Terror periférico em “As coisas que perdemos no fogo”

Mariana Enriquez usa a literatura de gênero para adentrar nos medos e fantasmas latino-americanos

Raphael Domingos
Escritas Libres
8 min readApr 19, 2021

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Entender como nossos medos mudaram com o tempo é entender também um pouco do desenvolvimento da humanidade. Pensamos, por exemplo, no medo do escuro: este medo primitivo surgiu dos nossos antepassados mais distantes, aos quais a chegada da noite representava a proximidade da morte e do desconhecido, o que hoje sabemos se tratar dos animais ferozes que os devoravam enquanto dormiam. Já na Idade Média, na Era das Trevas, a escuridão era tudo aquilo que estava longe da igreja ou de Deus, em um tempo de paranoia em que qualquer pessoa ao seu lado poderia ser uma bruxa ou o próprio demônio. Agora, se pensarmos no Iluminismo, o medo do escuro já não era mais das feras que andam à noite, nem dos castigos divinos e das danações, mas sim de tudo aquilo que a razão nunca poderia decifrar.

Em As coisas que perdemos no fogo (2016), a escritora argentina Mariana Enriquez transforma os medos e os horrores da América Latina em contos de terror. Em um país assolado pela Ditadura Militar, como foi a Argentina, como foi o nosso, o medo da escuridão não é o medo do fantasma que pode surgir dela, mas sim daquilo que ali desapareceu sem deixar respostas. Para a autora, que cresceu durante a ditadura, os fantasmas não são almas que atormentam os vivos, mas “algo ou alguém cujo trauma se repete sempre”. É por isso que a todo momento em seu livro os tormentos aos quais passam seus personagens se confundem com a fantasmagórica presença de um passado trágico à espreita nas esquinas, nas ruínas de casarões ou fábricas, por toda parte nos contrastes da cidade. “Os traumas históricos — e na Argentina há muitos deles — também são assim”, afirma Enriquez.

Para pensarmos em terror e periferia precisamos antes falar sobre a relação entre o gênero terror e a modernidade. Com o avanço e o estabelecimento da ciência, o medo moderno não era mais apenas do que não se sabia, mas principalmente dos riscos de se saber demais. Esse é o tema de um dos principais livros de terror do Século XVIII, Frankenstein ou o Prometeu Moderno, de Mary Shelley, e também da literatura gótica, com seus castelos sombrios erguidos em meio às luzes da razão. Naturalmente, as mudanças trazidas pela ciência mudaram os medos das pessoas daquela época, já que cada vez mais a ciência transformava a vida de todos, principalmente durante o processo de industrialização e urbanização, quando os avanços tecnológicos se instalaram de vez no cotidiano e reconfiguraram não apenas as rotinas, mas também as maneiras de se perceber o mundo. A partir desse processo acelerado de modernização, aquelas pessoas que vieram do campo foram expostas aos diversos estímulos dessa nova lógica: a velocidade dos automóveis, a rotina dura de trabalho, o tráfego intenso de pessoas, as notícias trágicas nos jornais. Esses estímulos eram cada vez mais conformados com a vida e naturalizados. A popularidade da literatura de terror surgiu neste contexto, oferecendo uma experiência tão extrema ao ponto de romper com o efeito anestésico dos híper estímulos modernos, com o alívio de serem inofensivas palavras sobre o papel.

Detalhe da capa da edição mexicana de “As coisas que perdemos no fogo”, da editora Anagrama. Imagem: divulgação

Entretanto, esse processo não foi o mesmo na periferia do mundo. Na América Latina da virada do Século XIX, a partir de ideais progressistas de cunho civilizatório, houve a tentativa de cópia da cultura, arquitetura e comportamento europeu. No entanto, o resultado disso foi uma modernização incompleta, uma urbanização imposta e o aumento dos contrastes sociais, o que vemos refletir até os dias de hoje. Buenos Aires, um dos cenários principais dos contos de Enriquez, passou por um processo muito particular de modernização. Durante os efervescentes anos 20, a cidade recebeu uma das transformações mais radicais da América Latina e se tornou uma espécie de capital europeia desterrada.

A ensaísta argentina Beatriz Sarlo escreve sobre esse processo vertiginoso de modernização na periferia. Para ela, essa modernização forçada, em que formas e ideias estrangeiras passaram a ser implantadas em um ambiente político, social e cultural distantes do qual foram pensadas, criou uma cisão muito clara nas cidades. Na Buenos Aires deste período, um dos melhores exemplos de capitais do capitalismo em expansão, existia de maneira conflituosa duas cidades: o centro, repleto de fragmentos da cultura europeia, emulados fora de contexto; e a periferia, um lugar em que a modernização se instalava de maneira precária, enquanto a cultura e a tradição nacional se dissolvia. Dessa forma, a periferia era além de um espaço geográfico, também um espaço simbólico: era aquela região entre a planície dos pampas e a cidade moderna, e também a margem entre esses dois contextos que existiam juntos, mas sem se misturar — um entre-lugar que não era nem uma coisa, nem outra, repleto de ausências do que foi e daquilo que poderia vir a ser.

É claro que essa contradição da modernidade periférica influenciou também a literatura. Nesse período, a Argentina se dividiu entre uma produção literária nacionalista, exaltando a figura do gaúcho, os heróis nacionais e os cenários da planície, e uma produção universalista, baseada no modernismo europeu e que se distanciava das cores locais. Em seu livro Jorge Luis Borges: um escritor da periferia, Sarlo analisa a obra de Borges, o escritor que, segundo a ensaísta, além de ser o mais influente da literatura argentina, era também o mais argentino dos escritores, se contrapondo a corrente interpretação de Borges como um autor estritamente universal. Para Sarlo, a obra do escritor está justamente nesse entre-lugar em que os temas nacionais se encontram com as formas clássicas da literatura, reproduzindo a partir de sua indefinição a experiência da margem, onde os bairros tradicionais de Buenos Aires ruíam e os ideais modernos eram erguidos fora de lugar.

Beatriz Sarlo é uma das principais autoras que pensam a modernidade periférica. Imagem: divulgação

É esse o sentido da periferia no terror de Mariana Enriquez: ao formalizar os traumas de seu país com os clichês da literatura de terror, os contos da escritora habitam esse entre-lugar dos medos latino-americanos e do imaginário da cultura pop, um entre-lugar desta vez criado a partir de outro contexto de expansão do capitalismo — a globalização. Um dos exemplos disso é o conto A casa de Adela, no qual Enriquez desconstrói o clichê da casa mal-assombrada ao narrar o desaparecimento de uma menina em um casarão misterioso. Neste conto, o terror não surge dos fantasmas que atormentam a casa, mas sim do desaparecimento sem solução de Adela, remetendo a uma das maiores tragédias da ditadura na Argentina: o desaparecimento de milhares de crianças filhas de opositores ao regime, roubadas de seus pais e criadas por militares. Apesar dos contos abordarem horrores reais, o sobrenatural sempre aparece no livro como metáfora à assombrosa história da ditadura na Argentina e às incertezas da periferia, com as suas intermináveis crises políticas e econômicas.

A persistência dos fantasmas desse passado mal resolvido é o tema do conto Pablito clavó un clavito: uma evocação do baixinho orelhudo, em que é narrado por um guia turístico suas estranhas visões com o espírito de Cayetano Santos Godino, um assassino em série real que aterrorizou a Buenos Aires do início do Século XX, tomada pelo seu projeto modernista. Para o narrador do conto, a história do assassino “parecia uma espécie de metáfora, o lado obscuro da orgulhosa Argentina do Centenário, um presságio do mal por vir, um anúncio de que havia muito mais que palácios e fazendas no país”, como se o surgimento do serial killer simbolizasse os horrores maquiados por um projeto de modernidade e de progresso.

Bairro de Constitución, Buenos Aires. Imagem: Suplemento Pernambuco

Os resultados terríveis desse projeto são abordados com sutileza no conto O menino sujo, o meu favorito da coletânea. Se passando em Constitución, bairro tradicional de Buenos Aires, mas que com o tempo se tornou um lugar abandonado e perigoso, o conto apresenta uma espécie de margem dos nossos tempos, conforme a ideia de margem apresentada anteriormente; um entre-lugar geográfico e simbólico, onde se encontram os casarões abandonados — erguidos por uma promessa de modernidade que não aconteceu — , e uma cidade oculta, repleta de pobreza, violência e rituais macabros, seguindo uma lógica própria. A narradora da história, uma garota de classe média que decide morar no bairro, percebe que essa realidade, a qual ignorou por tanto tempo, de repente adentra em sua vida de forma que ela não pode mais escapar. Esses narradores alheios que repentinamente se veem submersos no horror e na violência aparecem também em outros contos, como em O quintal do vizinho e Fim de curso, remetendo a própria situação do subdesenvolvimento e da fragilidade dos direitos civis nesses países, onde já não há fronteiras entre o público e o privado.

Além da maestria ao abordar temas tão duros e importantes, o estilo de Enriquez encanta. Escrito de maneira objetiva, com narradores sempre reativos, que narram cenas de extrema violência como narram cenas quaisquer em que nada acontece, o livro produz uma sensação de alerta a todo instante e um terror muito mais atmosférico do que explícito. É o caso do conto Teia de Aranha, um dos mais estranhos e impressionantes da coletânea. Na narrativa, três pessoas viajam para uma cidade paraguaia durante a ditadura, onde há uma ponte erguida sobre os corpos de desaparecidos. Uma quase confusão com militares em um restaurante, um carro que enguiçou na estrada, deixando um casal sozinho no meio do nada, entre outras situações, criam a expectativa por algo terrível que nunca acontece, mas que sempre está prestes a acontecer. No final do conto, o desaparecimento de uma pessoa, tratado com indiferença e naturalidade, é análogo a ponte por onde passam os viajantes, pra lá e pra cá, vivendo suas vidas sobre uma história subterrânea que, sim, pode emergir.

Em As coisas que perdemos no fogo, se destacam a sugestão, os finais abertos e a criação de uma expectativa que nunca é concretizada — uma experiência de terror latino-americana, das perguntas sem respostas de nossa história e da sempre iminência de algo que está por acontecer. Esses são nossos medos, nossos fantasmas, aquilo que foi, mas que ainda nos assombra, aos quais Mariana Enriquez evoca a partir dos arquétipos da literatura de terror.

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