Fiquemos em casa!

Aline Brasil
ESDRÚXULA
Published in
6 min readApr 17, 2020

Este texto não nos dará fôlego, não será respirável.

Infelizmente vivemos um cenário mundial e nacional que não nos permite enxergar alguma luz no fim do túnel. Estamos dentro do túnel, adentrando talvez a parte mais estreita e claustrofóbica dele. O início deste túnel já sabemos: a expansão da extrema direita mundo afora, e o advento específico do bolsonarismo no Brasil. E o estreitamento? A pandemia da Covid-19 e o Bolsonaro governando o Brasil com a sua eficiente e desastrosa política de morte. Ou seja, morte com mais morte. Estamos feitos!

Desde que Bolsonaro venceu a última eleição presidencial não respiramos mais direito. Estamos sendo obrigados a engolir, diariamente, um fenômeno bizarro que une idolatria cega e compulsória em torno de um Mito, com sentimentos de ódio a tudo e qualquer coisa que se oponha ou questione esse herói eleito, independente da legitimidade dos argumentos e questões que esta oposição possa ter. Em suma: estamos presos na polarização.

Nela caímos por golpes políticos e por incapacidade de uma melhor leitura contextual no momento em que podíamos ainda ter alguma mísera chance de impedir ou amenizar o buraco que nos afundamos agora. O apego ao PT, enquanto uma única oposição viável, não nos ajudou na disputa eleitoral. Não enxergamos e negamos as outras possíveis oposições presentes ao longo da disputa, que poderiam ganhar força e ter apoio, e acabamos colocando mais lenha na fogueira da polarização que os bolsonaristas já alimentavam. A gente errou feio!

O Brasil de hoje é o país da não-ciência, do obscurantismo e de uma política de morte auto-declarada, enaltecida e repleta de torcedores para que ela dê certo. Não é que as pessoas em geral queiram a morte, mas elas encontraram nessa política de morte uma espécie de “lugar ao Sol”. Se antes suas meras opiniões não tinham valor, hoje elas estão respaldadas pelo próprio discurso de quem governa. Nunca antes as divergências de mundo e de pensamento, os preconceitos e os moralismos, tão presentes em nossa cultura, acabaram legitimando de forma tão potente um governo déspota, anti-povo, anti-trabalhador, anti-indígena, anti-minorias, pró-milícia, pró-militares, pró-banqueiros e pró-capitalista. Essa manipulação tem dado muito certo, na medida em que o governo dá para as pessoas que o apoiam a sensação de que elas detém a verdade, de que o que elas falam e pensam não precisa mais de fundamentos e de reflexões para se legitimar, pois já está legitimado.

Daí o Mito, a sensação de um herói, de um salvador. Salvador dos velhos preconceitos que estavam sendo refletidos quando o questionamento sobre eles tinha validade. O problema não é que as pessoas sejam más, o problema é que elas encontraram um herói que salva tudo aquilo que elas querem acreditar, mesmo que não envolva comprovação factual ou atitude ética. Tudo isso foi jogado fora, dando uma liberdade enorme a qualquer pensamento, inclusive ao falso, ao ilusório e a qualquer atitude grotesca. É esta a nossa realidade desde o âmbito familiar até o espaço público, virtual ou não.

Acontece que em se tratando de um vírus ainda pouco conhecido, exponencialmente contagioso e que leva as pessoas à óbito (as do grupo de risco e, já comprovadamente, as que estão fora do grupo de risco também), não estamos mais tratando de um campo ideológico e político estritamente. Esse fato somado à precarização do sistema público de saúde, que carece de números necessários de leitos, de UTI’s, de aparelhos respiratórios, de equipamentos de proteção profissional, de estrutura física adequada, de investimentos públicos (já que foram cortados no governo atual), lança a todos nós brasileiros para o campo concreto da vida biológica e da existência. Não caberia mais discutirmos nada dentro da polarização: mito x comunistas, petistas, esquerdistas, “gaysistas”, “feminazes”, globo lixo e, parece-me, uma lista infinita. Seria inconcebível continuarmos nessa polarização para tratarmos da pandemia vigente. Mas, infelizmente, a polarização anda vencendo até o vírus.

Bolsonaro continua cooptando tudo o que aparece, inclusive o Corona vírus. Ele mantém a mesma estratégia e faz da pandemia somente mais um espaço de polarização. Temos hoje o Mito, considerado por seus seguidores como o salvador da economia e o propagador do remédio que salvará a saúde de todos (a tal Cloroquina de comprovação ineficaz pelos cientistas que realmente sabem e podem avaliar), e do outro lado todas as instâncias possíveis: a ciência, as mídias, as instituições políticas, os próprios políticos e boa parte da população que se opõe a ele, e que estão sob o rótulo de comunistas ou qualquer outro nome que sirva para polarizar. Pra quem apoia o presidente há o lugar de massa de manobra. São eles que servem como escudo de toda essa polarização absurda que coloca de um lado um único homem e de outro todo um conjunto de instâncias e poderes que a democracia tenta assegurar enquanto sobrevive.

O momento que vivemos exigiria de nós ações rápidas, concretas e objetivas, que dependem tanto do trabalho sério de cientistas, de profissionais da saúde, quanto de políticos engajados com a saúde da população brasileira. Jair Bolsonaro se insere neste lugar como um entrave pra qualquer solução possível para o enfrentamento da pandemia sem que haja tantas mortes. Sua política é de morte, então pouco importa a questão. O mais interessante é que ele conseguiu lançar mão de um discurso que colou na cabeça de seus seguidores: o discurso de que a economia não pode parar. Isso pegou geral, pois os pobres sentem na pele a falta do pão e vão precisar trabalhar e os ricos sentem medo da perda de seus lucros e da falência de suas empresas e vão exigir que o trabalho prossiga. E assim somos lançados para dentro desse túnel afunilado com muita força, sem qualquer perspectiva de espaço e de presença de oxigênio para todos nós. Seguimos morrendo em nome de uma tal economia que sequer existe, já que o alto número de doentes e de mortos é capaz de saturar e falir a própria economia do país, pois sem gente viva e sadia não há trabalho que exista. Bolsonaro nos lança à cova dos leões, utilizando-se da tática de polarizar a tudo e se proteger atrás de seus defensores.

Minha pergunta é: até quando essa tática é possível? Onde vamos parar com tudo isso? Mas me sinto solitária nessas perguntas, na medida em que elas não ganham ressonância na cabeça de muita gente, na medida em que estamos trancados dentro de nossas casas para minimamente nos proteger de um cenário tão caótico. Não sou a única, somos muitos a nos sentir desta forma.

Hoje, o único representante deste desgoverno a sustentar uma atitude minimamente coerente com a situação, o ministro da saúde Mandetta, foi mandado embora. A nossa única estratégia de sobrevivência, de não saturação do sistema de saúde no país, está sendo ameaçada: o isolamento social. Da janela de nossas casas gritamos, mas o eco de nossas vozes parece saltar do ar para o chão. Sem podermos ir para as ruas como vamos destituir alguém de seu poder? Como poderemos dentro de nossas casas, isolados um dos outros, atacar de vez a polarização que mantém e alimenta Bolsonaro e sua política de morte no poder? Se até a existência do vírus nos rivalizou em “quarenteners x cloroquiners”? Até quando vamos ganhar nomes e rótulos polarizados e que dão força a esse governo desastroso?

Como nós brasileiros podemos acordar deste pesadelo horrível sem a disposição para destruirmos todos os nossos Mitos e Anti-Mitos, para enfim tomarmos de novo as rédeas de nossas vidas em nossas próprias mãos, com os pés no chão? Eu só sei de uma coisa: a idolatria mata, a política com heróis é apenas o atestado de óbito de grande parte de nós.

Estamos dentro do túnel e ele está ficando estreito demais para suportar todo mundo: vírus, bolsonarismo, humanidade… quem restará?

Pra quem tem casa e melhores condições, fique em casa por você, por quem ama e por todos os mais vulneráveis nessa sociedade tão desigual!

Aline Brasil está dentro de casa…

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Aline Brasil
ESDRÚXULA

Sou mulher e cresci aprendendo a falar pouco. Feminista e Anti-fascista. Não me encaixo em gêneros. Artista em crise e filósofa em formação.