Vírus Tropical no jogo da autoficção

Power Paola faz da própria vida material de criação

Raphael Domingos
Escritas Libres
4 min readApr 30, 2021

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A folha de rosto da edição brasileira de Vírus Tropical, publicado pela Editora Nemo em 2015, traz, além das informações editoriais, uma bela ilustração que funciona narrativamente com o quadrinho. Nela, há diversos objetos soltos pela página e, entre eles, pessoas desenhadas como se estivessem pairando no ar. Conforme lemos o quadrinho, cada um daqueles elementos volta a aparecer em algum momento da história. Alguns surgem em apenas um quadro — uma revista que a irmã de Paola lia em um momento de discussão entre elas, a mala que a avó colombiana usava em sua visita a Quito. Outros, funcionam como signos que remetem a personagens ou a momentos específicos da trama — os dominós que a mãe usava para ver o futuro, a bíblia e o crucifixo do pai, ex-padre, além do jornal que ele sempre aparece lendo, pois ele é sempre retratado ausente dos conflitos familiares.

Para mim, foi divertido caçar esses elementos no decorrer da história, como se fosse aqueles jogos de encontrar objetos. Claro, é apenas uma folha de rosto, mas uma folha de rosto que ilustra bem o jogo proposto pelo quadrinho: o processo criativo da autora está na seleção e no agrupamento de mementos, criando sentidos a partir do jogo da ficção; as personagens do livro e a própria Paola também são peças desse quebra-cabeça da memória. É essa divertida brincadeira com a própria vida que faz com que as situações cômicas retratadas no livro, situações pelas quais todo mundo já passou, tragam reflexões maiores a partir da narrativa, da linguagem dos quadrinhos e dos desenhos inconfundíveis de Power Paola.

Autorretrato de Power Paola em cena de Vírus Tropical

Power Paola é uma artista visual nascida em 1977 no Equador e criada na Colômbia, autora de quadrinhos autobiográficos (ou autoficcionais) e considerada uma das principais quadrinistas contemporâneas da América Latina. Seu trabalho autoral começou com QP, uma série de histórias curtas sobre a vida cotidiana da autora junto de seu antigo companheiro, publicada inicialmente no blog Historietas de la vida real e lançada no Brasil pela editora Lote 42. Esse quadrinho serviu como laboratório para a artista experimentar a linguagem antes de produzir Vírus Tropical, uma memória gráfica em que é narrada um recorte maior de sua vida — de seu nascimento até os seus 18 anos. No quadrinho, se identificam os principais temas da obra da artista, como questões de gênero, família e busca pela identidade. A partir desse recorte de sua vida, a autora debate esses temas através de suas experiências pessoais nesse período, fechando um arco de seu amadurecimento até o momento em que descobre a arte e decide sair de casa.

Os capítulos do livro são divididos por temas, como a religião, a adolescência e o amor. Cada capítulo é um recorte da vida da autora em que são contadas histórias que dialogam com o tema em questão, fazendo com que os capítulos sigam uma ordem linear e cronológica, mas também possam ser compreendidos de maneira independente. A abordagem de Power Paola é tão sutil e despretensiosa que faz com que esses temas não surjam como uma reflexão complexa da autora revisitando sua vida, mas sim com a naturalidade de anedotas, reflexões que são sugeridas pelos próprios casos narrados. Há algo de muito latino-americano nesse processo, ainda mais se tratando de histórias familiares, contadas aos mais chegados em momentos propícios, criando sem querer uma espécie de mitologia pessoal. Mas não se enganem: o emprego da ficção sobre a própria vida de Power Paola é complexo. A escolha das histórias, as funções narrativas dos personagens para a trama de cada capítulo, transformando-os em espécie de arquétipos, e a própria Paola, que aqui se divide em uma personagem, uma narradora e uma autora, revelam que há um planejamento minucioso para tornar a narrativa coerente, coisa que a vida não é. Entretanto, a leitura de Vírus Tropical é tão leve que mais parece uma história sendo contada de maneira despojada para um amigo.

Trailer da elogiada animação de Vírus Tropical

Muito disso se deve a arte espontânea tão característica da autora, longe de qualquer academicismo. Os desenhos de Power Paola podem causar estranhamento pela falta de proporção e pelo traço mais solto, mas o uso de texturas e detalhes em cada cena, além do poder expressivo dos exageros e distorções, causam no leitor a sensação do calor do momento de um caderno de rascunhos ou de um diário. Sua estética autoral se alia ao ritmo ágil e direto da narrativa, mas sem se tornar superficial. Há experimentações interessantes com a linguagem dos quadrinhos, como nas cenas em que Paola brinca com suas barbies e as bonecas se tornam personagens, criando-se uma história dentro da história em quadrinhos (provavelmente, é assim que a autora se lembrava daquelas brincadeiras). Com o perdão do trocadilho, Power Paola é uma artista em pleno domínio de seus poderes: ela usa os recursos da linguagem com maestria, contando pedaços de sua vida através de uma arte marcante e do uso de muito texto em recordatórios e diálogos, estabelecendo relações entre texto, imagem e os demais elementos da obra pela forma dos quadrinhos, que, por definição, cria sentidos a partir da disposição de fragmentos.

Vírus Tropical é uma história em quadrinhos bem-humorada e divertida, mas que esconde, por trás de sua aparente falta de pretensão, um trabalho complexo e autoral. O quadrinho é um exemplo de memória gráfica e, ao mesmo tempo, um produto singular: além de unir experiências pessoais com temas universais, como todo livro de memórias, Power Paola cria um jogo sutil entre a espontaneidade visível em seu texto e arte e o seu processo implícito de escolhas e seleções, criando sentidos com a naturalidade e leveza de uma história contada.

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