Chocó: a música como embalo dos corpos, encontros e afetos

Nina Pissolato Camurça
Escritas Libres
Published in
4 min readMay 5, 2021

Em Chocó (2012) a costura dos elementos, sempre permeada pelo ritmo musical, que cumpre papel seminal enquanto personagem central da trama, se faz na batida que acompanha os movimentos da vida. A natureza e os cantos estão muito entranhados no rotineiro percurso das personagens. Assim, a cena inicial traz com vigor planos dilatados dos ambientes naturais e das vozes que entoam a relação que vai se construir durante o filme: o ritmo musical como participante dos momentos de comunhão dos seres.

Chocó é uma mãe jovem de dois filhos e vê-se mergulhada em um cotidiano de labuta e relações de gênero arraigadas na sociedade que grita desigualdades, além da subalternidade desconfortável, mas socialmente aceita. Com carinho a mãe conduz seus filhos diariamente à escola, é casada com Everlides, que não a ajuda em nada no sustento das crianças, e até mesmo esgota suas economias na jogatina e em bebidas, ela trabalha com a mineração juntamente a outras mulheres. Desse modo, a problemática feminina dessa região colombiana, o abuso doméstico e o protagonismo das mulheres enquanto provedoras do lar são temáticas pinçadas pelo realizador Jhonny Hendrix em seu longa de estreia. A música aparece como afeto materializado nos momentos de partilha, ou até mesmo como o único elo afetivo, como é o caso de Everlides e seus filhos, ao tocarem juntos um instrumento de percussão.

A vontade de Chocó em alegrar sua filha com um bolo de aniversário semeia tensões que se estendem durante todo o desenrolar narrativo, desde conflitos com seu marido, até soluções nauseantes e desagradáveis, escancarando abusos masculinos. Seu cuidado em preservar a infância, mas também preparar os filhos para a rudeza do mundo e zelar por sua educação, é muito presente, revelado nos pequenos gestos doces, no cotidiano com seus desafios e desassossegos, no acolhimento maternal e vívido da mãe. Além disso, a fluidez que acompanha as ações do filme, associam-se ao fato de que, apenas Karent Hinestroza (Chocó) é uma atriz profissional, trazendo leveza e ao mesmo tempo densidade à construção da ambiência local, reverberando em percepções do real ali construído.

Ao embalar encontros as vozes que cantam se unem em uma dança quase natural, na união dos corpos na abertura da trama, no percurso na caçamba do caminhão na ida das mulheres para o trabalho, no encontro de Chocó com o místico e em seus caminhos quando se embrenha na mata. Além disso, uma esfera onírica se constrói naturalmente com o andar dos acontecimentos, não sendo algo extraordinário, mas totalmente incorporado ao rotineiro. Chocó antevê o que acontecerá futuramente, como um lapso ou mesmo desejo, também encontra-se com uma menina que com ela dialoga e mostra-a um local escondido e de beleza natural vibrante.

A imersão musical se estabelece on screen, quando acompanhamos quem canta ou toca em quadro, off screen, em momentos de fundo musical próximo ou antes de visualizarmos a origem da música, mas, não estando enquadrado, e até mesmo acompanhando os corpos de forma extra diegética, os sons sobrepostos ao que vemos em cena. Ademais, a natureza, apresentada em planos longos que falam por si só, faz ecoar sua voz, assim como os seres humanos, preenchendo com sons, pausas e mergulhos em si mesma, a atmosfera, e, repartindo com a palavra cantada dos homens o correr da vida.

Assim, a religiosidade toma corpo nesse emaranhado de vozes, materializada no canto, mas também na devoção por imagens de santos e no ato de acender velas em busca de proteção. O que cumpre papel central, direta e indiretamente, para o desfecho espetacular da trama. Desse modo, machismo e violência tomam novos ares na teia de relações, nos desejos de realizações de carinhos aos filhos, de se colocar enquanto indivíduo com vontades, e desaguam em permanências de atitudes violentas, mas também do clamor por modificações e um final que condensa o novo e o velho, na música trepidante e farfalhante do fogo.

A finalização não poderia ser diferente, os corpos em comunhão dançam e vibram em sintonia, a religiosidade é efervescente. Condensando tudo que está em foco, o final é também um começo, Chocó se move e se diverte, deixando que a música a conduza na miscelânea de corpos ao seu entorno. A procissão que carrega uma imagem de Maria e Jesus, em seu colo, transborda ritmo, sincronia e uma explosão de cores fortes. É importante ressaltar que a natureza, sempre exuberante e com acentuada presença, não se esquiva da cena que fecha a obra, no final do percurso a imagem sacra adentra as águas do rio e é abraçada pela natureza viva que a envolve.

Simplesmente catártico, o batuque faz mover na felicidade da partilha daquilo que é essencial para aqueles que se alegram juntos, celebram sua religiosidade, integrados no ambiente como participantes de um mesmo fluxo, se apropriando dele para subsistir, mas sem apartar-se dele. Tudo flui como natural, o desfecho como finalização de um ciclo, tal qual ciclos da natureza, as oscilações como inerentes à vida, e a música sempre embalando afetos, semeando encontros e multiplicando corpos.

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