Jaiane Valentim
Escrita de Impacto Social
8 min readJun 19, 2015

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Melhor do mundo cinco vezes pela Fifa, Marta, à esquerda, e Formiga, a mais veterana da Seleção (Foto: Getty)

Por que menino tem grama e menina tem plástico?

Discussão sobre evolução do futebol feminino vai muito mais além da falta de investimento e de visibilidade

Eu tinha apenas sete anos quando, em 1999, o Corinthians conquistou o Campeonato Paulista em cima do Palmeiras de Evair, Alex e tantos outros ídolos alviverdes. Pouco tempo depois, em uma manhã de domingo, assistia ao Esporte Espetacular juntamente com meu irmão. Na edição daquele programa, uma matéria com Edílson, o Capetinha, o cara das famosas embaixadinhas comentava a polêmica da final com o repórter entre uma petecada e outra na bola. Fiquei fascinada. Olhei para o meu irmão e pedi que me ensinasse a fazer ‘aquilo’. Ele respondeu que sim e, após sair de casa por uns instantes, voltou com uma bola balão, bem levinha. Não demorou muito para eu pegar o jeito e trocar a bola leve por uma de capotão.

Assistir aos jogos, não só do meu time de coração, o Corinthians, mas também dos outros times às quartas e domingos era interessante. Descobri que o futebol me atraía e quis começar a chutar e a driblar como eles e não mais só petecar. Queria tentar. Um dia tomei coragem e resolvi pedir para jogar com os garotos na escola, quando estava na segunda série. Dali em diante, participar dos jogos de futebol da escola com os meninos foi uma constante, do Ensino Fundamental até o Médio. Nunca tinham dez meninas para formar dois times. E demorou um bom tempo até eu entender por que isso nunca acontecia. Em parte porque não gostavam mesmo, em parte porque aquilo não era esporte para menina (ou elas foram induzidas a acreditar que não era).

Esse pré-conceito que mulher não pode jogar um esporte teoricamente masculino começou no século passado. Um dos primeiros registros de um jogo de futebol feminino aconteceu em 1921, entre mulheres do bairro Tremembé e Cantareira, na zona norte de São Paulo, segundo consta na dissertação de Mestrado em Educação Física de Eriberto Moura (Unicamp). Na época, o jornal A Gazeta noticiou a atração como algo ‘curioso’ e ‘cômico’. Na década de 40, em São João da Boa Vista, mulheres foram excomungadas pela Igreja Católica por praticar o esporte. Na mesma época, um decreto-lei do Estado Novo proibia a “prática de esportes incompatíveis com a natureza feminina”. O texto foi revogado em 1979 e, após 11 anos, a Seleção Brasileira feminina conquistava seu primeiro título internacional, a World Cup of Spain.

Não podemos negar que, depois de tantos percalços, a mulher conquistou seu espaço dentro do futebol, mas também não podemos negar que o machismo ainda existe nas entrelinhas. É só observarmos o quão as pessoas ainda se espantam com a genialidade de Marta. Comentários como “ela joga muito mais que muito homem” são comuns quando, vez ou outra, o futebol feminino ganha espaço na mídia e vira pauta de conversa de bar. Mas Marta é muito mais reconhecida mundialmente do que no próprio país. Cinco vezes melhor do mundo pela FIFA (Federação Internacional de Futebol), a jogadora tem 15 gols marcados em Copas do Mundo, o mesmo número que Ronaldo Fenômeno. E pode passar o alemão Miroslav Klose (16 gols) e se tornar a maior artilheira em Copas do Mundo. Marta é considerada a jogadora mais bem paga do mundo. Ela recebe R$ 910 mil por ano. Já o jogador mais bem pago do mundo, o argentino Lionel Messi, recebe 65 milhões de euros (algo em torno de R$ 225,45 milhões) por ano.

O investimento da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) para o futebol profissional feminino foi de R$ 5 milhões este ano. É preciso lembrar que em 2015 a entidade levou um puxão de orelha da FIFA para investir mais na modalidade. Ao repassar R$ 260 milhões à CBF por conta do legado da Copa do Mundo no Brasil, a entidade máxima do futebol exigiu que parte dele fosse para o futebol feminino.

No ano passado, o investimento da CBF no futebol, incluindo 13 campeonatos (apenas dois deles femininos) foi de cerca de R$ 100 milhões (a divisão não é igualitária). O calendário feminino no Brasil conta com dois campeonatos, uma Copa do Brasil no início do ano e o Campeonato Brasileiro, no finalzinho. O único time grande presente nas duas competições é o Botafogo. São Paulo não tem nenhum representante grande confirmado para o Campeonato Brasileiro, mas pode contar com o Santos que, após encerrar as atividades em 2012, voltou às competições em 2015.

Recentemente, o ex-presidente da CBF, José Maria Marin, se irritou após ser questionado por não investir tanto na seleção brasileira feminina. Foi então que veio à mídia a questão da seleção permanente, bancada pela entidade. As meninas treinam na Granja Comary para grandes competições e o piso salarial é de R$ 9 mil .

Na mídia, a mulher é tratada muito mais como “musa” do que como “atleta”, explica a professora do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Maíra Kubik. “Pesquisas demonstram que, por exemplo, em matérias de economia, a mulher é entrevistada no supermercado para falar sobre o aumento dos preços, enquanto os homens são os economistas, que comentam tecnicamente”, exemplifica. Esse estereótipo é reforçado quando lembramos que Maurine, lateral-direita da Seleção, virou notícia ao fazer um ensaio sensual; assim como a goleira norte-americana Hope Solo após ter fotos íntimas divulgadas. E não é só na forma como a mulher é noticiada, mas também o papel de jornalistas na mídia especializada, que são tidas como musas. Podemos citar, entre as mais famosas, Renata Fan (Jogo Aberto, Band) e, mais recentemente, Fernanda Gentil (que cobriu a Copa do Mundo de 2014 e apresentou o Globo Esporte, na Globo).

Maior competição tanto para homens quanto (talvez até mais) para mulheres, a Copa do Mundo é a chance que as meninas brasileiras têm para tentar cravar de vez o seu espaço no país. Entretanto, a realidade para as mulheres é bem diferente do que a dos homens. A sétima edição da Copa do Mundo Feminina, que acontece no Canadá neste mês de junho, está ofuscada pela edição da Copa América, que acontece no mesmo mês. Os estádios, modernos e que vêm recebendo bons públicos, contam com grama sintética, o que prejudica e muito o desempenho das jogadoras, sem contar que podem acarretar em lesões graves, além de subir muito a temperatura dentro de campo. China e Canadá, na primeira rodada da competição, por exemplo, jogaram com uma sensação de 50°C quando, na verdade, fazia 24°C. De acordo com uma pesquisa da Universidade de Nevada, nos EUA, praticar esportes neste calor é fora de recomendação. No ano passado, 61 jogadoras foram à Justiça do Canadá e um requerimento foi enviado à FIFA, pedindo que essa questão fosse revista. Nos Estados Unidos, as jogadoras ganharam apoio de celebridades como Tom Hanks e o astro da NBA Kobe Bryant. As atletas consideram “discriminação” jogar em gramado artificial pois “altera a forma como se joga o jogo” e “desvaloriza sua dignidade, o respeito que sentem por si mesmas e seu equilíbrio mental, como resultado da obrigação de fazê-las jogar em uma superfície de segunda categoria e diante de dezenas de milhares de espectadores no estádio e uma audiência televisiva global”. O processo não se desenrolou e foi encerrado no começo do ano.

A atacante dos EUA, Sidyney Leroux, mostra as consequências de jogar na grama sintética (reprodução: Twitter)

Além disso, caso alguém enxergue ‘motivos e evidências’ que determinada jogadora não é mulher, ela passará por uma avaliação para se ter certeza se é do sexo feminino. Segundo o regulamento da FIFA, deve ser levada em conta “qualquer anomalia das características sexuais secundárias”, ou seja, atribuições físicas como seios e quadris largos nas mulheres, ou pelo corporal e musculatura nos homens. O parágrafo IV do Regulamento para a Verificação de Sexo da organização que rege o futebol mundial diz ainda que “nas competições masculinas da FIFA, só os homens podem ser selecionados para jogar. Nas competições femininas da FIFA, só as mulheres podem ser selecionadas para jogar.”

Tabela da IAAF (International Association of Athletics Federatiosns) para ajudar árbitros a identificar altos níveis de testosterona

No país que se diz do futebol, ouvir de formadores de opinião que “o futebol feminino é desinteressante” soa como hipocrisia. E para coordenador de futebol feminino da CBF, Marco Aurélio Cunha, em entrevista ao jornal canadense Globe and Mail, o futebol feminino tem pouca visibilidade porque falta uma “reforma estética”. Segundo ele: “Agora, as mulheres estão ficando mais bonitas, passando maquiagem. Elas entram em campo mais elegantes. O futebol feminino costumava copiar o futebol masculino. Mesmo o modelo do uniforme era mais masculino. Costumávamos vestir as garotas como homens. Então, faltava ao time um espírito de elegância, feminilidade. Agora, os shorts estão mais curtos, os penteados estão mais bem-feitos. Não é uma mulher vestida como homem”. Essas descriminações contribuem para que a mulher se sinta ofendida, assim como comentários chulos como ‘sapatão’ e ‘maria macho’, que sempre estiveram presentes, em todos os lugares, não só a nível mundial, mas também anos atrás na minha escola e, principalmente, quando jogava com outros garotos na rua. Isso incomoda. Chamar uma mulher com essas alcunhas é como chamar um jogador negro de macaco ou homossexual de bicha.

Se algum dia teremos algum reconhecimento por parte de entidades, patrocinadores e mídia esportiva ainda não é possível dizer. Entretanto, é impossível fechar os olhos para uma realidade de mais de 400 mil mulheres espalhadas por todo Brasil. Não resta dúvida que o futebol também moleque jogado pelas meninas tem, sim, condições de levar muitos torcedores ao estádio. Assim como Neymar vende ingresso, Marta, Formiga e cia. também vendem. Mas é preciso mudar o foco e começar a perceber que elas não vão durar para sempre. A volante Formiga, por exemplo, está com 37 anos e joga a sua sexta Copa do Mundo. É de se admirar que o futebol brasileiro feminino ainda consiga bons resultados mesmo com tantos pontos contra.

Se a realidade dos meninos em ruas e campos de várzea não é fácil, a feminina é dez vezes pior. E não bastasse todas as dificuldades de condições vida, elas ainda têm que lidar com a indiferença, o preconceito, a discriminação. Com tantas meninas com sonhos de serem como Marta, Formiga, Cristiane… e com tanto talento quanto, ainda quero acreditar que o Brasil também pode ser o país do futebol feminino.

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