O Teatro de Hannibal

Roberto Honorato
Rima Narrativa
Published in
11 min readApr 29, 2018

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“This is my design”

Se aprendi algo com Todo Mundo em Pânico (2000) é que “assistir séries de TV não faz ninguém virar um assassino, mas cancelar uma…”.

Eu tenho um péssimo costume de me apaixonar por séries canceladas, e o pior é que na maioria das vezes elas nem mereciam esse destino, algumas dão até raiva quando você descobre que não foram renovadas. Uma das pancadas mais fortes que tomei foi quando a série Hannibal (2013–2015) teve que fechar sua produção na terceira temporada, mesmo tendo ainda bastante coisa para contar. Mas eu devia ter visto isso chegando. A série é desenvolvida por Bryan Fuller, um excelente showrunner (responsável pela série) com um infeliz histórico de cancelamentos, seja por falta de orçamento ou de audiência, mas nunca de qualidade. Pushing Daisies, Dead Like Me e o spin-off de Jornada nas Estrelas, Voyager, são alguns dos seus trabalhos mais queridos, e recentemente (pelo menos até o fechamento dessa matéria) estava envolvido em Deuses Americanos e Star Trek: Discovery, mas abandonou os dois. Dá pra ver que ele é uma pessoa complicada, mas comprometida com sua visão, o que eu respeito bastante. E de todos os seus projetos nenhum parece ser tão magistral quanto Hannibal.

Baseada na obra de Thomas Harris, criador do personagem-título, a série se passa antes dos acontecimentos do primeiro livro, Dragão Vermelho (1981), e chega a aproveitar personagens e eventos de outras obras de Harris, mas até o momento não conseguiu chegar na trama mais conhecida pelo público, a do livro Silêncio dos Inocentes (1988). É uma pena, mas se a série nunca tiver uma quarta temporada (bate na madeira, tem que ter SIM, eu escolhi esperar!), pelo menos dá pra se contentar com a excelente e premiada adaptação cinematográfica por Jonathan Demme, em 1991, estrelada por Anthony Hopkins e Jodie Foster.

Voltando a atenção para a produção de Bryan Fuller, podemos ver mudanças significativas. Se nos filmes escutamos e imaginamos todos os feitos aterrorizantes do Dr. Hannibal Lecter através de seus longos monólogos e diálogos com a criminóloga Clarice Starling, a série aproveita o formato audiovisual e entrega formas elaboradas, por vezes com uma sofisticação desoladora, de apresentar o personagem. Em uma das melhores cenas da adaptação de Demme, o canibal detalha como devorou o fígado de um homem, acompanhado de feijão-fava e uma taça de vinho tinto. Não foi só um monte de informação jogada aleatoriamente, é uma piada bem sutil envolvendo seu estado mental e as restrições alimentares feitas por seu médico. Essa fala revela como Hannibal não costuma tomar seus remédios e pode ser bem impulsivo. Não é surpresa o filme ter levado a estatueta da Academia de Melhor Roteiro para Ted Tally.

Eu comi o fígado dele, acompanhado de favas e um belo Chianti

Elogios não faltam para o roteiro, a direção e as atuações da série. Hugh Dancy e Mads Mikkelsen formam uma das duplas mais envolventes que já vi em qualquer produção, falando em cinema ou televisão. E eu preciso repetir: Mads Mikkelsen é impecável e provavelmente um dos, se não o maior, injustiçado nas épocas de premiação. O que ele faz com o personagem é completamente diferente da abordagem de Hopkins ou Gaspard Ulliel, e se eu pudesse escolher um favorito, Mads provavelmente seria a resposta. Mas as outras interpretações foram tão boas que vou ser mais diplomático e dizer que “é discutível”.

Além de tudo isso, a série traz, assim como as adaptações cinematográficas, uma construção de mundo e de personagens muito boa, mas tem um departamento que considero o mais invejável da versão televisiva: o Design de Produção. Esse é o setor responsável por deixar tudo o mais consistente e realista possível — dentro do que foi estabelecido pela história, é claro (não faz sentido ver um celular em um uma produção de época, como Amadeus ou Barry Lyndon, ambos trazendo também um design de produção impecável, mas talvez eles sirvam para outro texto no futuro). Com a colaboração de um Diretor de Arte e um Diretor de Fotografia, quando competentes, uma produção pode ganhar outra camada de significados. Juntos, inserem e retiram elementos da imagem, pensam em formas de interpretar visualmente coisas que muitas vezes nem estão no roteiro, mas fazem parte da personalidade de certo personagem, sem contar que podem deixar um ambiente falar sozinho sem precisar de personagem algum em cena. Pode parecer que estou exagerando, mas vai ver que a pessoa certa consegue fazer coisas incríveis em qualquer condição.

Nada aqui é vegetariano.

Hannibal é ambiciosa. Uma série com personagens complexos e um roteiro inteligente, recheado de diálogos vorazes (sem trocadilho) e reflexivos, e tramas que aproveitam cada pedaço do que a premissa oferece: drama, horror e, quando dá tempo, até um pouco de comédia e ação. Estes elementos influenciam o apelo visual da produção. A fotografia aproveita a visão que Hannibal tem do mundo, encontrando beleza onde nós vemos horror, e transforma as cenas mais grotescas e intensas em uma composição que acaba funcionando, do seu jeito distorcido, como uma manifestação artística, e não apenas um ato homicida.

De primeira, entendemos como algo errado, alguém pode até chegar ao ponto de acusar a série de glorificar ou glamorizar a violência, mas quando percebemos o quanto da trama é dedicada aos momentos de tristeza por conta das mortes e como isso afeta seus personagens, dá para compreender a necessidade em criar algo tão chocante. Will Graham (Hugh Dancy), o agente especial que estuda o comportamento de assassinos em série, é quem melhor entende Hannibal, e o único com habilidades necessárias para capturá-lo. Will vive atormentado por alucinações e o peso na consciência por tudo que já precisou fazer ao longo dos anos, e ele só piora com a chegada de do Dr. Lecter. Os dois começam um jogo mental com obstáculos e armadilhas que podem colocar a vida de outros em risco, e não interessa o resultado, Hannibal parece muitas vezes se divertir mais com o teatro que arquiteta contra Will do que com a própria caçada por vítimas.

As sequencias protagonizadas pela dupla na sala em que Hannibal pratica suas consultas de psiquiatria dão uma ideia de como utilizam o design de produção, com todos os livros e detalhes deixados em sua mesa, e peças que servem para representar um tema ou uma informação importante que muitas vezes passa por nós, mas que em uma segunda assistida pode fazer a série ainda melhor, mostrando como esteve um passo à frente o tempo inteiro. Até com efeitos que dão uma sensação de desorientação, como o anacronismo premeditado que Fuller acha tão charmoso. Se antes eu mencionei como apenas um objeto pode estragar a experiência de uma obra, em Hannibal isso é usado em seu favor, evitando que a tecnologia fique datada, já que nunca nos situamos com total certeza em um momento no tempo. Estamos observando tudo no ponto de vista dos personagens, e não podemos confiar em muitos deles.

Outro exemplo disso está nas “peças de arte” que Will encontra, como o aterrorizante totem constituído de diferentes partes de diversos corpos, em uma praia congelante, no nono episódio da primeira temporada, intitulado Trou Normand. É uma imagem pesada e é tarefa da equipe de arte construir praticamente tudo que vemos na cena, não só com todos os equipamentos forense espalhados na areia da praia, como o próprio totem. Isso porque eu nem estou falando sobre o figurinista (outro que merece um texto próprio), que é uma peça crucial na fotografia e está o tempo todo participando do desenvolvimento.

o Totem Humano

De acordo com Matthew Davies, o designer de produção da série:

Eu acho que o melhor design vem de ter uma visão bastante singular para um programa. Seria melhor para o designer estar mais envolvido com a produção, do início ao fim, e muitas vezes estamos, mas como conselheiros voluntários. É um trabalho que você quer fazer porque quer que o mundo veja o seu esforço da melhor maneira.

Para Davies, o que fez Hannibal tão belo foi a forma como foi preparado, com um enorme cuidado para que cada tomada fosse a mais limpa possível. Muitas coisas podem ser consertadas na pós produção, mas poucos se dão ao trabalho de fazer isso, o que resulta em um visual mais desinteressante, por vezes até desnecessário.

Os consertos que Davies menciona são feitos, na maioria das vezes, através do uso de VFX. Abreviação para “efeitos especiais” (Visual Effects), o VFX não é apenas o bom uso do CGI (Computer Graphic Imagery, algo como “Imagens criadas por computador”), mas sim um jeito de mesclar os efeitos práticos com o gerado digitalmente. Assim, o VFX é uma técnica bem delicada que envolve muita sutileza, já que tem o poder de mudar o produto final de várias formas. Diretores como Guillermo Del Toro, por exemplo, utilizam a técnica para modificar todo o ambiente de seus filmes, transformando o dia em noite, escolhendo a cor certa para o céu, o formato das casas, a distribuição de carros em uma rua ou preenchendo um espaço na imagem com algum elemento importante, não importa o tamanho.

O VFX é uma ferramenta que trabalha a favor do design de produção, criando coisas que podem ser impossível de recriar de um jeito prático. Em Hannibal, a equipe criativa emprega isso quando tem a oportunidade de alterar a realidade da série para aumentar a incerteza do espectador, especialmente quando estamos seguindo Will em seus devaneios, se é que estamos lidando apenas com isso. Um quarto inundando pode ser feito utilizando água, não parece nada de mais, mas quando vemos o relógio digital de Will perder sua consistência material e os números escorregando do aparelho, já não é uma coisa tão fácil de fazer, isso considerando também o pouco tempo disponível para que a equipe desenvolva uma forma de realizar essa cena (para todo estúdio, sabemos que “tempo é dinheiro”). Aí entra o VFX.

De acordo com Davies, apenas com o VFX foram capazes de recriar localizações como o interior da Capela Palatina, que fica no sul da Itália. Seria um inferno filmar em locação por conta de todos os possíveis inconvenientes e a inviabilidade de controlar qualquer elemento natural, seja luz, vento, chuva… O ideal é poder manipular o lugar para ter o melhor resultado. Por isso mais da metade do cenário foi feito em estúdio, utilizando modelos disponibilizados pelo departamento de arte (que foi ao local e fotografou tudo) para a equipe de pós produção, e o resto é totalmente digital, com mudanças necessárias para combinar o local com o que estiver interagindo, ou criando coisas novas dentro do que já existe. Em espaços como o da Catedral, usar as superfícies e definir texturas é essencial, porque também entra a pintura, e nesse caso teve que ser em todo canto, no carpete e nas cortinas, até na utilização do MDF (o que acabei de ver que é “uma placa de fibra de média densidade” — olha aí, vivendo a aprendendo), onde o material precisava recriar o mármore do local.

Em cima, o set de filmagens da Capela. Abaixo, o resultado final.

Em Hannibal, as coisas eram bem detalhadas. Tínhamos situações específicas onde algo seria capturado em um closeup, então criávamos a versão mais real possível daquilo com enorme cuidado. O jeito que os materiais soam e se movem é algo que aspiramos capturar em câmera.

O departamento de arte faz mais do que deixar um ambiente mais assustador ou aconchegante, ou escolher o objeto e o lugar certo. Essa área lida também com o argumento da série, dá substância e conversa com o roteiro e a direção, criando significado.

Na primeira temporada, Will descobre o paradeiro de Garret Hobbs, um assassino em série que capturou e matou oito adolescentes, e estava prestes a cometer mais um assassinato. Depois de atirar nele até a morte, Will começa a lidar com as alucinações e os problemas para diferenciar realidade de sonho. No começo da temporada, um dos primeiros contatos com um “trabalho” de Lecter envolve a morte de Cassie Boyle, uma jovem que foi empalada pela galhada de um veado. Desse momento em diante, Will começa a ver a figura de um veado negro com uma enorme galhada, que o persegue como se estivesse sendo guiado pelo agente. Quando Will investiga a casa de Garret Hobbs, se vê rodeado pelos chifres do animal.

O set da casa de Garret Hobbs na primeira temporada
O resultado final.

Encontramos essa imagem constantemente, como no escritório do próprio Hannibal, que tem uma pequena estátua do animal. A assombração cresce e a dificuldade para distinguir o que é real ou não fica pior, agora o próprio Lecter é visto como uma extensão da criatura, como uma silhueta sombria, com a galhada, mas silencioso e aterrorizador. E como se não bastasse, Will começa a se transformar. Hannibal passa a se assemelhar ao Wendigo, um espírito maligno do folclore norte-americano, conhecido por possuir características humanas ou tomar conta de uma alguém para cometer atos de canibalismo e homicídio. Esse espírito dá nome a uma síndrome cultural envolvendo pessoas que acreditam ser canibais por conta de uma enorme vontade de se alimentar de carne humana. Essas “manifestação” de wendingos, veados e silhuetas macabras, são o maior pesadelo de Will, e seu maior medo acaba sendo a possibilidade de fazer parte do meio que tem caçado por anos.

Estabelecemos que o design de produção faz muita coisa, e tem muito mais, mas eu ainda não entrei da parte que mais enche os olhos de quem assiste Hannibal: a comida.

Existe um responsável pela comida que vemos no set de qualquer produção, e aqui a tarefa é de Janice Poon, a food stylist (“estilista de alimentos”), que faz com a comida o que o diretor de fotografia e de arte fazem com qualquer elemento no cenário. Poon e sua equipe distribuem várias versões do mesmo prato, em diferentes pontos de cozimento, corte ou tamanho. Ela, ao lado do time de arte, define a melhor forma de distribuir e evidenciar o alimento para que seja intrigante e relevante para a narrativa visual. Hannibal adora receber visitas para jantares extravagantes, porém refinados. Durante as conversas com seus convidados, o que eles comem, como comem e com quem (quando não é “quem”), revela o comportamento dos personagens, e muitas características são definidas em momentos como esse. Aqui fica mais que clara a importância do “diga-me o que comes e te direi quem és”.

A importância de todos os componentes mencionados nesse texto mostram como a arte deve ser colaborativa, e é impossível criar algo que case tão bem e tenha um resultado tão natural sem um olhar treinado de pessoas talentosas e comprometidas como a equipe de Hannibal. E olha que eu só falei de uma parte do processo de criação da série, mas uma importante. A intenção aqui não é só indicar a criação maravilhosa de Bryan Fuller, mas levantar um debate sobre a forma como mentes criativas como a de Davies e Poon conseguem fazer tanto com tão pouco tempo e um orçamento bem menor do que no cinema.

Seja em estúdio ou locação, muito do que nos emociona em tela acaba vindo do cuidado e atenção do design de produção em manter tudo perfeito para uma experiência memorável. É importante dar valor aos detalhes, eles falam bem mais do que parece e não servem apenas de enfeite, estão ali para contar uma história, é só prestar atenção.

Ah, e assista Hannibal. Vai que aquela quarta temporada acontece?

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Roberto Honorato
Rima Narrativa

"Mad Mastermind". Eu gosto de misturar palavras e ver no que dá. Escrevo sobre ficção científica para o Primeiro Contato e cinema para o Rima Narrativa 📼