Consciência Negra, Guerra e Paz

Flavio B. Vila Verde
Escritorazes
Published in
6 min readNov 20, 2016
Pintura por Antônio Parreiras.

Em cerca de mil cidades em todo Brasil — ironicamente nenhuma na Bahia — nos estados de Alagoas, Amazonas, Amapá, Mato Grosso, Rio de Janeiro e São Paulo, é feriado devido ao decreto que institui o Dia da Consciência Negra, na data que é atribuída à morte de Zumbi dos Palmares.

Na FLICA tivemos a oportunidade de conhecer o escritor nigeriano Helon Habila, com uma perspectiva semelhante a de Chimamanda Adichie no que diz respeito ao ‘re’conhecimento da cor da pele, do olhar diferente / excludente, do racismo. Interessante que temos na Bahia uma militância importante para o movimento negro, mas não há uma valorização da cultura negra. Não necessariamente a cultura afro, exibida nas mídias de forma estreita e estereotipada em meu ponto de vista, mas cultura em geral e sua representatividade na sociedade, advinda da herança e da história da formação do país. Nem é refletido como feriado oficial na cidade. Alguns bairros e áreas da cidade de Salvador “param” por conta de algumas manifestações na rua, com duas principais caminhadas. Mas literatura também é um viés de uma representatividade.

Não sou negro. Não sofro preconceito racial. Se eu for ao shopping de terno, não vão me confundir com um segurança. De terno dirigindo com alguém ao lado, não serei confundido com o motorista. Não vão mudar de calçada ou atravessar a rua se eu estiver indo ao encontro. Não vão achar que é assalto se eu pedir uma informação na rua para alguém. Essa ‘negativas’ eu ouvi como ‘afirmativas’ de um amigo advogado. Negro. Aqui na Bahia, capital com maior população negra, onde ocorreu de uma mulher agredir verbalmente um funcionário de uma loja dentro de um shopping, por ele ser negro. Bacana a notícia do G1 “PM retira mulher de shopping após suposta ofensa racista a funcionário”. Suposta… ‘suspeita de injúria racial…’

Tomar consciência do que é ser negro, se descobrir ser negro através dos olhos dos outros é algo doloroso no Brasil, onde quase não ha apoio por grande parte da sociedade, e das entidades que a formam, a escola, igreja, polícia, que apenas reproduzem o racismo. Se no seu trabalho lhe obrigarem a alisar o cabelo ou prendê-lo, isso é racismo.

Voltando à Literatura; o autor Paulo Lins ganhou fama com a publicação do livro Cidade de Deus (1997), o qual escreveu durante o período como assistente num estudo sociológico. Trata da vida nas favelas do Rio de Janeiro. Ele próprio, morador em Pequena África, nada mais predestinado. Na década de 80 o grupo Cooperativa de Poetas publicou seu primeiro livro de poesia: Sobre o sol (UFRJ, 1986). Mais tarde, foi graduado no curso de Letras, e contemplado com a Bolsa Vitae de Literatura em 1995. Foi o livro Cidade de Deus que deu origem ao filme aclamado de mesmo nome, adaptado para o cinema por Fernando Meirelles. O Paulo Lins depois fez alguns roteiros para a série de TV, Cidade dos Homens, abordando a mesma temática. Em 2012 Paulo Lins publicou seu segundo romance, Desde que o Samba é Samba, que começou a ser escrito antes de Cidade de Deus, recria momentos da formação cultural brasileira através do samba e da umbanda também por músicos do bairro carioca da Estácio na década de 1920, numa história ficcional com personagens reais.

Das palavras (e das obras) de Paulo Lins, pescamos a inserção do negro através da história do país após a Abolição. Deveria ter acontecido pelo mercado de trabalho, pela educação (escolarização) e pela cultura. Mas se deu apenas pela cultura. Nas palavras de Lins, “mais especificamente do samba e da umbanda” em referência na própria obra. A influência na cultura se deu por mais caminhos, na verdade. Na gastronomia, por exemplo. Mas, realmente, é pouco. É querer forçar de minha parte. O negro sempre foi marginalizado. Ainda hoje, em novelas brasileiras, o negro segue o esteriótipo das “castas” baixas. No mundo ‘real’ o dinheiro até deixa a pessoa ‘mais branca’, mas é preciso descobrir que ela tem.

O dinheiro representa uma nova forma de escravidão impessoal, em lugar da antiga escravidão pessoal. Liev Tolstói

Guerra e Paz

Vejo gente defendendo a ditadura, e ninguém lembra ou sabe que o Estado Novo de Getúlio Vargas fechou e proibiu um monte coisas contra o racismo, como a Frente Negra Brasileira, com poucos anos de existência. A FNB (primeiro partido político da população afrodescendente), teve como um dos fundadores, Arlindo Veiga dos Santos. Olha só como é simples fazer uma associação. Ele é de Itu, mudou-se para São Paulo, e lá fez curso universitário na Faculdade de Filosofia e Letras de São Paulo, concluindo em 26. Escritor e poeta, foi professor de latim, inglês, português, história, sociologia e filosofia. Lecionou em faculdades privadas como a Faculdade São Bento e na PUC (SP). Recebeu diplomas honoríficos e honrarias: Instituto de Direito Social da Academia Brasileira de Ciências Sociais e Políticas; Sociedade Geográfica Brasileira; Association de Poetes de Langue Française; American International Academy, de Nova York; dignidade e honra da Estrela e Cruz de Academic Honor; membro de honra da Légion des Volontaires du Sang, de Paris; Associazione Internazionale Insigniti Ordini Cavallereschi, da Itália.

A cultura e educação mudam as pessoas, transformam o mundo.

Em 1888, quando a escravidão foi abolida no Brasil, pela Lei Áurea, éramos o único país ocidental que ainda mantinha a escravidão legalizada. Neste ano, Nietzsche escreveu, entre outras coisas, ‘O AntiCristo’ (publicado sete anos depois). Neste ano é publicado em Porto “Os Maias” de Eça de Queiroz. E também um Estudo em Vemelho, de Conan Doyle. E umas duas coisas de Jùlio Verne e uma de Oscar Wilde. A Casa Amarela, e outras obras de Van Gogh é 1888. A Catedral de Nuestra Señora del Pilar y San Rafael foi completada e mais tarde serviria de inspiração à Aldyr Schlee para escrever ‘El dia en que el papa fue a Melo’. Heinrich Hertz estava fazendo suas traquinagens e descobriu as ondas de rádio.

Tolstoi tinha 60 anos então. E havia nascido seu último filho, Ivan Lvovich. Dos 13 filhos, oito sobreviveram à infância. Este último não foi um deles. Foi uma vida difícil. Sua maior obra, Guerra e Paz, estava em gênese desde 1863, com primeiro rascunho completado, título de 1808, depois reescreveu tudo, aí foi publicada com o título que conhecemos em 1869. Nessa literatura, Tolstoi nega qualquer livre-arbítrio dos personagens. Tudo acontece conforme um determinismo histórico. A novela conta a história de cinco famílias e o contexto da época, principalmente a invasão da Rússia por Napoleão, em 1812.

Uma guerra constante com algumas interrupções de paz vive o mundo. Para mim, branco, a percepção do racismo é sutil, imbricada na sociedade. Para quem é negro, é algo permanente, violento. Tristemente permanente. A intolerância existe devido a diferenças de cor de pele e de religião. Hoje, mais do que nunca, malucos usam como muleta pilares fundamentais da família brasileira, idílica da época do Estado Novo, onde a referência era a vida européia branca, mas com um pé esquisitamente no fascismo e idealismo que se aproxima do que foi a Alemanha nazista. E dos tempos de hoje, que uma interpretação pessoal radical de extrema estupidez, fazem da Religião, não apenas um muleta, mas uma metralhadora, para determinar o que é correto na existência da raça humana.

Através da educação e cultura, transmitida e apreendida com afinco, será possível criar um ambiente de paz e convivência entre ideologias diferentes, não sendo uma ideologia de morte e destruição. Não digo convivência entre raças. Temos apenas uma raça humana. Estupidez igual ou maior é achar que a cor da pele seja motivo de superioridade. O passado foi terrível nesse aspecto. Não podemos mais repetir esses erros.

Leon (Liev) Tolstoi morreu em 20 de novembro de 1910.
Zumbi dos Palmares, foi morto, em 20 de novembro 1695.

Texto publicado originalmente em 26 de novembro de 2015 e ainda continuo detestando a cultura do Estado Novo.

--

--