“Deus” não está morto

Aline Brasil
ESDRÚXULA
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5 min readMay 26, 2020
Desenho: A Morte — Aline Brasil

Olhar para a nossa hitória é algo importante por dois motivos básicos: primeiro porque olhando para trás, para o que vivemos, podemos aprender com os nossos erros e não deixá-los se repetir, segundo porque ao revivermos as nossas memórias recriamos o que somos, nos transformamos e temos a possibilidade de fazer isso nos tornando seres melhores do que já fomos.

Nós temos feito isso? À luz dos acontecimentos recentes fica claro que não.

No século XIX, o pensador Nietzsche disse: “Deus está morto”. Ele falou da morte das velhas ideias platônicas que dividiram o mundo em dois: o inteligível e o sensível. Falou da morte do cristianismo que deu continuidade a essa divisão e fez do ser humano um ser condenado a viver em culpa e em dívida eterna com Deus. Falou, também, da morte da Modernidade que colocou a razão acima do corpo, perpetuando a mesma dualidade. Após Nietzsche vários outros filósofos pensaram a superação do homem moderno.

Esta morte faz ruir todas as certezas, perspectivas, verdades e teleologias que internalizamos por anos. Este castelo desmoronado, este mundo que já não possui estrutura alguma, gera três possibilidades no mínimo: ou ficamos grudados aos farelos do que acreditávamos, de nossas velhas e ilusórias crenças, mesmo que não faça o menor sentido já que não podemos segurar mais nada; ou ficamos no vazio, na total ausência de sentido já que tudo se desmoronou e, assim, viramos niilistas; ou ainda, numa proposição mais nietzschiana, olhamos para a ausência de estruturas e sentidos e a aceitamos de forma afirmativa e ativa, recriando novos sentidos, novos mundos.

Olhando para o contexto brasileiro atual é nítido o quanto estamos executando a primeira opção. Estamos terrivelmente agarrando velhas crenças que não passam de pó. Estamos agarrando o nada e insistindo, com isso, em nossa morte. Morte real e concreta dentro de um cenário de pandemia e, também, morte em vida. O nosso presidente Jair Bolsonaro e vários brasileiros que o seguem querem a continuidade do capitalismo no seu grau mais perverso de exclusão e morte, enquanto este mesmo sistema tem nos mostrado a cada dia o quanto já não tem sustentabilidade alguma pra continuar como sempre foi. Tudo isso em nome de um “Deus” que já morreu.

É bom considerar que esta morte de Deus não se trata de ateísmo. A palavra “Deus”, aqui, significa um conjunto de ideias internalizadas que nos submete a um mundo irreal, que paira acima de nós, inventado por Platão e Sócrates, reformulado pela Igreja e que tem encontrado força no discurso liberal-burguês ao longo da modernidade, colocando o indivíduo acima de tudo, ignorando qualquer necessidade de multiplicidade e coletividade para a existência humana, excluindo e matando milhões de pessoas ao longo dos anos. Quando essas ideias ficam ameaçadas de algum modo, ficam expostas em suas inconsistências vem os chamados “momentos de crise”.

Essas ideias morreram no sentido do pensamento crítico, mas elas vivem como zumbis dentro de nós e, por isso, guerreamos e idolatramos a morte. Conseguimos fazer com que elas existam desta forma: dentro de uma escolha pela morte, social e individual.

Há, também, no contexto brasileiro, aqueles que diante de tanto horror acabam perdendo a vida interna e não conseguindo recriar absolutamente mais nada. São as pessoas que, por exemplo, diante de um governo genocida como o que vivemos, liderado por um presidente ignorante e psicopata, e que é idolatrado como um mito, veem uma total ausência de sentido para a vida. Se prostram e ficam inertes, sem ação. E temo que hoje esse grupo de pessoas esteja sendo a maioria entre nós. Queremos novos sentidos, mas nos sentimos incapazes de criá-los ativamente por nossas próprias mãos.

Fico me perguntando, quando vamos internalizar o “Deus está morto” de Nietzsche assumindo uma postura ativa no mundo e afirmativa da vida? E nos superarmos, nos recriarmos, nos fortalecermos conjuntamente? A oposição ao governo de hoje precisa extremamente disso, sem cair em disputas ideológicas que já não cabem.

Há quem já esteja neste caminho. Há quem sempre procurou estar nele, reafirmando a vida de um modo transformador. Mas há como fazer isso sem destruirmos nossas estruturas, sem matarmos nossos mitos e anti-mitos? Sem superarmos a nossa velha necessidade de sermos guiados por algo externo que nos tutele? Que nos diga o que fazer, o que é certo e errado, bom e mau e como temos que existir? Como poderíamos tomar as rédeas de nossa vida social e coletiva sem abrirmos mão da idolatria a uma verdade, do nosso entreguismo a ideias fáceis, prontas e dadas a nós como remédio e que só engolimos e reproduzimos? Seria inviável sem realizarmos tudo isso! É preciso matar diariamente nossos heróis, e toda dualidade que sustenta uma moral que nos corrói por dentro.

Não basta fazermos trocas de deuses, trata-se de realmente superarmos a necessidade deles e de nos responsabilizarmos pela vida coletiva que somos e pela história que construímos socialmente. Isso não significa fazermos o que quisermos, sem norte e sem parâmetros, significa criarmos os nossos parâmetros numa perspectiva não mais individualista e nem a-histórica.

Fica a provocação e a questão que nos persegue neste momento: em meio a uma pandemia, diante de um governo que despreza o elevado número de mortes diárias por tratar a COVID-19 como uma “gripezinha”, que incentiva as pessoas a saírem de casa e a tomarem um medicamente cientificamente ineficaz, isso tudo dentro de uma desigualdade social absurda que é o Brasil, como nos unir ativamente e recriarmos a nós mesmos coletivamente rumo a um novo sentido? Não há nada externo que possa nos reconstruir ou nos salvar. Todo salvador da pátria é uma farsa e nos encaminha pra morte do que somos e podemos ser. O que pode nos “salvar”, nos reformular, são aprendizagens históricas afirmativas que nos mobilizam a um novo e melhor mundo no presente. Ou introjetamos a “morte de Deus” ou este nada com cheiro de sangue vencerá e criará por si mesmo as estruturas que perpetuarão por anos.

Vamos olhar para a nossa história, matar os nossos mitos e, enfim, sermos responsáveis pela vida presente e futura! Só assim o Brasil poderá ser Brasil e deixar de ser capacho de modelos externos.

Video: “Estrada, Nietzsche e… para onde vamos?” — Canal Gambiarra Minidoc

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Aline Brasil
ESDRÚXULA

Sou mulher e cresci aprendendo a falar pouco. Feminista e Anti-fascista. Não me encaixo em gêneros. Artista em crise e filósofa em formação.