Fitz #02

Diego Francisco Oliveira
Escritorazes
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19 min readJan 6, 2017

Veja aqui o início do conto, Fitz #01

Eu sou o Fitzgerald, também conhecido como Fitz. Isso, Fitzgerald. Mas não sou um puta de um gringo, nem você está num conto americano. Isso foi arte do meu pai. Herdei o Fitzgerald da Ella Fitzgerald, grande cantora de jazz dos anos 1960. Meu pai era fã da Ella e, como nasci menino, ganhei o sobrenome da cantora: Fitzgerald.

Como eu estava dizendo, meus amigos me chamam de Fitz. Mais simples. Gosto das coisas simples, apesar de ter uma mente complexa. Falam que herdei isso do meu pai. Papai era um cara complexo, mais complexo do que intelectual. Éramos uma família de classe média, papai jornalista que sumiu no período da ditadura militar nos anos 1970. Nunca mais o vi.

Mamãe entrou numa depressão profunda e se matou. A partir de sua morte, minha vida foi morar com tios conservadores e minha rebeldia adolescente aflorou. Um crime aqui, outro ali… um baseado entre uma coisa e outra. Me tornei um adolescente indesejável, fã do The Doors — inclusive sempre me acharam parecido com o Jim Morrison, talvez seja o cabelo — e que um belo dia tocou um foda-se para os tios e caiu no mundo. Não vou gastar seu tempo contando o que fiz ou o que passei. Talvez o ar nessa cova não me dê tempo suficiente para isso. O fato é que me tornei um assassino profissional. Matador de aluguel. E dos bons, diga-se de passagem.

Engraçado como a gente descobre talento do nada. Nunca me imaginei tirando a vida de um ser qualquer. Óbvio que, quando criança, ao ser perguntado “o que você quer ser quando crescer? ”, ninguém pensa em responder “matador”. Mas a vida me trouxe até aqui. Comecei a fazer algum dinheiro e vi que poderia ganhar mais se fosse profissional. E isso é uma grande verdade. Não importa o que você faça, se você tratar com profissionalismo, colocar espírito na coisa, dará certo. Então, se especialize. Há várias formas de matar, de sumir com alguém.

Comecei então a criar uma reputação e acabei indo trabalhar para um cara chamado Julio Afonsini. Contrabandista dos grandes, o Afonsini é um puta de um bicheiro, rico pra caralho, que lava dinheiro à rodo na cidade e distribui cocaína aqui e ali. Cara gente boa. Tem dois filhos: uma bonequinha estudante de Direito, muito bonita e séria, tipo CDF. Já o garoto é um playboy que adora pó, carros caros e vadias.

O Afonsini sempre me tratou muito bem, com respeito. Ele veio de baixo. Depois soube que o nome Afonsini era só pra dar elegância; na certidão de nascimento original, Julio Afonsini se chamava Julio de Jesus Santos. E eu achando que só quem tinha pseudônimo era escritor. Puta que pariu, se era pra arrumar nome de mafioso de respeito colocava Corleone, caralho! Mas o cara escolheu Afonsini. Fazer o quê?

Enfim, comecei a trabalhar pra ele. Os serviços me rendiam uma grana boa e eu comecei a fazer meu pé de meia. Não dá pra ser matador a vida toda e, além de precisar ter algo honesto pra fazer após uma certa idade, eu sabia que quando aceitei trabalhar para o Afonsini não dava pra sair numa boa, tipo, cara, obrigado por tudo, agradeço a oportunidade, mas tô saindo. Té mais. Não é assim que funciona. Tinha que chegar com um presentinho de despedida. Uma mala com pelo menos cinquenta mil. Seria o suficiente.

Matei muita gente pro Afonsini e nunca tivemos problemas. Sempre fui recebido bem em seu escritório e no seu meio. Tinha entrada franca nas boates de strip e foi numa delas que conheci a Rosário. Na verdade, seu nome era Maria Fernanda, mas todos a conheciam pelo nome que usava na boate: Rosário. Viera do interior e fora batizada assim porque parecia uma atriz de novela mexicana, com cabelos pretos pesados e lábios carnudos. Era linda.

Lembro de seu primeiro número na boate. Usava trajes mexicanos e brincava com uma pimenta vermelha de mentira. No final do número, só sobravam no palco Rosário e a pimenta. Fiquei estatelado ao ver aquele corpo imperfeito — nunca gostei de mulheres perfeitas, gostosonas — com um discreto monte de pelos pubianos muito pretos. Terminei meu uísque cowboy e procurei informações sobre a garota. Falei com um amigo e ele prometeu nos apresentar quando a casa fechasse.

No final da noite, estávamos comendo num bar 24 horas e conversando bastante. Ela gostou do meu senso de humor e eu percebi que havia muito mais nela do que uma mulher atraente. De repente todo o seu corpo parecia não ter mais importância. Me apaixonei velho. Fui encontrar o amor depois dos 30 numa dançarina de boate, após conversar com ela às 4 da manhã.

Ela dividia um apartamento com outras colegas, mas acabamos num motel barato onde transamos ouvindo Take my breath away, do Berlin. Quer coisa mais brega que isso? Mas foi assim. Ficamos juntos e engatamos um lance. Eu não me importava que ela fosse dançarina, nem que saísse com um ou outro cliente que pagasse bem. Porra, eu era matador. Não me sentia digno de julgar qualquer trabalho. Claro que batia um ciúme foda de vez em quando, eu procurava não conhecer os tais clientes. Minha capacidade de idealização sempre foi muito aguçada e, só de imaginar…

Até que ela mesma começou a rejeitar as saídas. Para a “Casa” era ruim, mas conversei com o Afonsini e fizemos um acordo. Ele me pediu para matar um alcaguete que importunara um gerente de um ponto de drogas dele. O cara rodou e eu não levei nada pelo serviço, mas consegui que a Rosário não saísse com mais ninguém por uma pequena taxa simbólica todo mês. É, meu caro, no crime nada é tão fácil quanto parece. E assim levamos.

Eu e Rosário já tínhamos dois anos juntos quando a merda aconteceu. Estava com o Veterinário na barbearia do Clóvis. Nos encontramos por acaso na rua e ele me disse que estava indo lá. Clóvis era um cara do bem. Barbeiro de muito tempo no Centro da cidade. Aproveitei para acompanhar o Veterinário. Fomos conversando até a barbearia com portas e vitrine de vidro, parecendo saída de algum filme americano.

Bati um papo com o Clóvis e, quando o Veterinário sentou na cadeira de ferro para aparar os cabelos, saí da barbearia e fui numa quitanda do outro lado da rua. Vi uns morangos fresquinhos e Rosário adora morangos. Pedi um pacote com meia dúzia para a freguesa, quando ouvi o breque de uma moto na pista ao meu lado e uma voz dizer:

- Fitz…?

Quando me virei, vi um rapaz, o cano de um revólver e um clarão. Depois barulho, barulho e um calor no meu corpo. Caí enquanto o rapaz assustado largava a arma no chão e subia na moto, momento em que seu condutor arrastava pela avenida. Ouvi aglomerações e lembro de ver o Veterinário e o Clóvis no seu avental saírem da barbearia. Depois, apaguei.

Acordei três dias depois numa mesa fria de metal nos fundos da casa do Veterinário. Ah, esqueci de apresentá-lo. O Veterinário era o meu médico. Com ficha criminal e identidades falsas, não podíamos correr o risco de dar explicações à polícia quando chegássemos com ferimentos à bala num hospital. Então o Veterinário cuidava de mim quando era possível fazer alguma coisa. E no meu caso ele fizera um milagre.

Levei quatro tiros. Um pegou de raspão no braço, enquanto três perfuraram meu abdômen e tórax saindo do outro lado, sem causar danos internos. O Veterinário me levou rapidamente para sua sala de cirurgia improvisada no quintal nos fundos de sua casa e salvou minha vida. Quando abri os olhos ele estava lá, sentado numa cadeira lendo uma HQ do Batman.

Abri os olhos e a claridade me incomodou num primeiro momento, depois tudo ganhou foco. Tentei sentar, mas o Veterinário protestou:

- Oh-oh, calma aí campeão. Te costurei em uns três lugares. Devagar com os movimentos.

- Quão ruim é? — Perguntei.

Ele riu:

- Você é um filho da puta sortudo. Se tomar os remédios e repousar, vai ficar bem. Um ferimento foi superficial e os outros atravessaram você sem causar danos.

- Eu te devo uma vida.

- Deixe disso. Você não me deve nada.

- Eu não vou esquecer. — Disse, com voz fraca, lembrando que teria que me desfazer de uma parte de minhas economias para o Veterinário quer ele aceitasse ou não. Ninguém se alimenta de ar, luz do sol ou suco de universo. Não somos a porra de uma planta, então ele merecia ser bem pago pelo serviço.

Um silêncio ficou entre a gente e o Veterinário fez a pergunta que martelava minha cabeça:

- Quem fez isso com você Fitz?

Era uma pergunta com uma possibilidade grande de respostas. Ninguém é matador sem criar um grande número de desafetos e vingadores em potencial. Alguém que vingou a morte de um ente querido? Talvez.

- O atirador não parecia profissional. Era quase um garoto. — Respondi ao Veterinário.

- Eles saíram numa moto, mas ninguém pegou a placa. Quem armaria pra você?

- Eu não sei.

- Afonsini?

O Veterinário fez a pergunta com certa hesitação. Era um terreno perigoso e ele sabia disso.

- Por quê? — Rebati sem desconsiderar a possibilidade. No fim, não há honra entre criminosos. — Qual seria o interesse dele?

O Veterinário deu de ombros. Estava apenas dando uma sugestão. No fundo fazia sentido. Alguém armou para mim. Sabiam onde eu estava, havia um alcaguete nessa história. Só poderia excluir duas pessoas: O Veterinário e Rosário. Deixei ela dormindo quando saí de casa naquela manhã e ela não fazia a mínima ideia de onde eu estava. Quando lembrei disso, pensei nela e uma dor no peito tomou conta de mim. Perguntei, com medo de ouvir a resposta:

- E Rosário?

O Veterinário pareceu ler a aflição nos meus olhos castanhos escuros e tratou de me tranquilizar:

- Ela está bem. Soube do que aconteceu com você e ficou louca, procurando nos hospitais, no IML…

- Coitada da minha garota. — Lamentei triste.

- Mas conversei com ela. Disse que você estava sob meus cuidados e que ela não deveria contar a ninguém. Não sabemos quem fez isso, Fitz. Vi sujeitos estranhos rondando a casa, recebi uma ligação do Afonsini e menti, disse que não sabia de nada a respeito. Se ele estiver envolvido…

- Estamos mortos, eu sei.

- Por isso preparei uma transferência. Você vai pra casa de um amigo meu, num sítio. Fique lá por um tempo. Espere as coisas esfriarem, se planeje e volte. Daqui até lá vamos descobrir quem fez isso.

Ouvi a ideia do veterinário e, num primeiro momento, seria o melhor a fazer. Mas não esperaria muito. Quem fez aquilo comigo pagaria. E pagaria caro, muito caro.

A transferência correu bem, sem contratempos. Fui para um sítio na região metropolitana, alguns dias se passaram e ninguém fez mais perguntas a meu respeito. Achavam que eu estava morto num ponto de desova qualquer. Mas eu estava vivo, bem vivo e doido para achar quem fez aquilo comigo. Nos primeiros dias, me veio a ideia de que talvez fosse o momento perfeito para cair fora. Ninguém estava à minha procura, eu era dado como morto. Poderia ir embora com uma nova identidade e a grana que deixei no apartamento. Eu e Rosário iríamos para alguma cidade no litoral, abrir um bar e viver como nos fosse conveniente. Mas não. O impulso de descobrir a verdade fora maior. Precisava chegar à resposta daquilo tudo. Uma força invisível parecia me mover para descobrir a verdade ao invés de ouvir a razão e dar no pé. Talvez nesse momento eu tivesse selado meu destino.

Uma semana depois, estava de volta às ruas. O primo do Veterinário tentou me fazer ficar mais tempo, mas, quanto mais eu demorasse, mais as pistas esfriariam. Precisava agir, entrar no circuito de novo. Antes, mudei o visual um pouco. Cortei os cabelos, comprei um óculos de grau, peguei algumas roupas do primo do Veterinário. Não era mais o Jim Morrison. Parecia agora o Clark Kent, com aqueles óculos grandes. Assim, dificilmente alguém me reconheceria na rua.

Minha primeira parada foi no apartamento, à noite. Ninguém na rua, ninguém por perto. Dei algumas voltas no quarteirão para ver se tinha alguém de olho, algum carro suspeito, mas eu já era notícia velha. Outras coisas estavam rolando. Assim é o mundo do crime, deixa-se muita coisa de lado rapidamente. Mas eu estava lá, pronto para relembrar ao filho da puta o que ele tinha feito comigo. Passei pelo porteiro que não me reconheceu, mas também não fez perguntas. Segurança não era o forte do condomínio onde eu morava. Mas era discreto, tranquilo, com pessoas que iam e vinham de forma muito rápida. Peguei uma grana, minha Beretta com silenciador, uma jaqueta de couro e fui para a rua. Rosário não estava em casa, deveria estar na boate.

Fui ao lugar que poderia encontrar alguma informação: O Beco. O Beco era um bar que ficava justamente num beco e era gerenciado por um velho conhecido meu, chamado Carlinhos, traficante de armas na cidade. Fornecia pra muita gente, inclusive para o Afonsini. Cheguei manso, pedi meu uísque puro e fiquei numa mesa olhando o movimento. O bar era conhecido do público mais alternativo que procurava privacidade para suas loucuras — ali você poderia cheirar uma carreira de pó na mesa e ninguém te incomodaria. Contanto que você não perturbasse o funcionamento da casa, poderia ficar à vontade para curtir qualquer barato.

Esperei o movimento diminuir e fui até o escritório do Carlinhos nos fundos. A porta estava aberta e ele estava ao telefone. Um segurança barrou minha entrada, mas quando o Carlinhos me reconheceu, mandou que me deixasse entrar.

- Caralho, pensei que você tinha morrido!

- Cá estou eu.

- Você mudou. Cortou o cabelo… E onde arrumou esses óculos de viadinho? — Disse, sorrindo.

- Quando voltei do mundo dos mortos, achei que precisava mudar um pouco.

Carlinhos me olhou nos olhos e entendeu o que eu queria:

- Feche a porta.

Obedeci e logo depois me sentei. Ele tirou um pouco de cocaína de uma gaveta, despejou sobre um pedaço de vidro na mesa, fez uma carreira e com uma nota de cem enrolada e puxou tudo.

- Vai?

- Não. Hoje estou fora desse jogo.

- Qual o seu jogo?

- Acredito que você sabe qual é.

- Por que não o Afonsini? Não confia mais nele?

- Eu não sei em quem confiar, Carlos.

- Mas ainda assim veio aqui até mim.

- A gente precisa começar por algum lugar, não acha?

- Muito bem. Disse ele, esfregando o nariz. — Correu nas ruas o comentário de que um garoto estava atrás de um 38. Ele não era envolvido com ninguém, não participava de nada. Um cara comum.

- Continue.

- Esse mesmo cara comum perguntou a outras pessoas se alguém conhecia você.

- Quais as pessoas com quem ele falou?

Carlinhos hesitou.

- Olha, Fitz… eu não posso sair por aí falando sobre essas coisas, dando o nome de pessoas. Perco a credibilidade se andar tagarelando por aí. Você sabe que as informações chegam, é assim que funciona. A gente ouve uma coisa aqui, outra ali…

- Eu imagino. Compreendo. É uma pena. — E, ao dizer isso, coloquei um bolo de notas de cem sobre a mesa, presas por uma borracha. Tinha uns dez mil ali.

Carlinhos olhou para o monte de dinheiro. Ele não precisava contar para saber quanto tinha. Ele percebeu que a coisa era séria e que, se não aceitasse a grana, eu tentaria métodos mais coercitivos com a minha beretta.

- Lembra do caso Chaves? — Perguntou ele, tirando os olhos do dinheiro.

- Sim, lembro.

O caso Chaves era um dos casos mais emblemáticos da cidade. Raul Chaves era a testemunha chave — me perdoem o trocadilho na narrativa — de um caso de desvio de verbas e irregularidades numa secretaria do governo do Estado. Parte da campanha do atual governador havia sido financiada por uma força tarefa que envolvia os principais criminosos da cidade. Depois da eleição, o crime queria sua parcela de contribuição de volta.

Raul Chaves começou a perceber as falhas, os buracos e quis investigar demais. O caso estourou, um jornalista fez a denúncia e o governo se viu envolvido num escândalo. O governador negou qualquer envolvimento e o Chaves foi morto num “latrocínio”. Conversa fiada. Na verdade, eu matei o Chaves. O Afonsini me pagou para fazer o serviço. O jornalista entendeu o recado, as matérias pararam e o assunto foi encerrado. Um traficante de merda que devia uma boa grana ao Afonsini assumiu a morte do Chaves e foi condenado. Ninguém mais bisbilhotou a respeito.

- O filho dele apareceu por aí. Disse que sabia da história, queria vingança. Ele não podia matar o Afonsini nem o governador. Então, foi atrás de você. Queria fazer justiça. Ninguém levou muito a sério, ele é só um garoto de dezoito, dezenove anos.

Ouvi aquilo tudo com atenção. Então era o filho do Chaves? Realmente, agora que o Carlinhos me falava aquilo, eu lembrava do rosto do rapaz e me vinha a semelhança entre pai e filho. Mas, alguma coisa parecia não se encaixar. Era perfeito demais, improvável demais.

- E então, o que você vai fazer? — Perguntou Carlinhos, com certa ansiedade no tom de voz.

Acendi um cigarro e respondi, dando uma baforada:

- Dar o fora. Ainda estou vivo. O garoto acha que conseguiu sua vingança. Vou sumir. Recomeçar em outro lugar. — E levantei, deixando o dinheiro na mesa.

Carlinhos apertou minha mão e nos despedimos no seu escritório. De lá, fui para o meu apartamento. Não acreditei muito naquela história do Carlinhos e menti sobre meus passos. Na manhã seguinte iria atrás do filho do Chaves. Encontrá-lo não seria difícil. Realmente fora ele quem atirara em mim… ou será que fora alguém muito parecido?

No apartamento, me livrei dos óculos e descolori os cabelos, agora muito curtos. Numa situação como essa, você precisa ser um camaleão. Não confiava no Carlinhos e, se ele estivesse envolvido e desse com a língua nos dentes, falaria que eu estava de cabelo curto e óculos. Se ainda tivesse alguém à solta querendo me pegar, eu não seria uma presa tão fácil.

Apaguei na cama, cansado de tudo aquilo. Fui acordado às 05h da manhã por uma Rosário eufórica em me encontrar novamente em casa. Fizemos amor. Eu senti tanta falta dela, do seu perfume, da sua pele, da sua voz. Me senti cheio de vida e esperança novamente. Rosário tinha esse poder de me dar esperança, de ser uma luz nos meus dias sombrios.

Nus na cama, conversamos sobre o meu caso. Ela me chamou atenção por não estar no sítio e sugeriu que fossemos embora, que aquela era uma chance para fugirmos de tudo e começar uma vida nova. Entendi o seu ponto de vista, na verdade eu mesmo já tinha pensado naquilo. Mas não podia começar uma vida nova sem resolver os problemas da vida velha. E aquela história do filho do Chaves estava muito, muito estranha.

Depois de tanto conversar, tiramos um cochilo e eu levantei às 09h, deixando Rosário dormir. Tomei um café e fui pra rua. Tinha planos importantes para aquela manhã.

Eu podia sentir as sacudidelas do garoto no porta-malas do meu velho Maverick. Eu o peguei poucos metros do seu prédio. Eu sabia o endereço da família de quando fiz o serviço com o pai. Passei no condomínio, me informei e descobri que os Chaves ainda residiam no local. Foi só questão de tempo de ver o playboy que tinha metido quatro balaços em mim aparecer na portaria e ganhar a rua.

Num primeiro momento, ele não me reconheceu. Mas notei uma descoberta em seu olhar antes de acertá-lo com a coronha da arma e ele desmaiar sobre o porta-malas do Maverick. Era um garoto magrelo, cabelos pretos, moreno. Parecia não ter colhões para disparar um 38 em alguém, mas definitivamente fora ele quem atirara em mim. Eu estava prestes a saber o porquê.

Parei numa região industrial bem afastada do Centro. Ele poderia correr à vontade que ninguém ouviria. Estávamos próximos a um galpão fechado com uma grande área externa onde uma placa de aluga-se fora posta com o número da imobiliária. Parei o carro e tirei o garoto da mala. Ele se virou para mim, tremendo. Eu apenas sorri e lhe apontei a arma. Ele fechou os olhos e pediu:

- Pelo amor de Deus… por favor… Não faça isso… Por favor.

- Sinto muito, garoto. Ninguém atira em mim e vive para contar a história.

- Mas a culpa não foi minha! — Lágrimas começavam a rolar e um líquido escuro começou a escorrer das calças. Era bem diferente quando se estava do outro lado da arma. — Eles me obrigaram, eles me forçaram.

- Não adianta vir com essa. — Joguei. — Você vai pôr a culpa em alguém pra me enrolar. Entendo você querer vingar a morte do seu pai e….

- Não foi isso! — Gritou o rapaz, em prantos. — Não foi isso!

- Pouco importa. — Disse, com tom de ponto final. — Adeus.

- CARLINHOS! — Gritou o garoto com os olhos fechados, esperando ouvir o disparo e a bala entrar na sua cabeça.

- Como é? — Perguntei, calmamente. — O que você disse?

- Carlinhos, foi o Carlinhos. Ele me contratou para matar você. Eu juro!

Quando ouvi aquilo, não fiquei surpreso. Mas qual o interesse do Carlinhos? Na certa ele deveria ser apenas um intermediário. Alguém pedira para que ele arrumasse o serviço, só podia ser. E eu ainda dei dez mil ao filho da puta pela informação.

- Conte-me mais.

- Carlinhos entrou em contato comigo, disse que se eu não fizesse isso as pessoas que sumiram com meu pai sumiriam com a minha mãe e que não aconteceria nada comigo e tudo iria ficar bem. Que era algo muito simples de ser feito, que era só atirar e o cara na moto me daria cobertura caso acontecesse alguma coisa.

O garoto era autêntico. Era a típica cilada e ele o bode expiatório perfeito. Não seria possível contratar alguém para me pegar sem que eu acabasse sabendo. Então, trouxeram o laranja perfeito. Fazia muito sentido.

Eu guardei a beretta na cintura e disse:

- Você vai continuar vivo para viver mais um dia, garoto. Mas, se algum desses caras vier atrás de mim porque você abriu o bico, não haverá piedade e você roda. Entendeu?

Ele balançou a cabeça afirmativamente e eu entrei no Maverick, ouvindo ele gritar:

- Hei, me dá uma carona?!

- Ande! — Gritei de volta, já dentro do carro.

No carro, os pensamentos na minha cabeça corriam tão velozes quanto o Maverick. Liguei para Rosário, mas ela não atendeu. Precisava avisá-la o mais rápido possível do que estava acontecendo. Talvez Carlinhos acreditasse na minha história de sumir, talvez não. O certo era que quem encomendou minha morte agora sabia que eu estava vivo e minha cabeça posta a prêmio novamente. Tentei de novo a Rosário e nada. Logo um mal-estar tomou conta de mim e pensei se eles não tinham pegado ela.

Rondei algumas vezes a rua do meu prédio antes de entrar na garagem com o Maverick. Subi até o apartamento e, ao chegar, encontrei tudo revirado e nenhum sinal de Rosário. Puta merda! Os filhos da puta a pegaram! Foi meu primeiro pensamento. Mas, como matador profissional, sabia que precisamos nos certificar primeiro dos fatos antes de qualquer atitude precipitada. Nossa vida é feita de decisões importantes e precisamos manter o sangue frio.

Liguei novamente, sem resposta no celular. Procurei o dinheiro no cofre escondido num fundo falso do guarda roupa, estava tudo lá: dinheiro, armas e poucas joias de valor. Botei tudo numa grande mala de viagem e desci. Pedi um táxi. Andar com o Maverick seria me expor. Os cães estavam trás de mim e não podia dar bandeira andando com um carro que era praticamente a minha marca registrada.

Deixei a bagagem num local seguro e depois fui para uma locadora de carros. Aluguei um Volkswagen Polo na cor preta e fui à forra. Engraçado como na nossa vida no crime alguns detalhes fazem toda a diferença, como saber onde as pessoas residem, por exemplo. Carlinhos achava que eu não conhecia o seu endereço, mas eu sabia onde o filho da puta morava. Não foi difícil entrar no seu apartamento e o rastro que eu deixei…

Com um forte chute, arrombei a porta, que cedeu sem dificuldade. Logo na sala, dois seguranças sentados no sofá foram surpreendidos por mim de arma em punho, mas nada puderam fazer. Com precisão cirúrgica, disparei um tiro na cabeça de cada um. Caíram nos sofás inertes, mortos instantaneamente. Caminhei pela casa de arma em punho e encontrei o Carlinhos no quarto, deitado, dormindo. Acordei ele com um tapa no rosto.

Quando me viu, o cara de preto ficou branco. Seu susto foi maior ainda quando viu a beretta com o silenciador. Carlinhos tinha um defeito: era comerciante de armas, mas odiava armas. Não gostava de andar armado e confiava nos seus seguranças. Se ao menos ele fosse mais precavido e tivesse escondido alguma por ali…

- Por quê? — Perguntei, apontado a arma.

- Fitz, por favor, cara… não faz isso. — Começou ele, implorando.

- Por quê? — Repeti, de forma mais incisiva.

- Afonsini. — Respondeu ele.

- Afonsini? Afonsini? — Perguntei, sem acreditar.

- Sim, não o pai… O Júnior.

Minha cara de surpresa foi maior ainda. O Playboy metido que vivia às custas do pai cheirando todo o pó possível na face da terra?! Mas o que eu fiz para aquele filho da puta?!

- Por quê? — Foi o que saiu na hora.

Carlinhos hesitou um pouco e finalmente respondeu:

- Rosário cara. Ele se apaixonou pela Rosário.

Então estava explicado. O filho da puta se engraçou pros lados da minha morena.

- Fala. — Ordenei.

- Ultimamente ele tem frequentado a boate bastante, quer aprender sobre os negócios, talvez até gerenciar o lugar. O fato é que ele se interessou, mas ela o rejeitou. Ele forçou a barra e ela deu um fora dos grandes nele. O cara se acha o irresistível, tentou tirá-la de lá, mas o pai segurou a onda. Disse que ele agisse como homem e respeitasse. Principalmente porque ela era mulher de um homem de confiança. Foi aí que o Júnior começou a implicar contigo, pelo que eu sei. O cara é um tirano filho da puta e queria tirar você da jogada. Achou que o melhor seria te matar, mas o pai não poderia saber, ninguém poderia saber.

- E como você entra nisso?

- Eu devia uma grana ao Júnior. Cocaína, cara… Ele me procurou, queria um profissional e eu lhe dei a ideia do Chaves. Seria perfeito.

- Pena que não foi. — Falei, com ironia.

- Poxa cara, nunca foi pessoal. Eu, eu sempre gostei de você! Foram só negócios. Não foi pessoal.

- Eu entendo, Carlinhos. — Disse, com naturalidade. — Isso também não será pessoal.

- O quê?

Minha resposta foram dois tiros: um na garganta e outro bem no meio da testa. No fundo, eu até gostava daquele crioulo.

Terminado no apartamento, eu agora precisava acertar as contas com o Júnior. A coisa estava feia. Como matar o filho de um dos maiores criminosos da cidade? Talvez propor um acordo? Conversar? Não, Afonsini me conhece. Ele não ia querer correr o risco e duvido muito que a ordem de acabar comigo, depois que essa história viesse à tona, partisse dele mesmo.

Foi quando cometi meu erro — coisa rara de acontecer quando se trata de mim fazendo o meu trabalho. Saí do prédio do Carlinhos despreocupado, com a cabeça voltada para a solução do caso quando dois homens me enquadraram. Não deu tempo de sacar a beretta e um deles encostou o cano frio de uma arma em mim: eram homens do Júnior. Eu fora pego.

Apanhei feito mala velha. Me levaram para uma casa no meio do mato e me bateram até que os pontos do Veterinário abriram. O filho da puta do Júnior estava lá, saboreando cada momento. Mas ao menos num ponto eu estava feliz: eles não tinham encontrado a Rosário. Achavam que eu sabia onde ela estava, mas não fazia a mínima ideia. Pouco me importava agora. Pelo menos alguém saíra vivo daquilo tudo. E Rosário merecia. Merecia algo melhor, uma nova vida. Talvez ter uma família, filhos…

Quando viram que eu não sabia de nada, os canalhas me colocaram num caixão e me enterraram vivo. O Júnior disse que uma bala seria bom demais para mim, eu merecia sofrer. Gritei, gritei, gritei até onde tiver forças, mas…

Agora cá estou eu, começando a sufocar. O ar vai se esvaindo e sinto a morte cada vez mais próxima, rastejante, como se viesse das entranhas da terra para me engolir. É o meu fim. De repente, tento respirar. Puxo o ar, mas ele parece não existir e uma dor sufoca meu peito. Estou me afogando e meu peito queima. Mas não há água, não há mar, não há nada… Só o escuro.

Silêncio. Silêncio. Silêncio. Escuro. Escuro. Silêncio.

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Diego Francisco Oliveira
Escritorazes

Autor de romances policiais e outras histórias, apaixonado pela banda Beirut e por literatura de todo o gênero.