Meu amigo Baltazar
Houve um tempo em que a infância não era retratada com crianças e seus “brinquedos tecnológicos”. Um tempo sem a sofisticação dos videogames e dos smartphones. A infância não era vivida por uma tela digital, mas sim saboreada nas ruas dos bairros. Durante o dia, crianças se reuniam para jogar bola em traves improvisadas com sandálias ou feitas precariamente de madeira: o popular gozinho (o correto seria golzinho, uma referência ao tamanho pequeno do gol, mas o “l” era suprimido na expressão). À noite, meninos e meninas se juntavam para brincadeiras adquiridas pela tradição: pega-pega, esconde-esconde, garrafão, amarelinha…
Na Rua dos Contentes, onde eu morava, não era diferente. Um grupo de cinco garotos entre 9 e 11 anos formavam uma verdadeira irmandade que compartilhava esse momento especial da vida de qualquer ser humano. À tarde, depois das tarefas escolares, geralmente lá pelas três, quatro horas, a gente ia saindo um a um, aparecendo na rua, como se o horário estivesse sido combinado previamente. Quando um demorava um pouco para aparecer, outro tratava de chegar à porta da casa e gritar:
- Ô Tiaaaago… Tiaagooo… Tia, o Tiago tá aí? Fala que a gente tá esperando ele aqui fora. — Esse era o Duda, chamando um dos membros da nossa gangue. A cena era comum.
Nossa gangue era formada por mim, Francisco, Tiago, Rafa, Miltinho e Duda.
Depois do futebol da tarde, aparecíamos com a mesma sincronia à noite, caminhando pela praça do Largo e tomando assento na sede do grupo: as escadarias de uma igreja. Alí, nós conversávamos sobre o dia, falávamos da escola, de filmes, contávamos histórias… Isso quando a gente não se juntava às outras crianças no largo para brincadeiras.
A Rua dos Contentes colaborava muito para nossa diversão. Era uma rua reta de asfalto, que terminava num grande largo com uma praça central rodeada de casas. Nesse largo, as crianças jogavam bola, brincavam na praça ou se reuniam para conversas — que era o caso do nosso grupo.
E, como não poderia faltar, a Rua dos Contentes tinha o seu próprio folclore. Girava em torno de Baltazar, um homem mal trapilho que andava com um saco de tralhas nas costas. Usava roupas gastas e rasgadas, tinha a barba grande, os cabelos longos e desgrenhados. As crianças corriam dele com medo e, quando alguma mãe queria impor sua vontade ao filho, advertia: “se você não fizer, eu vou mandar o Baltazar pegar você” falava, em tom ameaçador.
Baltazar virou o homem do saco. Sua chegada na praça sempre fazia as crianças correrem aos gritos: Lá vem Baltazar! Lá vem Baltazar!
O homem às vezes fazia menção de pegar alguma criança, com cara de raiva. Em outras oportunidades, passava falando sozinho, sem dar atenção aos gritos. Também passava calado, quase desapercebido. Ninguém sabia a sua história, o que fazia ou como vivia. No máximo, sabíamos que morava em uma casa abandonada no largo. Mas, na verdade, ninguém estava preocupado. Ele era o “maluco” da nossa rua.
Naquele dia, quando ele passou correndo atrás de algumas meninas que brincavam de pular corda na praça, rimos e depois falamos nossas teorias sobre Baltazar:
- Será que ele pega mesmo crianças? — perguntou Miltinho.
- Minha mãe diz que ele é maluco. — Respondeu Duda. — E que não é pra gente chegar perto. Lá dentro dela, teve um maluco que deu uma pedrada na cabeça de um menino. Levou ponto! O corte foi grandão.
-Ih, foi mesmo? E será que doeu? — Perguntou Duda.
- Doeu nada, seu besta. O médico dá anestesia. Hoje nada dói mais. — Disse Rafa, que era uma espécie de líder do nosso grupo.
- Eu que não quero levar ponto. — Respondeu Miltinho. — Deve doer mais que injeção.
- Eu já disse que não dói…
Eu era o mais tímido dos garotos, então apenas ficava ouvindo as histórias. Sempre fui de falar pouco, gostava mais de ouvir e dar risadas. Por isso, quando eu falava, o grupo geralmente ouvia com atenção:
- Acho que ele não é maluco. Só é diferente.
- Como é ser diferente? — Perguntou Miltinho.
- Diferente… diferente. — Tentei eu, dando a mesma definição. Na verdade, não sabia exatamente o que eu queria dizer. Só não achava Baltazar maluco.
Todos ficaram pensativos, como se tivessem entendido o que eu havia dito. Mas na verdade não entenderam nada. Nem eu sabia exatamente o que quis dizer.
- Meu primo vem pra cá esse fim de semana. Ele vai pedir à mãe dele pra trazer o videogame. A gente podia jogar todo mundo lá em casa. — Disse Rafa, depois do silêncio.
- Eba! — Respondeu Miltinho com cara de felicidade.
Tiago comentou:
- Fala pra ele trazer o Donkey Kong. Meu irmão locou a fita semana passada. Ele me deixou jogar com ele. É bem legal. São dois macacos.
- Tem Top Gear? — Perguntou Duda.
- Top Gear é massa também. — Observou Tiago.
- Deve ter. Meu primo tem tudo, um montão de fita lá. Quando fui na casa dele, ele me mostrou uma caixa cheia.
- Tiago, seu irmão não deixa a gente jogar no videogame dele não? — Perguntou Miltinho.
Tiago fez cara de quem tinha acabado de tomar um remédio amargo:
- Deixa não. Ele fala que eu sou pequeno pra mexer no videogame e que eu posso quebrar. Diz que eu sou criança ainda. Que quando eu crescer ele vai comprar outro e me dar esse.
- Tomara que você cresça logo. — Comentou inocentemente Miltinho. — Pra gente poder jogar e ter um videogame só pra gente!
Continuamos conversando até que, uma a uma, nossas mães foram aparecendo e nos chamando para casa. Fui pra cama pensando em como deveriam ser os jogos que conversamos naquela noite e fiquei na expectativa do fim de semana onde teríamos videogame pra jogar. Não era tão bom quanto jogar bola, mas era divertido também. E o primo do Rafa era legal.
No dia seguinte, depois da escola e das tarefas, fui pra rua jogar bola com os meninos no nosso habitual campo: uma parte do largo onde os carros não passavam e nós montávamos nossas traves para o “golzinho”. Eu estava de fora, esperando a minha vez. Tiago e Duda jogavam contra Rafa e Miltinho. Alguns meninos da rua de trás também apareceram para jogar com a gente. O largo vivia sua algazarra infantil de costume.
No meio da correria da bola, Rafa deu um chute forte, ela subiu e entrou pela janela quebrada do casarão abandonado onde Baltazar morava.
- Ihh…- Ouviu-se em uníssono.
- Perdeu a bola. — Comentou um dos meninos da outra rua que estava de fora. — Acabou o baba.
- Francisco, o torneio é seu. — Falou Tiago, indicando que eu deveria pegar a bola. No nosso costume, quem ficava de fora esperando a vez pra jogar, pegava a bola quando ela corresse muito pra fora da nossa área de jogo. Era o chamado “torneio”.
- Nada disso. — Protestei. — Rafa que tem que buscar. Ele que deu esse chute na bola. A culpa é minha se ele chuta assim forte? Vou não.
- Eu mesmo não. O torneio é seu! Você que tem que buscar a bola. A de fora é sua e você que tem que pegar. — Rebateu Rafa. Ninguém queria ter a responsabilidade de pegar a bola. Não depois dela ter caído na casa do “Homem do Saco”, o terror da Rua dos Contentes.
Logo os demais estavam dando palpites e todos falavam ao mesmo tempo, discutindo sobre quem deveria pegar a bola. No final, depois de tanto deliberarmos, decidimos fazer uma votação e prevaleceu o argumento de que, como eu era o torneio, a obrigação era minha e eu deveria buscar a bola onde quer que fosse. Me dei por vencido. No fundo, eu sabia que o dever era meu. Mas ter que buscar a bola na casa de Baltazar era uma ideia que ninguém gostava.
Me encaminhei então ao velho casarão. Os meninos se agruparam atrás de mim, observando enquanto eu caminhava devagar, inseguro, para a casa que caía aos pedaços. Lembrei das histórias que inventávamos da casa: de que ela era mal assombrada e de que Baltazar cozinhava as crianças num grande forno lá dentro. Me lembrei então que nunca vira fumaça saindo do lugar. Como será que ele fazia então?
Cheguei na frente e parei à porta, que estava sempre entreaberta. Pensei em chamar por Baltazar e pedir a bola, mas não pareceu uma boa ideia. O que eu diria quando visse aquele homem grande, cabeludo e barbudo na minha frente? Não. Seria melhor entrar furtivamente e, rápido, pegar a bola lá dentro. Talvez Baltazar estivesse pela rua, ninguém sabia.
Vacilante, abri a porta de madeira só um pouco, sem querer fazer barulho. Espremi meu corpo magro pela brecha. Dava para sentir a expectativa dos meninos atrás de mim e meu coração parecia que ia sair pela boca. Logo que entrei, me deparei com quatro degraus de madeira que me conduziram ao salão.
O piso era todo de madeira e frestas de luz vindas dos buracos do telhado cortavam a sala, iluminada pela luz natural que vinha das grandes janelas da casa. Enxerguei a bola junto à uma parede, mas o que chamou minha atenção foram várias prateleiras do lado esquerdo da casa.
Me aproximei. Havia uma série de objetos: esculturas, pinturas, pulseiras, correntes, brinquedos… Tudo feito com os mais variados materiais, plástico, azulejos, couro, garrafas de vidro… Era um mundo colorido e bonito que me deixou impressionado. Me perdi por um momento, admirando aquele trabalho até então desconhecido. Havia uma jangada feita com garrafa plástica de refrigerante e fitas coloridas que me deixou encantado. Meu medo passou e aquele casarão velho, que antes parecia reservar toda a sorte de males, me presenteava com coisas bonitas de se ver.
Foi quando ouvi passos e, assustado, olhei para o lado. A figura enorme de Baltazar apareceu com a bola na mão. Meu medo voltou e não consegui mover um músculo de tão assustado. Ele caminhou em minha direção, seu peso fazendo o velho chão de madeira ranger.
Tive vontade de gritar, mas não conseguia abrir a boca. Quando ele chegou perto, estendeu a bola para mim.
Demorei alguns segundos para entender que ele me entregava a bola. Estendi as mãos e a segurei, nervoso. Ele olhou para a jangada de fitas que antes eu admirava:
- Gostou? — Perguntou numa voz serena, de tom grave.
Balancei a cabeça afirmativamente. Ele pegou a jangada e me entregou:
- É sua.
Meus olhos brilharam. Deixei a bola cair para segurar o objeto que achara tão bonito.
- Mas, mas… — Disse, pensando em ser educado e recusar o presente.
- Nada de “mas”. Agora pegue a bola e, da próxima vez, tenha cuidado. Tem coisas importantes aqui que uma bolada pode quebrar.
Concordei, balançando a cabeça novamente. Disse que tomaríamos todo o cuidado. Foi quando, pela primeira vez, o vi sorrir. Um sorriso amarelo, faltando alguns dentes, mas sincero.
- Obrigado. — Respondi, estendendo a minha pequena mão.
Baltazar a apertou e depois eu peguei a bola. Na saída, olhei para trás, mas ele já havia sumido lá dentro. O que me chamou atenção foi que, na prateleira, havia um porta-retrato com a imagem de um garoto. Eu não tive tempo de examinar a foto, já era hora de sair.
Quando cheguei na rua, não havia mais ninguém. Os meninos não estavam lá e percebi que demorei mais do que devia. Depois, no caminho de casa, encontrei os garotos e soube que eles saíram para buscar ajuda, achando que Baltazar tinha feito alguma coisa comigo, como por exemplo me cozinhar no forno.
Contei a eles o que vira lá dentro e mostrei o presente que Baltazar me dera. Foi uma grande novidade. Quando cheguei em casa contei a meu pai, que perguntou:
- Baltazar, o maluco?
- Ele não é maluco, pai. É um artista.
- Pelo visto é mesmo. — Disse meu pai, observando a jangada. — Olha só, Luciana, o que o Francisco ganhou do Baltazar.
- Vai devolver. — Disse minha mãe, séria. — Não quero você com coisa de doido não.
- Ele não é doido.— Repeti, cansado de falar a mesma coisa às pessoas. — E o que é que tem? É tão bonito o barco.
- É uma jangada, filho. E é bonita mesmo. — Respondeu papai. — Vou conversar com sua mãe sobre você ficar com ela.
Sorri e abracei meu pai por me apoiar.
À noite, na escadaria da igreja, todos os amigos queriam ouvir sobre minha história na casa de Baltazar. Eu, que não era de falar muito, estava todo falante e contando a história do começo, desde o chute de Rafa, até nossa discussão sobre quem pegaria a bola, o meu medo de entrar no casarão velho e o encontro com Baltazar.
Naquela noite, fui dormir pensando na minha aventura e lembrei da foto do garoto no porta-retrato. Seria uma foto de Baltazar criança? Seria de um parente dele? Um filho? Ou seria apenas mais alguma coisa que ele achou descartada em algum lugar?
Nos dias seguintes, nada mudou. Baltazar continuou o “maluco” que vez por outra corria atrás das crianças quando passava pelo largo, as mães continuavam falando que, se os filhos não obedecessem, chamariam Baltazar para colocá-los dentro do saco. Mas às vezes, quando nossos olhares se cruzavam, percebia um reconhecimento e um tímido sorriso. Sorria de volta.
O tempo passou, nos mudamos do bairro e eu não sei o que aconteceu com Baltazar. Hoje, sei que ele era uma pessoa numa situação muito difícil, mas que, ainda assim, escolhia fazer arte, transformar o feio e descartável em algo belo. Espero que ele tenha sido feliz.