Mercedes Sosa é, realmente, a voz da América Latina

Cecilia Itaborahy
Escritas Libres
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4 min readApr 14, 2021

Nascida no dia da Independência da Argentina, em 9 de julho de 1935, ao som de vinte e uma salvas de tiros de canhões em San Miguel de Tucumán, no noroeste do país, quase que predestinada ao que representaria futuramente e até hoje: a voz dos que não têm voz, a voz da independência e da democracia — não sem luta e com muita coragem. Mercedes Sosa é a junção do místico, do sagrado e do maternal. É uma força arrebatadora e modesta, que perpassa gerações, continentes e movimentos. Falar sobre La Negra é falar sobre a América Latina.

Quase que conjuntamente, toda a América Latina sofreu com as ditaduras militares que mataram e torturaram muitas pessoas nesses países. Foi neste momento que a arte encontrou sua forma mais completa de agir e fazer frente contra as censuras e todos os impedimentos que, então, foram estabelecidos. Todos os países possuem registros e movimentos que deixaram marcas e influenciam até hoje as cenas musicais. Um deles foi o Movimento Nueva Canción, um dos mais importantes e que teve início no Chile, por influência de Violeta Parra e Víctor Jara, compositores de muitas canções, sobretudo revolucionárias e questionadoras do momento em que o país passava — mesmo que antes da ditadura, mas já com seus indícios. Na Argentina, é Mercedes Sosa quem dá voz às canções e as ecoa por todo mundo.

“Gracias a la vida” foi uma das músicas mais importantes para sua carreira, escrita por Violeta Parra e Víctor Jara. A cantora foi a responsável por popularizar essas questões, de uma maneira pura e verdadeira, sem deixar de falar, também, sobre seu passado e sua descendência. É por isso, inclusive, que o folclore foi o motivo e o acontecimento das suas interpretações, mesmo que em outros países. Mercedes Sosa veio do folclore e nunca mais saiu dele. No mesmo momento do começo do Movimento Nueva Canción, ela assinou o Manifiesto Fundacional del Nuevo Cancionero, que enfatizava e fazia uso dos instrumentos usados pelos índios. A maneira dela de fazer frente a uma ditadura foi se apropriar de sua própria história e origem e disseminar isso pelo mundo. Honrar e reconhecer de onde veio tanto atingiu os militares que, mais tarde, ela sofreria casos de perseguição, prisão e, enfim, exílio.

Foi cantando “Cuando tenga la tierra” — música proibida pelos militares na época -, em 1978, na Universidade de La Plata, que Mercedes foi presa, na frente de uma plateia de jovens que, inclusive, pediram a música. É interessante notar que ela, na verdade, discursa sobre a reforma agrária e, por isso, foi presa: “Cuando tenga la tierra, le daré a las estrellas/ Astronautas de trigales, luna nueva/ Cuando tenga la tierra, formaré con los grillos/ Una orquesta donde canten los que piensan”. Cantar a música, mesmo sabendo estar rodeada de militares, foi uma escolha provocativa pela insistência e reafirmada, sobretudo, por não temer.

Depois desta cena, os episódios de perseguição e ameaça passaram a aumentar. Para conseguir tranquilidade e fugir da série de assassinatos que vinha acontecendo, inclusive com alguns de seus amigos, Mercedes se exilou em Madri. Sobre esse período, em uma entrevista, Mercedes conta: “O exílio é um castigo, é o pior tipo de castigo. […] O pior tipo de solidão que você possa imaginar. Eu experimentei a solidão de perto”. A depressão que sentiu nesta época foi manifestada em sua voz, que chegava a falhar em alguns dias e restar o sussurro. Apesar de tudo, por lá, Mercedes conseguiu tornar público o que acontecia em sua terra e continou sendo — e até ainda mais — a voz da América Latina.

Já em 1982, de volta à Argentina, Mercedes faz uma série de shows. O primeiro aconteceu em 18 de fevereiro. A música escolhida para iniciar é “Como la Cigarra”, de María Elena Walsh. Nela, La Negra encontra a tradução do que ela passou durante o exílio: “Tantas veces me mataron/ Tantas veces me morí/ Sin embargo estoy aquí resucitando/ Gracias doy a la desgracia/ Y a la mano con puñal/ Porque me mató tan mal/ Y seguí cantando” — exemplo real de quando ela diz: “Em minha voz não canta nem você nem eu, mas a América Latina”. Mesmo após a ditadura e já mais velha, Mercedes seguiu lutando contra as injustiças e pela democracia ampla, sendo até reconhecida mundialmente por isso, e sempre com a máxima de que “Não é possível fazer uma revolução sem cantar”.

Fazendo um apanhado de algumas de suas principais apresentações, fica ainda mais nítido que Mercedes Sosa é certeira. Ela sabe quando precisam dela e, apesar das dificuldades, não volta atrás. Vejo ela como uma grande mãe, frágil, cuidadosa e atenta, que parece que invoca sua ancestralidade para lidar com o seu presente, para saber quando calar e quando falar. É por isso que ela é maternal e mística e atinge tantas pessoas até hoje como atingiu na ditadura. A voz de um continente tão machucado, mas, sobretudo, forte não poderia ser outra.

Em tempo, resgato o vídeo de onde conheci Mercedes Sosa e entendi de quem é que tanto falavam: Volver a los 17, também de Violeta Parra, com participação de Milton Nascimento, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gal Costa, a acompanhando. Nele, há uma Mercedes tão feliz e profunda que dá gosto conhecer toda a discografia — e de buscar saber sobre a letra de Violeta Parra.

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Cecilia Itaborahy
Escritas Libres

Entusiasta das histórias, do contato e das percepções.