado em Produção Editorial e estudante de Letras/Italiano. No tempo livre, curte séries, filmes, carros e, claro, livros @tresemeiopodcast