Por que eu estou quase sempre à beira do suicídio — e por que não me suicido

escritor ruim
escritos escrotos
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16 min readSep 10, 2016

[carta aberta aos suicidas]

I.

Tudo começou quando eu tinha uns doze anos. Naquela época, não existia internet, não existia nada, você ficava maravilhado quando em algum momento alguém lhe explicava como os bebês são feitos, depois descobria o famoso cinco-contra-um ao perceber como era gostoso insistir naquele vai-e-vem da sua mão direita empunhando seu brinquedinho novo, então usava as modelos das revistas de vendas de lingeries da sua mãe para se aprimorar na prática. Você não sabia o que acontecia além da esquina, a não ser pela televisão. Você apenas ia e voltava todos os dias do colégio para casa, jogava futebol, se esmurrava com quem tivesse por perto, varava madrugadas no vídeo-game, aí você entrava na puberdade e tudo o que lhe restava era continuar a fazer tudo do mesmo jeito sem mudar coisa nenhuma, com o único acréscimo de passar a bater tantas punhetas quantas fossem possíveis no decorrer de um dia.

Eu era o menor da turma do colégio. Era o fracote da sala. Há uma boa explicação para isso, mas não vale a pena perder tempo com ela agora. Eu às vezes dava das minhas, mas sempre apanhava mais do que batia. Eu era sempre o último a ser escolhido pro time. Qualquer time, de qualquer coisa. Eu era o tipo de garoto que tirava as melhores notas da sala. Nisso eu era realmente bom, ao contrário do que acontecia em todo o resto. Mas na prática isso não me ajudava em absolutamente nada.

Até que eu conheci um carinha. Ele era esperto. Seu nome era Alexander, mas todos o chamavam de Alex. Ele morava com a mãe e cinco irmãs, e odiava todas elas. Especialmente a mãe. Tinha boas e sérias razões para isso, mas eu não vou mencioná-las aqui. No começo, ele só queria jogar do meu vídeo-game, além de ficar o mais longe possível da mãe, e assim passava dias em minha casa. Uma boa casa, grande, com algum amor e boa comida. Alex tinha também uma grande mancha vermelha na cara. Um enorme sinal que cobria quase todo o lado esquerdo do seu rosto. Isso podia lhe dar uma aparência monstruosa, mas ele era também o cara mais engraçado da turma, o que mais aprontava, e mais arrumava confusão. E se tornaria meu melhor amigo, até alguns anos atrás. Hoje não nos falamos mais. Nos odiamos.

Eu ainda não tinha chegado a refletir sobre a vida nem sobre nada, e aquele era um tempo agradável apesar de tudo. Mas o despertar viria à galope. Numa única noite, eu ia descobrir quem eu era de verdade.

Eu não sei bem como aquela conversa começou, só sei como terminou. Eu e Alex jogávamos vídeo-game o tempo todo. No fim de um daqueles dias de sempre, ele disse que já era tarde, como sempre fazia. Eu o acompanhei até o portão de casa, mas em vez da nossa despedida rápida começamos uma conversa despretensiosa, e de um assunto passamos a outro, e depois a outro, até que a conversa foi se tornando longa, cada vez mais longa e difícil. Interminável. Foi a primeira vez que conversei com alguém sobre a vida, sobre qualquer coisa. Por algum motivo começamos a falar de mim. Sobre o que eu era. Sobre o que eu representava para o mundo. E, ao que parece, eu era um idiota. Eu era o cara mais desprezível conhecido. Era o grande otário entre toda a humanidade. O que só apanhava, o cara de quem todo mundo tirava sarro. Eu suportei ouvir tudo aquilo com calma, fazendo perguntas para entender os detalhes. Não foi fácil.

Então era assim que todos me viam. Eu nunca tinha parado pra pensar daquele jeito, não era assim que eu via as coisas, eu apenas encarava tudo aquilo e tentava fazer das minhas às vezes, mas pelo jeito o que ele dizia fazia sentido. Depois nos despedimos, ele virou as costas e foi embora devagar, tarde da noite, me deixando pesaroso e só.

Foi meu primeiro grande encontro com a melancolia, a primeira grande decepção de um menino diante da vida. Foi quando eu descobri como o mundo é indócil, escroto e cruel. O germe do meu desprezo pela humanidade encontrava solo fértil: se todos estavam contra mim, eu estaria contra todos.

Demos um tempo. Eu e Alex ficamos sem nos falar. Tudo continuou mais ou menos na mesma. Eu jogava vídeo-game, me masturbava até não poder mais, assistia à televisão, ia e voltava do colégio. Pensei muito sobre aquela conversa. Até cansar. Aceitei algumas coisas, tentei mudar outras. Passei a falar menos com todos. Algo crescia dentro de mim. A consciência de que todos ali eram como inimigos. E de que eu não podia ser como eles. Eu continuava apanhando de todo mundo, e continuava revidando como podia.

Um tempo se passou e eu me reaproximei de Alex, mas em outros termos. Ele também tinha mudado, também tinha descoberto algumas coisas. Me mostrou novidades. Foi nessa época que ele me apresentou o metal. O heavy. O trash. O black metal. Os caras maus. Roupas rasgadas, cabelões. Eles pareciam putos com tudo, como eu. Aquela música era como uma agressão, agrediam o que eu também queria agredir. E eu podia ser como eles. Depois eu descobriria que aqueles eram apenas caras com histórias parecidas com a minha, mas naquele tempo eles foram meus heróis. Eu não precisava mais querer ser igual a todo mundo, não precisava mais querer ser bom como os outros, eu podia me colocar diante de todos e contra todos. Me colocar acima deles e desprezá-los de todo o coração. Aquela música soava como um evangelho: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim”.

Pus uma argola prateada na orelha e deixei o cabelo crescer. E andava sujo. Não havia muito mais que se pudesse fazer além disso. No começo éramos só eu e o sujeito com a mancha vermelha na cara, mas o ano virou e dois alunos novatos se uniram a nós. Mais dois para a turma do metal. E agora, quem eram os caras maus? Nós abríamos grandes rasgos nas calças à altura dos joelhos, sentávamos nas últimas fileiras em todas as aulas, e não precisávamos de muito mais que isso. Dividíamos nossos cigarros. O dinheiro do ônibus se convertia em fichas de fliperama. Era só andar à pé.

Como era de se prever, a turma do metal se esfacelaria rapidamente em seu próprio caos de púbere rebeldia, deixando um rastro de belas pichações pelos muros do colégio e cercanias. No fim daquele ano, um dos nossos chamou um professor de bicha enrustida no questionário de avaliação dos docentes. Foi orgulhosa e sumariamente expulso por isso. Um outro teve o mesmo destino, mas por outros motivos. Era um completo vândalo, compulsivo por causar dano a todo e qualquer tipo de patrimônio. E eu reprovei direto por não ter comparecido a nenhuma das provas o ano inteiro, ostentando um boletim preenchido de 64 notas zero. Ainda hoje gosto de pensar que fomos provavelmente os mais indesejados alunos a pisar naquele colégio.

A partir daqui, entre os 14 e os 15 anos, tudo aconteceu muito rápido. Veio tudo num grande pacote, de uma vez só. Como o abrir-se das águas do Mar Vermelho. Como o escancarar-se da caixa de Pandora. Todos os males do mundo. Birita, garotas, drogas, ruas, noite, sangue, lágrimas, alucinações, gente, muita gente, e nenhum controle. Eu quis tudo.

E livros. Muitos livros. Muita música. Tudo brilhava.

A filosofia, a ciência, a hostilidade do mundo, o desencanto da natureza, o amor e o desamor, as ressacas, as alucinações, o sepultamento de todas as fés, o romantismo de Beethoven, o desvario dos poetas, a loucura de Van Gogh, tudo redundou numa coisa só, numa grande e inexpugnável sentença: a vida é sem sentido.

II.

Certo dia eu bebia com alguns amigos num bar que só tocava rock’n’roll, um lugar sujo e escuro. Eu ainda lembro de uma garota linda de uns quinze anos, naquela mesa, me explicando calmamente como se masturbava no sofá da sala de casa, na presença da mãe e das irmãs, sempre que sentia vontade. Não dava pra acreditar na história, mas ela falava com olhos e gestos cheios de sinceridade, como se fosse a coisa mais normal da história da humanidade, explicando que tinha uma família “muito aberta”. Aberta pra caralho.

Havia sempre muitos caras e algumas garotas no bar, mas nenhum deles tinha dinheiro, por isso o negócio não ia durar muito. Mas naquele dia apareceu por lá uma equipe de TV, com uma garota e dois sujeitos munidos de câmera e microfone, entrevistando pessoas. Eles produziam um documentário sobre suicídio, e pelo jeito tinham decidido ser aquele um bom lugar onde encontrar alguém com alguma coisa a falar sobre o assunto. Dirigiram-se à nossa mesa e eu me dispus a gravar uma entrevista. Àquela altura eu já tinha uma opinião formada sobre o negócio, e simplesmente ficava repetindo diante do microfone que o suicídio era uma boa coisa, uma boa escolha para uma noite calma, não um gesto desesperado ou impensado, mas uma boa e sensata decisão diante do fato de que a vida não faz sentido algum. Acho que a garota que me entrevistou ficou satisfeita. Eu nunca cheguei a ver essas imagens. Daquela mesma noite lembro também de ter trocado uns pontapés com um amigo nos fundos do bar, ao lado do banheiro, quando cheiramos lança-perfume e eu alucinei imaginando que ele era um estranho pretendendo me assassinar. Foi engraçado. Os outros se puseram entre nós e eu logo caí na real, me desculpei e ficou tudo resolvido.

Há muito que se contar dessa época, mas eu vou pular essa parte. Aos poucos fui percebendo que eu também não fazia parte daquilo. Ali também não era meu lugar. Eu suma, eu não fazia parte de nada. Eu tinha tentado. A verdade é que eu não estava nem de um lado, nem de outro. Eu cansei, me afastei de tudo aquilo, parei com tudo. Eu tinha alguns ideais na verdade, mas nunca houve nada que me fizesse abandonar a ideia que jamais se cala, aquela única e imutável verdade, infalível, acima de todas as outras: o mundo não faz qualquer sentido, e nada vale nada.

A questão é: por que então não me matar de vez? Bem, quer se queira, quer não, todos têm uma mãe, certo? E eu acho que a minha não ia ficar extamente feliz com a notícia do suicídio de um filho único. Pensar nisso era bem incômodo. Além de você ser um merda, ainda ia fazer sua mãe chorar. Em alguns dos piores momentos, acho que foi realmente isso o que me manteve aqui. Quando sentia que não sobrava nada mais, havia isso. É como dizem, o amor salva. Não sei que tipo de amor, ou exatamente como, mas de algum modo salva.

Além disso, você sabe, não custa nada conferir o que haverá de trazer o dia seguinte. Já que nada faz sentido de qualquer jeito, deixe estar, um dia sem sentido depois do outro, que seja. Houve um tempo em que eu me repetia mais ou menos o seguinte: “ainda que não reste mais nada, ainda há o espetáculo do nascer do Sol.” Por que desperdiçar? Apenas esqueça todo o resto, desista de tudo, apenas tenha em mente: “Não há mais nada, nada com que me preocupar, eu morri, já estou morto.” Depois vá ver o sol nascer. Ou o pôr-do-sol, que seja. Apenas faça isso.

Afinal por que você iria se matar? Você não ganha nada com isso, só perde. Esqueça o que te preocupa e aproveite o que você pode encontrar de bom pelo caminho. Desfaça-se de todo o resto, do peso de toda a bagagem.

III.

Por volta dos vinte anos, eu me vi inteiramente sozinho. Sozinho, sem nada em vista. Sem nenhum interesse. Eu havia dedicado uma quantidade enorme de esforço e esperança em nome de alguns sonhos, mas todos ruíram, desfizeram-se como poeira ao vento. Perderam todo o sentido. E eu estava só.

Eu senti muito medo. Na pequenez de minha juventude, ainda não obtivera força de espírito suficiente pra encarar todo o peso que a vida vai nos fazendo pouco a pouco suportar sobre os ombros. Havia tanto a fazer, e eu não tinha forças. Não me sobrava nenhuma.

Nessa época vivíamos eu e meus avós nessa grande casa. O último quarto da casa, o mais distante, era uma suíte. Era o quarto dos meus avós. No banheiro, no compartimento das roupas sujas, abaixo da pia, bem lá no fundo, sob todos os trapos, escondido das vistas, havia um revólver. Um velho revólver que meu avô mantinha com o fim de se proteger de qualquer um que ousasse invadir sua orgulhosa propriedade.

Quando eu me encontrava naquele estado de penúria física e espiritual, acossado por todos os medos que só existiam dentro da minha própria mente, por vários meses, nunca ia até aquele quarto. Temia não resistir à tentação, abrir o cesto de roupas sujas, procurar lá no fundo, tomar na mão o revólver e meter de uma vez por todas uma bala na cabeça.

Eu não fui até lá, e ainda estou aqui.

Foi por essa época inclusive que eu descobri o milagre dos tarja preta. Eles me ajudaram a continuar. Proporcionaram os únicos momentos de calmaria no tempestuoso mar de medo que foi todo aquele tempo. “Então ainda há esperança”, era a mensagem que eles traziam.

De alguma maneira, depois de toda aquela crise, tudo renasceu. Uma nova fase teve início, com suas alegrias e tristezas, outros júbilos e desesperos. Hoje, eu penso, se tivesse acabado com tudo ali, quanto não teria desperdiçado, quanto não teria deixado de ver, de conhecer, de admirar. Teria apenas perdido tudo, sem ter ganho nada. Às vezes é tudo só uma questão de aguentar um pouco, de ter um pouco de paciência.

Ironicamente, a consciência de que não há qualquer sentido no que quer que seja torna-se um motivo para ficar um pouco mais, em vez de um para partir. Nem o seu sofrimento tem qualquer sentido. Nada mesmo. Você não é nada. Por que então ser tão implacável? Nada é motivo pra nada. Deixa rolar.

Às vezes percebo que um ou outro sujeito se mata por orgulho. Por não suportar que os demais o vejam nessa ou naquela situação, uma situação vergonhosa qualquer. Pense bem, talvez você não devesse se deixar vencer dessa forma, meu chapa. Você não deve nada a ninguém. Morto ou vivo, passado um tempo ninguém vai ligar pro que você era ou pro que você fazia. Você é um bosta de todo jeito. Sempre vai ser.

IV.

Poucos anos depois, eu já colecionava uma pequena série de moléstias crônicas. Você já deve ter estudado os sistemas do corpo humano. No meu caso, parece que cada um deles tinha algum problema de funcionamento. Até que eu recebi dos médicos um diagnóstico realmente desalentador. Eu tinha câncer. Aquele foi um dia terrível. Desesperador. O curioso foi o que aconteceu depois de uns dias. Eu apenas perdi o medo. A perspectiva da morte não era mais assustadora. Então quer dizer que tudo acabava assim? Pois bem, que seja. Eu estava satisfeito. “Quer saber de uma coisa?”, dizia a mim mesmo, “foi do caralho.” Depois de tudo, eu olhava pra minha pequena, desprovida de sentido e breve vida e chegava à conclusão de que tinha sido uma grande e boa aventura. “Veja quanto você viveu, veja quanto você viu. Não foi bom?” Sim, era assim.

Eu não estou aqui tentando lhe dizer por que razão ou de que forma resistir, nem mesmo que você deva fazê-lo, nem tentando lhe dizer como viver ou lhe motivar a isso. Eu não quero saber se você deve viver ou morrer, meu chapa, não mesmo, a mim pouco importa. Foda-se.

Mas, depois de tudo, eu continuo vivo. E isso é bom. Eu ganhei muito com essa de continuar aqui. Pra chegar até aqui eu precisei passar por uma infinidade de dias ruins, mas pouco importa. Importa o que eu teria deixado de ver.

Nos piores dias da quimioterapia, eu permanecia por três ou quatro dias deitado, vomitando de hora em hora e dormindo umas 15 horas por dia, meio morto, meio vivo, num estado de torpor resignado. Por incrível que pareça, aquilo me restabelecia, me confortava, me acalmava. Me deixava pronto tanto pra morrer quanto pra viver.

O câncer regrediu completamente com um ano de tratamento duro, mas não deixou de ser uma preocupação. Eu tinha certeza de que mais cedo ou mais tarde ele voltaria. Não havia tantos casos conhecidos, como hoje, de pessoas resistindo e sobrevivendo por muitos anos a um câncer. Ele sempre voltava. Tudo que você via eram notícias do tipo “morreu depois de lutar por cinco anos contra um câncer no fígado.”

Eu fazia planos. Se chegasse a estar diante de uma situação irreversível, se a doença um dia voltasse e se tornasse terminal, eu me suicidaria. Eu procurava pela cidade por um lugar bastante alto de onde pudesse me lançar para uma morte segura e rápida. Descobri que a maior parte dos prédios públicos mais altos tinha janelas que de tão pequenas não permitiam a passagem de um homem adulto. Até hoje não sei se isso ocorre por prevenção contra intenções suicidas. Na época entendi que devia ser. Mas consegui encontrar uns dois ou três bons lugares.

Por um tempo foi bom, como se não houvesse amanhã, com a certeza da morte iminente. Talvez eu tivesse direito a mais uns anos, não muito mais que isso. Sem precisar me preocupar com aposentadoria ou carreira, sem me passar pela cabeça coisas como querer encontrar uma boa mulher e muito menos a ideia de ter filhos. Gozava assim de certa liberdade e tranquilidade.

Numa das primeiras consultas após o diagnóstico, dias antes de dar início ao tratamento, o médico me indicou a possibilidade de congelar uma porção de esperma, a fim de evitar que uma provável esterilidade causada pela quimioterapia me impedisse de ter filhos no futuro. Eu não congelei porra de sêmen nenhum, convicto de que não desejava ter filhos, de que na verdade nem o planeta queria mais filhos. Sabia que podia mudar de ideia em algum momento adiante, mas mesmo considerando essa hipótese estava certo daquilo no momento. Até posso estar arrependido agora, mas tudo bem. A vida também é feita de decisões assim, que não mais se podem reverter.

Ao fim de todo o tratamento parecia que eu estava curado, mas andava meio abatido. Tinha sido difícil. Numa de nossas consultas, minha médica tentou me pôr pra cima: “Anime-se. Você é um guerreiro.” Eu dei um sorriso rápido, sem graça, e me calei. Eu não concordava com ela. Eu havia passado por tudo aquilo muito passivamente.

Ainda assim, depois de tudo, nunca deixei de pensar em suicídio. Nunca deixei nem mesmo de defendê-lo. Uma parte de mim ainda o considera um gesto nobre. Um gesto de coragem. Sei que muita gente compartilha da mesma opinião. Afinal uma coisa é decidir-se pelo suicídio como a escolha mais acertada para determinada ocasião. Outra é executá-lo de fato. É mesmo preciso coragem.

Acho inadequado dizer que o suicídio é um ato de covardia. Se um sujeito não aguenta mais, que seja, se sente que nada lhe resta além da última e derradeira fuga, ainda assim é uma decisão pessoal e você devia respeitá-la.

V.

Logo depois do câncer, eu conheci uma garota. Minha experiência com garotas até essa época era realmente sofrível. Uns lances, aqui e ali. Eu simplesmente saía correndo ao perceber alguma garota indicando considerar a hipótese de se ligar a mim por meio de qualquer coisa que evocasse ainda que muito remotamente qualquer traço de algum elemento romântico. Eu não sentia a menor atração pela ideia de estar ligado a alguém por intermédio de qualquer tipo de compromisso como um namoro ou algo assim. Eu achava essa ideia detestável, quando não absurda, e achava que todos os seres humanos do planeta eram loucos por considerar aquilo suscetível de pertencer ao espectro de possibilidades para nossa espécie.

Minha noção sobre isso foi mudando, enquanto namorei essa garota por quase dois anos.

No início, eu dizia que ela era a menina que sempre imaginei pra mim (mentira). Ela dizia que não importava quem tinha sido o primeiro, mas sim quem ia ser o último (óbvio que se referindo a mim). Aquilo tudo era muito romântico de fato, e de uma forma ou de outra nós fomos engatando aquele namoro, que no fim das contas revelou nunca ter tido na verdade nada a ver com ser o primeiro ou o último, apenas com ser só mais um.

Até conhecê-la, eu pensava não ser capaz de amar. Eu não sabia o que isso significava. Podia bem ter morrido antes de descobrir.

Era um namoro que ia e vinha. Nós terminamos e voltamos inúmeras vezes. E havia uma coisa. Foi complicado, mas era como se ela conferisse um sentido completo para minha vida. Quando estávamos juntos, eu nunca pensava em suicídio. Tão logo nos separávamos, imediatamente retornava a vontade de morrer. Ela me fazia valer a pena. Nós cuidávamos um do outro, apesar de tudo.

Na realidade, para além desses altos e baixos eu continuava sempre a considerar a ideia de suicídio uma ótima coisa, em todos os seus aspectos. Nesse tempo eu fazia parte de todas as comunidades suicidas do Orkut, especialmente aquelas cujos títulos combinavam de alguma forma as palavras “suicide” e “solution”, com belas fotos sangrentas. Aquilo era como poesia pra mim. Como uma piada suja. Meu tipo preferido de humor: o negro.

Um dia, um amigo viu tudo aquilo e imaginou que eu devia estar péssimo, mentalmente perturbado, com todas aquelas comunidades suicidas no meu perfil do Orkut. Ele quis me ajudar, me ouvir, me consolar ou algo assim. Precisei explicar que não era nada de mais. Só então me dei conta de me comportar quanto a isso tudo como uma pessoa um tanto mais estranha que outras pessoas estranhas comuns. A ideia de suicídio era apenas como uma velha amiga, ou algo como o que seria um filme predileto para pessoas normais.

VI.

Um dos meus mais queridos amigos era outro dos que nutria apreço pela ideia do suicídio. Lembro de por mais de uma vez tê-lo ouvido falar a respeito de como Deleuze, seu filósofo favorito, pôs fim à própria vida. “Ele defenestrou-se do próprio apartamento", gostava de repetir. “Tinha câncer terminal", dizia. Eu sempre tinha a impressão de que sua voz revelava um prazer mórbido ao mencionar o “defenestrou-se". Soava cheio de energia em sua fala. Deleuze respirava com a ajuda de aparelhos. Preferiu um fim coerente em relação a sua vida e obra. Meu amigo, que era, entre muitas outras coisas, poeta e também filósofo, um dia disse que a possibilidade do suicídio tornava suportável a perspectiva de continuar vivo. Algum tempo depois, ele mesmo se defenestraria do pequeno apartamento em que vivia. Foi possivelmente o homem mais corajoso que conheci. Não por esse motivo. Por outros. Apenas emudeci ao saber de sua morte. Não tenho dúvidas de que foi também um fim coerente em relação a sua vida e obra.

Eu podia ficar aqui, muito tempo mais, a contar aventuras e desventuras. Eu sobrevivi a todas. E me fortaleci. Virei um cara difícil de derrubar. Mas tudo que aconteceu foi na verdade apenas todos esses anos, desde o início, de uma vida desprovida de qualquer sentido aparente, sem partir de nenhum lugar e sem chegar ou pretender chegar a lugar nenhum.

Talvez você tenha mais sorte do que eu.

Eu não estou aqui pra julgar, e talvez os seus problemas sejam maiores que os meus. Eu também não vou dizer que, se você prestar bem atenção, a menos que você sinta dores, ou que sofra de uma severa e irresolvível carência de recursos, ou de uma severa e irresolvível restrição de liberdade ou de movimentos, sempre vai valer a pena.

Se até eu, que não acredito em absolutamente nada, um completo inútil, solitário, miserável e doente, sou capaz de com um pouco de calma e esperança aproveitar o que de bom a vida pode ter a oferecer, você também deve ser capaz de fazer o mesmo, senão de forma muito melhor.

Aproveite. Tenha apenas um pouco de paciência. Deixe o orgulho de lado. Apenas faça o que tem de ser feito. No fim da tarde, apenas esqueça todo o resto e aproveite o espetáculo do pôr-do-sol. Em vez de morrer, mantenha em mente: “Eu já morri”. Então se livre de toda a bagagem.

Ou você pode acabar perdendo o melhor da festa.

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