“Negra Sou”, poema de Mary Grueso Romero

Orgulho e identidade negra do Pacífico Colombiano

Raphael Domingos
Escritas Libres
3 min readMay 18, 2021

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Seja pela diferença da língua, seja por uma questão cultural e histórica, o brasileiro no geral não nutre a identidade e unidade latino-americana como os outros países do continente. No entanto, poucos países são tão parecidos quanto Brasil e Colômbia. A paixão pelo futebol, a culinária e a fama de sermos povos receptivos e festeiros são semelhantes em ambos os países, mas, certamente, é a mescla de influências culturais indígenas e africanas que mais nos aproximam, uma vez que Brasil e Colômbia passaram por processos parecidos de escravização que definiram suas estruturas sociais.

Mary Grueso Romero é a principal voz da literatura afro-colombiana contemporânea. Nascida em Guapi, Cauca, em 1947, a escritora é neta de escravizados e tem na memória de seus antepassados o tema principal de sua obra poética. Além de escritora, Mary Grueso é pesquisadora e professora de Literatura na cidade de Buenventura e grande narradora oral, oralidade esta que está muito presente também na sua forma poética. Alguns de seus principais livros são: El outro yo que sí soy yo: poemas de amor y mar (1997), El mar y tú (2003) e Negra soy (2008).

Nascida na costa do país, sua poesia é indissociável de sua terra (e de seu mar). O litoral do Pacífico Colombiano é cenário, tema e inspiração para Mary Grueso criar o universo particular de sua obra. O Pacífico Colombiano marca seu trabalho tanto pela singularidade do local, marcado pela ida e vinda de viajantes e de imigrantes, criando um espaço de transculturação, quanto por ser propriamente a casa da poeta, sua referência sobre o mundo, fazendo da sua poesia a celebração de sua comunidade, dos seus vizinhos e das pessoas que vivem e que trabalham naquela terra. O mar também sempre aparece em sua obra como o motivo de seus sonhos, de seu canto e do desejo do que há além do mar — suas origens e seu passado.

Aliás, o orgulho afro-latino é tema de um dos seus principais poemas, Negra Soy. No poema, há o enaltecimento da alteridade a partir de um eu lírico que reivindica ser chamada de negra, e não de morena ou de pessoa de cor. A cada estrofe, a autora vai lançando mão de novos predicados para definir sua raça — a raça que é negra, a raça que é pura, a raça que tem história para contar — , criando uma crescente no poema, até chegar ao momento em que finalmente o sangue desemboca e a ancestralidade grita. A cor negra deixa de ser evitada para se tornar algo a ser exaltado — o negro é aquele que está na natureza bruta, na noite, no carvão, nas entranhas da terra, remetendo a um orgulho ancestral, profundo e intocado. O ritmo e as rimas do poema, aliados às marcas de oralidade, levam a crer que esse é um texto para ser lido em voz alta, ou melhor, para ser cantado bem alto, aos moldes da literatura de tradição oral africana.

A tradução abaixo não é oficial. Infelizmente, ainda não temos livros da autora publicados no Brasil. Entretanto, para quem quiser conhecer melhor a sua obra, há um estudo crítico sobre sua poesia lançado no país sob o título de Negra Palmeira, poesía, tambor y mar: de mãos dadas com Mary Grueso Romero, escrito pelo pesquisador brasileiro Ricardo Luiz de Souza.

Negra sou

Por que me chamam de morena?

Se moreno não é cor

Eu tenho uma raça que é negra

E negra Deus me criou

E outros resolvem a história

Me chamando de d’cor

Dizem pá’menizar a coisa

Que eu não guarde rancor

Eu tenho minha raça pura

E dela orgulhosa estou

De meus ancestrais africanos

E do soar do tambor

Eu venho de uma raça que tem

Uma história pá’contá

Que quebraram suas correntes

Pá’ liberdade alcançá

O sangue e fogo romperam

As correntes do opressor

E esse jugo escravista

Que por séculos nos esmagou

O sangue em meu corpo

Passa a se desembocá

Me sobe à cabeça

E começa a protestá

Eu sou negra como a noite,

Como o carvão mineral,

Como as entranhas da terra

E como o escuro cristal

Então que não dissimulem

Me chamando de d’cor

Me chamando de morena

Porque negra é o que sou

(Negra Soy. Retirado de Negras Somos!: Antologia de 21 mujeres poetas afrocolombianas, Universidad del Valle, 2008. Tradução nossa).

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