.19

20 Pequenos Projetos de Poesia

Flávio Porto
escrita
1 min readMay 30, 2020

--

.Amanhã?

sou fogo.

minha língua é de feita de medo.

não consigo tocar o escuro, mas vejo o vazio palpável que ele cria.
não sinto o gosto da vida, mas o cheiro de alucinação.
ouço o som do futuro; fino, frenético.

ouço-o ainda verde, mas farto.

a sombra de Belchior acena uma canção do fundo numa lembrança
que nunca vivi.
estou cada vez mais distante de Pernambuco.
estou cada vez mais distante de Garanhuns.
estou cada vez mais dentro de mim.

sou faísca.

ou nem isso.
finjo.
ou nem isso.

sou abestalhado tentando não ser, tentando fugir, me transformo.

o passo cada vez mais longo, o caminho cada vez mais curto.

a saudade chega a doer.

o fraco ser humano de sopro e distância está no reflexo.

ele sorri como a noite.

ele sorri pra mim, enquanto acaricia o vazio existencial.
eu sorrio pra ele, enquanto procuro a metamorfose escondida no tempo.

o pequeno flavinho, que gostava de imaginar amanhãs como quem tira uma seriguela da árvore direto pra boca, não conseguiu prever o agora.
ninguém conseguiria.
pelo menos.

serei fumaça.
ou nem isso.
serei cinza, pó; perdido entre tudo que se pode um dia perder.

o infinito homem de nadas e horizontes está no reflexo.

terei que me despedir dele, mas não posso me abandonar.

c’est fine.
darei meu jeito.
sou eu.

o espelho desvia o olhar.

a noite está cheia como quando o universo nasce diariamente,
mas por enquanto continuarei perdido.
continuarei pedindo perdão a mim.
continuarei.

Exercício retirado do The Art of Compost.

--

--