o rei arthur e a escola

Larissa Lopes
escrevome
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6 min readApr 29, 2019

Olá. Eu sou Arthur. Meu nome foi colocado em homenagem ao rei, meus pais gostam de literatura medieval. Soa bem: Arthur. Arthur! Arthur. É um nome bonito. Porém, não me agrado com a ideia de ser rei, ser alguém que se considera melhor que os outros, só Deus pode ter e dar esse cargo e não fui predestinado para tal. Eu estou mais para o rei Max de Onde Vivem os Monstros do que o rei Arthur, mas ainda assim, prefiro não ser rei.

Estou com quinze anos e moro em Maceió, capital de Alagoas. Aqui é tão quente que só vivendo para compartilhar do sentimento, mesmo assim é acolhedor, a praia é bonita — costumo ir aos finais de semana, geralmente aos domingos. Estudo em uma das escolas mais caras da cidade, as pessoas dizem que é uma das melhores escolas, mas eu não concordo com a afirmação.

Eu sou um rapaz quieto, tenho apenas três amigos próximos (apesar de ser colega de muitos), aprecio literatura, principalmente as ficções que remetem a realidade, nada que envolva dragões ou seres mitológicos. Livro preferido? Essa pergunta é complexa. No colégio li Vidas Secas do Graciliano Ramos e achei impressionante. Por indicação da professora de literatura, Andressa, pude conhecer O Alienista — não sei da onde vem essa paixão desenfreada dos meus colegas por Bentinho, Simão Bacamarte é bem mais interessante. Mas talvez o livro preferido seja Admirável Mundo Novo do Huxley, também gostei bastante de Madame Bovary, ah, volto ao meu ponto inicial, essa pergunta é complexa; eu posso dizer do que gosto, mas não do que mais gosto. Constantemente as pessoas me encontram viajando em mim, criei um universo próprio no qual entro e saio do real. Quando tinha sete, mainha chegou a pensar que eu era autista, fui ao médico, mas não tenho autismo, esse é meu jeito. As pessoas andam assustadas e o médico sempre é acionado em qualquer circunstância. Não culpo minha mãe, como também não culpo todas as pessoas.

Minha família pertence ao que o professor de história chama de classe média. Mainha trabalha meio período como assistente administrativa na prefeitura da cidade e painho é gerente em uma empresa de telemarketing. Ele tem outros gerentes, parece que seu trabalho pertence a um sistema de pirâmide, mas não sei quem dá origem a tudo. Seria o presidente o dono da pirâmide? O presidente é o homem mais importante do país, segundo o que entendi até agora. Pela lógica, ele é quem contrata os gerentes, que contrata o meu pai, que contrata outros empregados… Faz sentido. Além de painho e mainha, lá em casa também tem a Agnes, minha irmã mais nova, está com oito anos, seu desenho preferido é Du, Dudu e Edu; assisto com ela quando me chama. Como ainda estamos no início do ano, meus pais não compraram nossos materiais escolares, disseram que a matrícula da escola foi muito cara, então estou usando o estojo de Agnes do ano passado que tem como tema a Branca de Neve e os sete anões, meus amigos não tiraram onda, um ou outro colega falou besteira. Na verdade é uma boa animação, acho que imita a vida real, uma branca escravizando sete trabalhadores braçais… Às vezes devaneio, vai ver nem é isso que a história quer dizer.

Acordo às 6h30 todos os dias, coloco uma máscara de alegria, engraçado, como se eu não vivesse cheio de sentimentos angustiantes, e vou para escola. Sento na quinta fileira, cadeira colada na parede do lado contrário à porta. Tenho três amigos que sentam perto — João, Marcela e Guga, mas conheço todos da sala… Essa é aquela pequena diferença entre amigos e colegas que mainha sempre fala. Ricardo Monteiro é o nome do coordenador da escola. Ele serviu no exército e menciona o ano de 1964 como glorioso na história do Brasil, diz isso com peito estufado; meu pai discorda. Ricardo foi Capitão, por isso temos que chamá-lo de Capitão Ricardo Monteiro. É cara fechada, nunca o vi sorrir, sempre muito sério. Diariamente vai à sala dar bom dia, e faz uma fala que segundo ele é de motivação, mas para mim é de desânimo.

TOC TOC

— Bom dia, turma. — Ricardo abriu a porta.

— Bom dia. — Falamos em coro.

— Preciso falar algo importante.

Ele entrou na sala e se posicionou na frente, afastando um pouco a professora Andressa.

— Vocês estão começando o segundo ano do ensino médio, essa já é a terceira semana de aula e eu quero perguntar: como está a preparação para o vestibular? Acham que é brincadeira? Todo o futuro de vocês está em jogo. Vou além, o dinheiro dos seus pais está em jogo. Não os decepcionem! Quero notas altas. Futuros médicos, advogados e engenheiros. Não sejam perdedores, vocês precisam ser melhores que os outros, não manchem a reputação da escola. Precisam estar à frente dos concorrentes. Agora, vão estudar.

“Sim, senhor!” foi o que me veio na mente. Fiquei calado. Todos afirmaram com a cabeça e ele saiu. Essa é a minha missão de vida: passar no vestibular e ser melhor do que os outros. Eu tenho o objetivo de ser como o rei Arthur, que conseguiu tirar a Excalibur da rocha primeiro que todos os Cavaleiros da Távola Redonda. Ridícula missão de vida.

Voltei para casa e senti o cheiro forte de alho, é mainha que está cozinhando. Acho que ela vai refogar o arroz branco que sobrou ontem. Deve ter chegado do trabalho há pouco tempo, meu pai só às 19h. Agnes está penteando o cabelo de uma boneca por enquanto que assiste televisão. Guardei a mochila e tomei banho. Almoçamos, lavei a louça e fui estudar. Muito conteúdo, minha mente não consegue assimilar, como vou ser melhor que os outros? Como vou ser o primeiro se não consigo decorar nem as fórmulas de física? Painho se esforça tanto, mainha também, não posso dar esse desgosto. Preciso ser o primeiro. Ansiedade. Suor. Banho. Janta. Louça. Estudar. Saudades de quando li Anna Karenina nas férias, estava tão relaxado.

6h30. Máscara. Escola. Quinta fileira. Bom dia, João, Marcela e Guga. Ricardo Monteiro. Desânimo. Raiva. Angústia. Casa. Mainha. Agnes. Du, Dudu e Edu. Almoço. Louça. Livros. Agonia. Jantar. Louça. Livros. Aflição. Tormenta. Inquietude. 6h33. Máscara. Escola. Quinta fileira. Bom dia, João, Marcela e Guga. Ricardo Monteiro. De novo, Ricardo Monteiro. É isso. Ricardo Monteiro! Esse é o meu problema: o Capitão. Na verdade, eu sou uma pessoa bacana e sinceramente, sou inteligente, meu problema é a pressão que esse homem me causa. Mainha e painho disseram que eu podia escolher o que quisesse no vestibular, eles me apoiariam. Ricardo Monteiro — ele é quem me causa nervosismo. Ele precisa sair da minha vida.

6h28. Ansiedade, ansiedade, ansiedade. Máscara. Escola. Sala de Ricardo Monteiro. Cheguei na sala de Ricardo um pouco aflito, ninguém me viu entrar. Ouvi ano passado que ele guarda um revólver em uma gaveta na escrivaninha, só preciso colocar na mochila e montar uma estratégia para usá-lo. Abri a gaveta e lá estava, arma prata com um cabo de madeira. Não deve ser difícil usar, vi nos filmes que Agnes assiste durante a tarde. Toquei na arma e um calafrio me tomou todo o corpo. Eu mataria um ser humano? Alguém semelhante a mim? Ele foi Capitão, participou do Golpe de 1964, já deve ter matado alguém, ou mandado matar, só estaria me vingando por essa pessoa. Ou talvez fazendo a mesma coisa que ele fez. Estaria me colocando no mesmo lugar que Ricardo? Sendo exatamente igual a ele? E se ele nunca foi responsável por uma morte? E se ele acredita que dizendo-nos para ser superior ao próximo está nos fazendo um bem? Ouvi um barulho, era alguém chegando perto da sala, me escondi. Ricardo abriu a porta, pegou uns papéis e saiu, mal olhou para escrivaninha. Nesse instante tocou o sinal da escola, estava na hora da aula. Deixei a arma na gaveta e fui embora.

O dia passou e desde que saí da sala de Ricardo me vivenciei tranquilo, como se um fardo fosse removido de minhas costas, não sentia isso desde o ano passado, quando comecei o ensino médio. O dia aconteceu exatamente igual aos outros, mas eu estava em paz. Percebi-me rei de mim por não seguir adiante o plano de tirar a vida de alguém. De não ser igual ao Ricardo, mas ao mesmo tempo, compartilhar com ele a condição de ser humano. Talvez ele fez o que fez no exército porque foi ensinado que aquela era a única opção correta, ou talvez ele de fato seja mau.

Dois anos se passaram desde esse ocorrido. Fiz a seleção do vestibular, tirei uma excelente nota, o bastante para passar em engenharia civil, que foi a sugestão de um tio por parte de pai, mas depois de muito pesquisar resolvi cursar Ciências Sociais, talvez assim eu entenda a sociedade que forma Ricardos, até seja capaz de ajudar alguns Ricardos e de ensinar muitos a não serem Ricardos.

Arthur, 10 de março de 2007.

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