Escreva para todas as pessoas — aqui estão dicas para um texto mais neutro e inclusivo
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Uma mulher faz uma inscrição em uma newsletter, recebe um e-mail com o assunto “Bem-vindo” e não se importa. Um homem recebe o assunto “Bem-vinda” e sente a estranheza de “ser tratado como uma mulher”. Um anúncio de vaga diz “Precisamos de engenheiros de software” e as mulheres não devem se sentir fora do escopo da vaga, mas se o anúncio fosse “Precisamos de engenheiras de software”, estaria “claro” que é a vaga exclusiva pra mulheres.
As situações fictícias ilustram, de modo simplório, a dicotomia sexista na nossa língua. O masculino é comum e imperativo. O feminino é incomum e causa estranheza, especialmente nos coletivos e em áreas com presença predominante de homens. Isso ocorre porque a regra oficial da língua portuguesa no Brasil ainda é usar o masculino para ser plural de forma genérica, embora existam ponderações de que este formato é que seria o “neutro”, originado no latim, como defendem alguns linguistas (veja o trecho abaixo, da Gazeta do Povo, em que homens linguistas alegam que o masculino é neutro — leia mais nos links no fim do texto)¹.
"No latim, as palavras podiam receber três marcações de gênero: feminino, masculino e neutro – este último com a terminação “u”. Na transição do latim para o português, a semelhança entre masculino e neutro fez com que ambas as categorias fossem resumidas em uma só, que hoje entendemos como masculino."¹
Porém, como bem lembram Dad Squarisi e Arlete Salvador:
“Palavras têm peso. Poder. Vida.
É preciso escolhê-las com cuidado.”
Não importa se estão dentro de um contexto ou isoladamente, elas são reflexo da nossa cultura e a retroalimentam. Por isso eu tenho feito um esforço para que meu texto seja mais neutro e possa alcançar pessoas, independente de gênero ou limitação física (outro ponto que merece atenção especial).
Na pesquisa rápida pra este post, soube que há um debate na França sobre o peso da imposição masculina na linguagem — país cuja Academia (de Letras) tem menos de 20% dos seus integrantes mulheres (curiosidade: no Brasil esse percentual é menor do que 3%, pois são apenas 8 mulheres entre quase 300 homens!). Mas a primeira vez que percebi essa questão da linguagem sexista de modo claro foi no livro clássico de William Zinsser “Como escrever bem”. Desde então, quis fazer um post sobre isso. Recentemente, Suzana Valença perguntou minha opinião sobre o assunto. Sim, sou feminista em construção e, fora a linguagem das redes sociais e discursos políticos de esquerda, nunca tinha parado pra pensar nesse assunto de forma mais estruturada. Então, acho que é uma hora de conversar sobre isso.
No livro, Zinsser dedica quatro páginas ao assunto e foca no inglês, sua língua nativa e original da obra. Foi quando eu soube que, em inglês, embora haja palavras neutras como they (para ele e ela, por exemplo) e o uso quase obrigatório de duas palavras (my brothers and sisters, em vez de “meus irmãos”), há expressões desdenhosas que raramente se traduzem para o masculino, como blonde (loira, mas num tom de objetificação). Reparei também como pode ser mais desafiador com palavras inglesas ligadas a poder, como chairman (presidente da empresa), uma vez que o “man” está na estrutura da palavra. Nesse ponto, não lembrei de nada semelhante em português brasileiro (quem lembrar, coloca aí nos comentários :), mas há vários paralelos com se olharmos para expressões como “Homem de Confiança” e “Tem que ter colhão” (para falar de uma pessoa ousada e corajosa).
Quais as dicas, afinal?
Ainda estou aprendendo — este artigo é uma forma de fazer isso. Resumi aqui o que estou usando, peguei dicas de Zinsser, do Guia de Comunicação Inclusiva do Conselho da União Europeia e de um texto muito bom de Thaís Costa (links no fim deste artigo).
Não precisa nem mexer na estrutura “arquitetônica” das palavras, como está sendo debatido na França, mas, em geral, precisa fazer ajuste na frase, seja pra rearranjar a ordem ou aumentar a qualidade de palavras.
Vamos lá?
Use “pessoa”
A neutralidade é focada nas pessoas — tente não direcionar a energia de adaptação para objetos e animais, especialmente se ainda há lacunas no seu texto pra pessoas. E, como é sempre bom buscar as interseções, essa é uma ótima: somos pessoas. Exemplos: em vez de “Procuram-se desenvolvedores de software”, usar “Procuram-se pessoas desenvolvedoras de software” ou “Procuram-se pessoas que desenvolvem software”.
Não use X nem @ para substituir vogais
Embora seja uma solução cool, prática e caiba bem em peças de divulgação isoladamente (já usei e talvez ainda vá usar), prejudica a leitura de pessoas com dislexia ou outra condição neuroatípica (veja o comentário abaixo, que Acilon Cavalcanti fez neste artigo [versão LinkedIn] em fevereiro de 2022)¹; sem falar nas pessoas com deficiência visual, especialmente as que dependem de leitores de tela.
Formas duplas
Usar os dois gêneros nas palavras também é uma boa alternativa, embora, às vezes, fique inviável por conta do tamanho (como em peças publicitárias ou textos nativos de aplicativos e sites). Mas, se der, vá de “desenvolvedoras e desenvolvedores”; “alunos e alunas”.
Barras e parênteses
É o que eu menos gosto, porém o mais fácil quando a saída pra neutralizar ou abstrair é difícil. “O/a gestor(a)”, usado aqui como exemplo, mas que poderia ser “A pessoa encarregada da gestão”.
Neutralize ou abstraia o gênero
Em vez de “o coordenador”, use “a coordenação”; “Data de nascimento” em vez de “Nascido em”; “Líder no mundo dos negócios” em vez “Homem de negócio”. Quando o substantivo for comum de dois gêneros, eliminar os artigos pode funcionar. Exemplo: em vez de “Os cientistas de dados”, “Cientistas de dados”.
Prefira pronomes invariáveis
Quem, alguém, ninguém são ótimas alternativas. Exemplos: em vez de “o requerente”, “quem requer”; “Não recrutará o candidato que…”; “Não recrutará ninguém que…”
Estrutura gramatical
Às vezes é preciso melhorar a frase para eliminar o sexismo. Exemplo: em vez de “O candidato deve enviar seu formulário até…”, use “O formulário de candidatura deve ser enviado até…”
Faça isso pelas outras pessoas e por você
Conectar-se com sua audiência é o mais importante e, quando você neutraliza o gênero, é uma forma de mostrar às pessoas que você está enxergando todo mundo.
Bom, ainda tem muuuuita coisa pra eu aprender no Guia de Comunicação Inclusiva do Conselho da União Europeia e no texto de Thaís Costa em questões de cor de pele, classe social e identidade de gênero. Espero dar tempo de falar aqui também.
Enfim, ainda tenho muito o que avançar na escrita neutra e inclusiva, principalmente em termos de acessibilidade, mas acredito que a busca tem que ser não pela perfeição, mas pela melhoria contínua. Vale para o texto, vale para a vida.
PS: antes de fazer comentários do tipo “Ai, que frescura, até pra escrever precisa ter isso…”, por favor leia o texto inteiro e as referências :P
Abaixo, alguns materiais citados aqui e outros que complementam o tema:
Guia de Comunicação Inclusiva do Conselho da União Europeia
Sobre o “masculino neutro”: Elx, el@s, todxs? Na língua portuguesa, sem gênero neutro: apenas masculino e feminino
Mulheres na Academia Brasileira de Letras: https://www.taglivros.com/blog/mulheres-na-academia-brasileira-de-letras/
Material muito bom de Thaís Costa: https://comunidade.rockcontent.com/linguagem-neutra-de-genero
Sobre a polêmica na França: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/30/cultura/1509390000_354339.html
Mais sobre a força da palavra:
Atualizações:
¹ em 29/3/22, para acréscimo do comentário de Acilon Cavalcante e acréscimo de informações