Um aperitivo de “O outro” em plena sexta-feira 13

Escotilha NS
Escotilha NS
Published in
16 min readDec 13, 2019

Um dos livros mais aguardados pelos assinantes da Escotilha em 2019 foi, sem dúvidas, O outro — um verdadeiro clássico do terror, que influencia ainda hoje todo o gênero. O livro conta a história de Holland e Niles Perry, gêmeos idênticos de 13 anos. Eles vivem de maneira assustadoramente próxima — quase o suficiente para ler os pensamentos um do outro — mas não poderiam ser mais diferentes. Um é ousado e travesso, a típica má influência; o outro é doce e gentil, o tipo de garoto que é o orgulho dos pais. Em meio à morte do sr. Perry e a decorrente reclusão da mãe, a fazenda do tradicional clã passa a ser o cenário perfeito para as brincadeiras dos gêmeos, que se tornam cada vez mais sinistras e macabras.

Com mais de 3 milhões de exemplares vendidos, o best-seller de Thomas Tryon é um misterioso exame da escuridão que habita todos nós. A impecável recriação da vida pacata de uma cidade americana nos anos de 1930, que lentamente é tomada por uma nuvem de terror, e o manejo hábil do psicológico das personagens da história o levaram a obter aclamações tanto do público quanto da crítica, o que acabou por alçá-lo à posição de uma das obras mais influentes do gênero.

A seguir, você confere um trecho do posfácio de Dan Chaon para a edição enviada aos assinantes, dando uma ideia do “clima” da obra, bem como a introdução do livro, que certamente já nos deixa esperando por mais.

Clique aqui e assine nossa newsletter para receber mais conteúdos como este!

Li pela primeira vez o romance de Thomas Tryon, O outro, no verão em que fiz treze anos. Não sabia quase nada sobre o livro ou o autor. Não sabia que Tryon fora um ator famoso que parou de atuar depois de se tornar escritor. Eu nunca tinha visto a série de TV que ele protagonizou, Texas John Slaughter, ou seus muitos filmes, como O Cardeal, pelo qual ele recebeu uma indicação ao Globo de Ouro em 1963. Eu nem sabia que O outro havia sido um grande best-seller — com mais de 3,5 milhões de exemplares vendidos — e que fora, junto com O bebê de Rosemary e O exorcista, um dos precursores da moda do horror na década de 1970.

Na época, eu morava no Nebraska. Era 1977, e eu, bastante ignorante e inocente, havia comprado uma edição barata da Fawcett da cesta de promoções por vinte e cinco centavos. Estava passando o verão mofando em um vilarejo minúsculo e isolado, não muito diferente da Pequot Landing de Tryon, e meu interesse era, basicamente, ler uma história de terror sobre gêmeos. Gêmeos eram bizarros, eu achava, e ao mesmo tempo fascinantes. Havia Niles Perry, o “bonzinho” — eu me identificava com ele, é claro — , e havia seu irmão, Holland, que era sombrio, misterioso e astuto. Eu era a única criança da minha idade naquela cidadezinha, e meio que gostaria de ter um irmão ousado e impetuoso. Então me sentei sob uma árvore no quintal e mergulhei em um pesadelo.

Consigo me lembrar vividamente do quanto o livro me impressionou e mexeu com a minha cabeça. “Legerdemain” foi uma palavra que descobri nas páginas de O outro, uma palavra que até hoje associo com o mundo gótico e onírico da fazenda da família Perry. Legerdemain — prestidigitação — é uma boa palavra para este livro, um romance que nunca é exatamente o que parece, um livro que engana o leitor repetidas vezes com suas formas quiméricas, com suas reviravoltas evasivas.

Que tipo de livro é este, afinal? De início, parece um thriller psicológico bastante tradicional, estruturado em torno de uma série de mortes assustadoras, macabras e violentas. Parece se assemelhar, em especial, ao subgênero “o psicopata mora ao lado”, no qual um vizinho ou parente teoricamente inofensivo se revela ser, na verdade, um assassino a sangue frio — pense no Tio Charlie de A Sombra de Uma Dúvida, de Hitchcock, ou no jovem Ripley de O talentoso sr. Ripley, de Patricia Highsmith. Alguns críticos compararam O outro ao livro de 1955 The Bad Seed, de William March, um romance sobre uma menininha assassina com uma predisposição genética para o mal, e os leitores podem ter começado a leitura da obra de Tryon esperando o tipo de susto excêntrico presente no livro de March e na subsequente versão cinematográfica, em que Patty McCormack, com os cabelos louros presos em marias-chiquinhas, encarnava a minisociopata sapateante como uma imitação satânica de Shirley Temple.

Mas se O outro certamente traz sua cota de cenas grotescas e sangrentas — morte por forcado, o “bebê fada” no barril de vinho — , também é óbvio que elas se desenvolvem a partir de algo mais sutil que uma série de mortes arrepiantes.

Conforme o livro avança, percebemos que a premissa começa a, lentamente, se transformar sob nossos pés. Enquanto ela continua seguindo a estrutura de um livro de psicopata, com o número de mortos crescendo sem parar, a identidade do seu assassino central começa a ser cada vez mais questionada. A dúvida não é simplesmente “O que Holland vai fazer agora?”, mas sim “O que é Holland?”.

Estamos lendo uma história de fantasmas? Uma história de possessão demoníaca? Um conto de loucura e ilusão? A narrativa sutilmente começa a parecer cada vez mais um romance de assombração, na tradição de A outra volta do parafuso, de Henry James, ou de A maldição na casa da colina, de Shirley Jackson. Como nestas histórias, o elemento sobrenatural — o fantasma — é ambíguo. As figuras que parecem assombrar a governanta de James e seus jovens pupilos são realmente espíritos? Ou são fragmentos da imaginação febril da jovem, alucinações venenosas com as quais ela infecta as crianças sob seus cuidados? A casa da colina de Jackson é realmente malévola, ou é simplesmente um reflexo da mente instável de Eleanor Vance ao mergulhar na psicose?

No fundo, porém, O outro não é sobre o sobrenatural. Em vez disso, o livro nos leva cada vez mais às profundezas da possibilidade da loucura do personagem principal. Ao chegarmos à terceira parte, se torna claro que o que estamos lendo é uma história de autoengano — algo semelhante ao This Sweet Sickness, de Highsmith, ou Noite sem fim, de Agatha Christie, ou Nós sempre vivemos no castelo, de Jackson. Esses três livros trazem reviravoltas chocantes, revelando que os personagens principais não são, de forma alguma, quem pareciam ser.

Dan Chaon é professor na Oberlin College, onde ensina escrita criativa e literatura. É também autor de diversos livros, entre eles os romances Aguardo sua resposta (Bertrand Brasil) e Among the Missing, pelo qual foi finalista do National Book Award. Já teve trabalhos publicados pela Best American Short Stories, pela The Pushcart Prize Anthologies e pela The O. Henry Prize Stories. O posfácio reproduzido aqui foi escrito em 2012, para a edição de O outro da New York Review Books.

Confira agora um “aperitivo” de O outro, enviado aos assinantes da Escotilha em outubro:

Quantos anos você acha que a srta. DeGroot tem mesmo? Uns 60, pelo menos, não diria? Ela está aqui desde que eu me lembre — já faz um tempo, se for calcular — , e sei que chegou alguns anos antes disso. O que deve lhe dar uma ideia de como aquela mancha no teto deve ser velha, porque ela diz que está ali desde que ela se lembra, a srta. DeGroot. Está vendo aquela parte úmida ali no gesso? É de infiltração. A chuva pinga do telhado, sabe? Só que ninguém conserta. Eu fico no pé deles há anos, mas é impossível fazer esse pessoal levantar um dedo por aqui. A srta. DeGroot diz que, para ela, o borrão — é uma mancha d’água, afinal — tem os contornos de um país de algum lugar do mapa — não lembro qual, mas algum ponto geográfico específico que ela tem em mente. Ela tem uma boa imaginação, não acha? Talvez seja uma ilha. Tasmânia, será? Ou Zanzibar? Madagascar? Não me lembro, de verdade. Ouvi recentemente que mudaram o nome de Madagascar. Será que é verdade?, eu me pergunto. Tenho que perguntar a ela — à srta. DeGroot, quer dizer. Difícil imaginar o mundo sem uma Madagascar, não é? Bem, não é nada de mais.

A marca no teto só fica maior e mais escura a cada ano. Uma grande mancha ondulada e cor de ferrugem. Como aquela outra mancha, a em cima da cama dele. Estranho eu me lembrar disso, não? Você nunca deve ter visto, mas — bem, cá entre nós, esta aqui, neste quarto, me lembra daquela naquele quarto. Só que para mim não parece um lugar do mapa, como a srta. DeGroot sugere, para mim parece ser… Você vai achar que estou perdendo a cabeça, mas para mim parece um rosto. Sim, de verdade: um rosto. Está vendo os olhos, ali, aqueles dois espaços escuros? E o nariz logo embaixo? E a boca fica ali — veja como ela fica curvada nos cantos. É bem benigno, para mim. Me faz pensar em… Esqueça, você vai mesmo pensar que enlouqueci.

Está estranhamente seco este ano. Não chove há meses, então a mancha não tem se espalhado tanto nos últimos tempos. Mas acho que isso vai acabar acontecendo. É inevitável. Morte, impostos e aquela maldita mancha. Acho que, se dependesse da srta. DeGroot, provavelmente eles fariam alguma coisa sobre a questão, mas a srta. DeGroot, percebi, não tem muita influência por aqui. O que é mais uma mancha de água no teto para eles — para alguém como eu. Um ninguém como eu, talvez eu devesse dizer. Eu não gosto nada desse lugar. Por quê? Pergunte à srta. DeGroot, ela vai poder te contar. A alegrinha engraçadinha desesperadinha srta. DeGroot. (Quantos anos ela deve ter? Eu nem sei o nome dela. Hilda? Olga?) Imagino que o teto vai acabar inteiro numa mancha marrom, se eu viver tempo bastante. E aí ele vai cair todo em cima de mim. Só tem uma coisa: eu não vou viver o bastante para ver isso acontecer. Não que isso importe a alguém.

Está de noite. Está vendo aquele pedacinho de céu pela janela? (Como se desse para ver pela janela, está tão suja.) Mas eu meio que consigo. Lilás, ametista, malva… índigo, talvez, aquele tom azul-arroxeado, mas bem claro. Qualquer uma dessas, talvez uma mistura de todas, é a cor que vejo pelo vidro nublado, cuidadosa e geometricamente dividida em nove oblongos perto daquelas montanhas negras rígidas, enquanto me deito aqui na cama, observando esse pedacinho de céu que me é exposto. (A srta. DeGroot me diz que tenho sorte por ficar aqui, entre os telhados e as chaminés; é mais calmo, ela diz; talvez tenha razão. E dá para ver a lua, quando tem lua. Sim, acho que é possível que tenha lua.) Lilás. Ametista. Ou lavanda; rosé, quase. Aqui na cama, vejo como a luz está diminuindo devagar, já se aprofundando, uma luz trêmula e opalescente. O ocaso, se você quiser ser poético. Não, não sou tanto da poesia. Ele era, é claro; não que a imaginação dele fosse melhor que a minha, para dizer a verdade. Logo será crepúsculo, depois noite de novo. Sempre é a parte mais solitária do dia para mim, esse lento e doloroso intervalo redutor antes de a noite por fim se assentar. O que os franceses chamam de l’heure bleue, um momento de rara convivência, gaiatice, bonhomie — todas coisas perdidas a mim neste lugar — , pessoas planejando animadamente, enquanto comem canapés, seus programas noturnos — bacanais, rendezvous, galanteios. Figuras de cores vivas e brilhantes, arrepiadas de excitação, atravessando os boulevards, luminosas na escuridão pública, seus reflexos trêmulos nas poças de luz.

Sei o que você deve estar pensando: loucura. Está pensando: ele nunca foi a Paris. Você tem razão. Nunca fui. Mas tem uma TV no andar de baixo, na sala comunitária, e às vezes no jornal — na edição das seis; eles nunca nos deixam ficar acordados o suficiente para assistir à das onze — eu vejo cenas de Paris. E já li muitos livros, ah sim, e vi uns filmes. O resto é tudo minha imaginação, é verdade. A srta. DeGroot não é melhor que eu, nem ele, aliás. Não, eu nunca fui a lugar nenhum, nem vou. Nem vou, temo, deixar esse mundinho preciso em que habito. Um lugar solitário, você sem dúvida está pensando. E tem razão. Ainda assim, o que eu poderia fazer sobre isso? Sinto falta… de quê? O que é que sinto, o que acho que sinto? Esse desgosto vago, essa doença? Acho que, de alguma forma torta e terrível, sinto falta… dele.

Este lugar é um horror. Odeio. O aquecedor se sacode com o vapor, as torneiras engasgam com ferrugem, o teto, como já comentei, está todo manchado. Está mais frio este mês, frio, triste, horrendo; uma estação inóspita. E silenciosa. Houve uma época em que, mesmo dessa altura, era possível ouvir os bondes; acabaram agora, e os ônibus são menos barulhentos. Eu gostava de observar os bondes; lembro a musiquinha que sempre me fazia pensar neles. Sinto falta deles. Não tem muita coisa para fazer aqui. Se fico com os outros, eles riem de mim, zombam do meu nome e acaba tendo confusão. Não, nada violento, pelo menos nem sempre. Mas o resultado é que fico sozinho; uma existência tediosa, você há de concordar, mas a srta. DeGroot diz que é melhor assim. Melhor confiar na srta. DeGroot. (Ela me prometeu que traria tabaco para o meu cachimbo — Prince Albert, uma marca que fumo desde que tinha 18 anos; já faz mais de trinta anos.)

Mais tarde. Ainda lilás, o céu. Não; rosa antigo; sim, é mais aquele tom de rosa antigo das flores de trevo. Eu me lembro que havia um arbusto de trevos ao lado do poço nos fundos da casa, o trevo que ela amava tanto — foi seu buquê de casamento, sabe — , e ela ficava ali parada, encarando, e você se pergunta: por quê? E por quanto tempo? Como ela amava os trevos! Será que ela os plantou ao lado do poço, eu me pergunto, ou será que eles haviam crescido silvestres? Não acho que mais ninguém tenha pensado nisso.

Sabe o poço? Aquele lugar escuro e secreto em que o acidente aconteceu — um dos acidentes, devo dizer. O enforcamento. Não, não desse tipo, mas de certa forma quase tão terrível. Consegue ouvir o girar áspero da polia enquanto a corda a atravessa, girando a roldana enferrujada, baixando seu fardo até a escuridão? Os gritos selvagens; gritos terríveis, abismais, indignados de fúria, de horror. Não. Eu disse que não foi esse tipo de enforcamento, não uma dessas execuções públicas — bem, sim, de certa forma uma execução, mas só porque Holland não gostava de gatos. Odiava, na verdade. Sim, era um gato; não falei isso? Encrenca, o animal da velha, seu bicho de estimação. Amarrou a corda no pescoço de Encrenca — ele sabia fazer uma forca sem dificuldade — , o arrastou pelo quintal e enforcou o gato no poço. De raiva. O problema foi que ele quase se enforcou junto. Pobre Holland.

Niles, o irmão (estava brincando de bandido e mocinho perto da bomba), viu tudo, ouviu a confusão — miau! miaaaaaau! — e correu para ajudar.

Uma cena terrível, você pode imaginar, o gato arranhando, bufando, Holland rindo — diabolicamente, é claro, e de repente, em meio à terrível confusão, gritando quando tropeçou no muro do poço, o animal junto — miau! miaaaaau! — e teve quem pensasse, por um breve momento, que Holland estivesse — mas não, ele falou, não, ele só se machucou.

— Socorro! Alguém ajude! Ele se machucou! Holland se machucou! Socorro!

E sem dúvida havia tempo ainda; o poço estava seco; o gato, pobre criatura, estava morto da silva, e acabou essa história. Mas Holland — um curativo aqui e ali e ficaria bem, embora sentisse dores por uma semana, o que é bem feito por se enforcar gatos em poços. (“Está dolorido, Holland? Está doendo?” “Claro que está doendo, o que você acha?”) Mas acidentes, disse ele, acontecem. Curioso. E por seu heroísmo além do dever — O quê? Um presente, bobo. Olhe, um presente! De Holland; não, na verdade, presentes, não presente.

E cuidado com os gregos; uma máxima especialmente adequada nesta instância.

Pobre gato.

Você não lembra da casa dos Perry, lembra? Não existe mais, pelo que me disseram. Tudo aqui acabou. O poço foi preenchido e coberto de grama, mas poderia ser até sal, considerando o que sobrou. Os prédios — o celeiro, o silo de maçãs embaixo, o frigorífico, o galpão da fonte e a cocheira, o silo de milho, o moinho de sidra, tudo acabou. Triste pensar nisso; dizem que eu nem reconheceria o lugar hoje em dia. Os luteranos compraram a propriedade e por um tempo a casa serviu como igreja, mas até ela foi demolida depois e substituída por uma construção mais nova e maior. Tem uma antena de televisão no telhado. Os pântanos estão secos, os pastos subdivididos em lotes, e onde a gente antes atravessava os riachos foram construídas ruas, com postes e calçadas, cercas de arame e garagens para dois carros. Do que havia, nada mais resta.

Era uma casa velhíssima, de mais de duzentos anos, construída em um terreno amplo que ia da Valley Hill Road até uma enseada no rio. Nos velhos tempos, é claro, era uma fazenda de verdade — tanto o Vô Perry quanto o pai dele eram conhecidos na região como o Rei da Cebola. Isso foi antes de eu nascer, mas dá para imaginar aquelas carruagens aracnídeas, com suas rodas finas que nem palitos, sussurrando pela entrada de cascalho, os capitães ianques levando os barcos rio acima para recarregar com cebolas no atracadouro, aquelas cebolas prosaicas e sujas de terra a toneladas, em sacas de estopa vermelha, partindo em direção aos portos exóticos do Caribe: Jamaica, Trindade e Tobago e Martinica. E em Pequot Landing como os Perry prosperaram!

Pequot Landing — tenho certeza de que você sabe como é, uma cidadezinha de beira de rio típica de Connecticut, despretensiosa e envelhecida. Olmos esplêndidos formando alamedas sombreadas pelas ruas — isso foi antes da peste holandesa, sabe — , gramados amplos e bem-cuidados, verdejantes em junho, esturricados em setembro, casas de madeira, alvenaria ou estuque, às vezes os três ao mesmo tempo. A casa dos Perry, robusta, imensa, espaçosa. As ripas de madeira da fachada, antes brancas e então cinzentas de sujeira, as venezianas verdes com a tinta descascando emoldurando as janelas altas, os vidros manchados e leitosos, as calhas em pátina engolindo as últimas folhas de outubro. Uma casa confortável: varanda, pórtico com colunas de um lado, lareiras em quase todos os cômodos de pé-direito alto, cortinas de renda por todo lado, até nas janelas do sótão. Manchas de infiltração no topo das paredes.

O celeiro era venerável, úmido, meio torto e coberto de musgo, encarapitado em uma leve colina no fim do caminho atrás do frigorífico. No topo do telhado havia um domo, uma construção quadrilátera em que pombos eram criados. Esse era o ponto mais alto das redondezas, e naquela pequena colina havia um cata-vento, um falcão peregrino, o emblema dos Perry, absorvendo a paisagem.

Com a morte do Vô Perry — ele morreu logo depois da Primeira Guerra Mundial — , a fazenda deixou de ser uma fazenda. Com exceção de um faz-tudo, o velho Leno Angelini, todos os funcionários foram dispensados; o gado, descartado; os arados e ancinhos, vendidos ou largados para enferrujar. Nem Vining nem o irmão mais novo, George, tinham interesse em cebolas ou em criação de qualquer tipo de animal. A terra ficou baldia, a fazenda, moribunda, e todo dia útil Vining deixava a família — a esposa, os meninos, Holland e Niles, e a filha, Torrie — e dirigia seu Reo até um bem-sucedido escritório de seguros em Hartford. A propriedade dos Perry nessa época já era lar daquela silenciosa e decidida torre de força — Ada Vedrenya, que, quando as crianças cresceram e suas demandas aumentaram, fechara sua casa em Baltimore e viera morar em Pequot Landing para ajudar a filha, a esposa de Vining, com as tarefas domésticas. George já tinha se mudado para Chicago, e quando Vining Perry morreu, em 1934, a casa tinha um ar decididamente precário; o frigorífico era só uma casca abandonada, o porão abaixo da casa estava vazio, assim como os estábulos, que só tinham dois cavalos, o galinheiro só abrigava um galo abandonado e algumas galinhas poedeiras, os utensílios foram largados no galpão de ferramentas do sr. Angelini, e o moinho de sidra era o único que seguia em operação, todo outono prensando os frutos do pomar que estavam machucados demais para serem vendidos ou usados em casa.

Talvez você tenha lido sobre o acidente, naquele sábado frio em novembro, em que Vining Perry, pai dos gêmeos de 12 anos, Holland e Niles, veio a falecer enquanto descia um dos pesados cestos da eira até o silo de maçãs para armazenagem durante o inverno. Todos consideraram uma grande tragédia. Nos oitos meses depois do funeral de Vining Perry, ninguém podia brincar lá. Mas em junho, com o começo das férias, a disciplina relaxando e os livros de história e geografia guardados, quando o horário de verão já tinha começado, os adultos estavam ocupados e as tardes eram deliciosamente longas e perfeitas para brincadeiras no silo de maçãs, havia quem ignorasse a proibição. Como era fresco e escuro e quieto! E secreto também. O lugar guardava um fascínio estranho — dava para sentir, e não era só porque tinha sido onde a morte mostrara sua cara.

Eu contei à srta. DeGroot toda sorte de histórias sobre o silo de maçãs. Ela diz que era um lugar assustador; ela tem razão. Enterrado lá no fundo, no coração do celeiro, com paredes grossas de basalto da Nova Inglaterra e sem iluminação elétrica, o lugar era um espaço clandestino maravilhoso. Por seis meses do ano, de outubro a março, as cestas eram empilhadas em fileiras, cheias de maçãs; cebolas cavadas do jardim da cozinha ficavam penduradas nas vigas, junto com guirlandas de pimentas secas, e as prateleiras, cobertas de beterrabas, cenouras e nabos. Mas nos outros meses, seu estoque de forragem gasto, o silo de maçãs servia a outro propósito mais ardiloso. Escondido da luz e protegido contra intrusos, a gente sentia que aquele era o tipo de lugar que poderia ser povoado pela imaginação infantil com todas as criaturas que um menino poderia criar: reis, cortesões e criminosos, o que fosse; palco, templo, prisão, lá embaixo as sementes eram lançadas e de lá cresciam em uma só noite, como cogumelos. Um lugar cujas paredes podiam se abrir para o vento e o espaço com um pensamento, o teto e o chão desaparecendo em um vazio sem limites, madeira e pedra e cimento dissolvendo-se à primeira palavra.

Mas em junho, com o verão inteiro estendendo-se infinito à sua frente, o silo de maçãs era proibido e era preciso ser esperto e escrupuloso para não virar prisioneiro. Você escondia os fósforos numa latinha de tabaco Prince Albert e uma vela velha presa numa garrafa de Coca-Cola para iluminar. Tudo era segredo; você ouvia com atenção, uma orelha erguida, temendo a descoberta; você supunha todo som ser Traição, Gigante, Horror Caminhante…

E então, curiosx para saber mais? Então fique de olho em @escotilhans nas redes sociais para descobrir todos os detalhes desse e de outros livros do clube. Boa sexta-feira 13! 😈

--

--

Escotilha NS
Escotilha NS

O primeiro clube de assinatura de livros de ficção especulativa do Brasil! Experimente 😱🔮👽