Para além da pausa, desconstruir as nossas estruturas internas…

Aline Brasil
ESDRÚXULA
Published in
8 min readApr 26, 2020
Desenho: Desconstruir. Aline Brasil.

A quarentena nos coloca diante de um enorme espelho através do qual podemos observar-nos diretamente. Nela, temos tempo suficiente para contemplar os mínimos detalhes daquilo que somos neste mundo, de tudo o que reproduzimos de forma automática e condicionada com a falsa impressão de sermos autênticos, quando na verdade sequer tivemos escolhas por grande parte dessas coisas. Podemos observar o que em nós nunca se encaixou neste mundo, as nossas lacunas, e isso significa sentir muita dor inevitavelmente.

Esse processo de nos observar diretamente é algo que evitamos na lógica do mundo de até então, não apenas porque dói, mas porque essa mesma lógica nos solicita que nos alienemos daquilo que possa atrapalhar a sua reprodução. Na tal dita “normalidade” das coisas, nós não temos tempo para isso e se temos sempre damos um jeito de evitar preenchendo-o com outras coisas. Somos frenéticos, não paramos nunca. Parar significaria, sem sombra de dúvidas, olhar para o espelho e ver o que não queremos, o que não gostamos, o que faz mal a nós mesmos e aos outros e que deveríamos rever e mudar. Não queremos mudar. Geralmente negamos as mudanças, ou até concordamos com elas e apontamos a sua necessidade para todos, mas em se tratando de nós costumeiramente fazemos “a egípcia”.

Fomos jogados radicalmente a um novo estilo de vida de um dia pra o outro. O nosso chão se desestruturou e precisamos agora reconstruir novos sentidos e formas de existir sem termos muitas informações sobre o futuro. É um lugar de suspensão em que vemos tudo ruir: os nossos planos, a nossa rotina, nossas mínimas certezas, e inevitavelmente somos levados a questionar diversas coisas sobre nós, sobre as pessoas em nossa volta, sobre o mundo. Esta questão, por exemplo, da economia sendo colocada acima da vida, isso é de agora? Não! Isso sempre existiu! Mas só agora isso salta aos olhos como algo absurdo porque de repente isso atinge a todos, ricos e pobres. Muitos escapam da pobreza, mas do vírus ninguém!

O fato é que sempre matamos as pessoas em nome da economia, pois habitamos um mundo que basicamente respeita o lucro em detrimento da vida. O motor interno deste mundo é exatamente esse: triturar vidas para gerar lucros que não serão repartidos, mas concentrados nas mãos de poucos. Essa lógica de morte sempre esteve estampada na nossa cara, mas para mantermos algum tipo de privilégio não deixamos a roda parar de girar e engolimos tudo, ignoramos o desumano em nós, normalizamos as violências intrínsecas. Sempre normalizamos a morte, até que de repente uma pandemia nos paralisa e passamos a achar estranho as “normalidades” que sempre sustentamos. Hoje, definitivamente não é normal para muitos de nós a atitude de lucrar enquanto pessoas morrem, porque hoje a causa da morte é um vírus que mata independente da classe social, enquanto antes a morte por fome e pobreza era problema de um grupo de pessoas apenas, então fazíamos vista grossa, mesmo lamentando em discursos o quanto a desigualdade social é ruim.

Nesse contexto de pandemia há quem continue a negar tudo como antes já se negava. Negam a própria pandemia como antes negavam a desigualdade social através do discurso da meritocracia. A ficção descabida de um plano por trás da pandemia para tornar o mundo comunista é tão sem pé nem cabeça quanto a ficção da meritocracia para justificarmos a pobreza no mundo. Os negacionistas tentam apagar o caos presente, as mortes inerentes a tudo isso, e querem um retorno impossível a uma “normalidade” que sempre matou. O presidente nega, seus aliados negam e as pessoas em geral são seduzidas as isso. Criamos realidades imaginárias para nos confortar e termos a ilusão de que estamos distantes e alheios a toda violência que nos cerca, produto do motor que todo dia fazemos girar. Queremos ver apenas o que queremos ver, mesmo que seja irreal. Cegos como burros no cabresto, seguimos com a tragédia ao colocarmos no poder um presidente alinhado com a morte. Hoje, a necropolítica de sempre salta aos olhos e ganha legitimidade maior em um governo assumidamente assassino.

Como o vírus quebra a separação de classes sociais, muitos de nós anestesiados para o fato de que a pobreza mata, de repente acordamos para a anormalidade de sempre agravada por uma pandemia. Só agora há o risco da realidade de morte bater à nossa porta, pois antes não batia, não é? Outros lugares e outros corpos específicos eram os alvos. Encaixados no mundo, de certa forma, estivemos sempre protegidos. Mas, quando foi que aceitamos a morte de alguns enquanto encaixados no sistema produtivo fazíamos o mundo não parar: o mesmo movimento que mata? Quando foi que aceitamos manter a matança como se não fôssemos parte disso? Nós que produzimos, que nos enquadramos na lógica de produção, mesmo que ganhemos pouco, o mínimo para a nossa sobrevivência, excluímos e matamos todos os dias para não sermos nós a morrer. E os excluídos? Os que sempre morreram? Por que até eles normalizaram a própria morte? Quando foi que passaram a aceitar o inaceitável em nome de uma crença ilusória de que um dia chegariam em um lugar melhor? Promessas dos grandes para os pequenos… Por que acreditamos em cinzas?

A imagem de Bolsonaro, completo irresponsável e louco, diante de uma pandemia como a que vivemos, gritando pra todos saírem de casa porque é só uma “gripezinha” e que a economia não pode parar, na real, por mais que não queiramos olhar pra isso, é justamente a imagem de nós mesmos reproduzindo a dinâmica de um mundo falido a séculos. Parece grotesca essa comparação, mas ela tem seus sentidos. Não é a Covid-19 a nos avisar que o sistema capitalista precisa ser revisto, que a forma como ele opera está nos destruindo e vai nos destruir. A natureza está a tempos nos falando disso com suas catástrofes cada vez mais frequentes: alagamentos, mudanças climáticas, risco de no futuro não tão distante cidades desaparecerem submersas e outras virarem deserto e tantas outras coisas. A ciência prevê vários cenários catastróficos e também nos avisa através de estudos diversos. Inclusive o vírus era previsto e não fizemos nada a respeito. Os povos originários das terras, que tiveram suas culturas e formas de vida massacradas pelo sistema capitalista, sempre nos avisaram sobre tudo isso, através de suas resistências em continuarem vivos e sendo quem são. A gente escuta? Insistentemente não!

Não escutamos porque isso nos exigirá parar tudo e recomeçar tudo diferente e ninguém tem essa coragem. Somos individuais demais e se tentássemos ouvir cairíamos sozinhos no precipício e nada mudaria. A grande questão é que tudo isso exige um movimento coletivo que somos incapazes de fazer. Hoje estamos sofrendo por nossa falta de escuta e de capacidade de resistência coletiva. Se sequer nos nossos ambientes íntimos conseguimos nos repensar e nos propor novas atitudes, como faremos isso num contexto social maior lidando com um corpo não mais individual e sim coletivo com vozes vindas de diferentes lugares tendo diferentes demandas? Qual a demanda mais urgente? Com certeza, não seria a “minha” demanda. Além disso, um coletivo não seria jamais homogêneo, mas constituido de um conjunto de grupos menores divergentes, com aqueles que gozam de privilégios diversos e outros que não gozam de nada, portanto trata-se de um coletivo intrinsecamente movido no e pelo conflito e se não sabemos lidar com o conflito de forma positiva a gente não avança pra lugar algum juntos. Temos que aprender a nos doer se quisermos estar juntos, não adianta querermos o conforto da união daqueles que pensam e vivem igual a nós. Temos que saber que do chão em que pisamos a gente fere alguém sem querer, porque a estrutura faz isso conosco e está tudo bem alguém nos apontar que fizemos algo ruim ou equivocado. Um coletivo não precisa se desfazer por conta disso, pelo contrário, é preciso que aprendamos a abandonar nossos egos e a nos fazer doer porque precisamos sim confrontar, a todo tempo, os nossos privilégios pra estarmos unidos. Isso não é algo pessoal, mas estrutural!

Não abraçamos as causas do outro de verdade a não ser que ganhemos algo em troca e, muitas vezes, abraçar as causas do outro é nos ferir naquilo que sempre nos confortou, ou seja, é ganhar nada além da dor e do auto conhecimento proveniente dela. Mas, não, a gente é intocável demais, qualquer esbarrão precisamos ver no outro o nosso inimigo legítimo ou então simplesmente mantemos aparências de coletividades e parcerias inexistentes, abafando a voz de uns e legitimando a voz de outros, os já legitimados. E assim vamos mantendo a roda girando freneticamente, mesmo querendo que o mundo mude.

Hoje paramos! E agora? O que estamos fazendo? Estamos sendo capazes de nos rever e aceitarmos a dor?

Há realidades e realidades. Algumas batem diretamente na fome. Outras batem no medo de em alguns meses não haver mais dinheiro pra se morar e viver. É cruel! E nesse lugar insistimos em não parar. Simplesmente não podemos. Mas as antigas mensagens que nos alertam sobre a necessidade cada vez mais urgente de mudança, somada a um vírus fatal e extremamente contagioso, nos coloca com mais força diante de questões que sempre evitamos, numa dinâmica outra de paralisação do movimento de outrora.

Podemos olhar pra isso de duas formas: ou de fato paramos e desconstruímos nossas estruturas internas deixando de reproduzir lógicas anteriores e reaprendendo a solidariedade que perdemos no sistema capitalista, o valor do espírito coletivo em detrimento do competitivo, a dividir e somar em vez de lucrar e de tirar do outro que está no mesmo barco ou em situação pior, ou, por fim, continuamos a negar até os corpos se empilharem como montanhas. Antes não víamos os mortos no sistema capitalista. O próprio sistema mata e deixa isso passar batido. Talvez com um vírus não seja assim e o sistema não consiga esconder os altos números de óbito.

Os mais ricos precisam parar de lucrar em detrimento da vida dos outros. Os grandes precisam distribuir a sua fortuna pra quem não tem, isso não pode mais ser adiado. Simples assim. E essa lógica precisa ser internalizada e replicada em todos os níveis sociais, de modo que quem tem mais saiba doar pra quem tem menos. O espelho sempre nos mostrou isso durante o sistema capitalista funcionando na sua normalidade fake. O coronavírus apenas continua a mostrar a velha mensagem da vida e da Terra. A quem vamos ouvir? Se não soubermos repartir nem no nosso cotidiano pessoal e particular, se não conseguirmos difundir esse pensamento e ação enquanto uma nova forma de existir nesse mundo, não venceremos a política de morte vigente. Não adianta ir contra, é preciso agir também sobre nós, quebrar nossas certezas e pilares, passar pela dor. Só assim, pra uma resistência mínima que seja, acontecer.

Estamos dispostos?

Aline Brasil existe enquanto desconstrução… Senão, pra quê?

--

--

Aline Brasil
ESDRÚXULA

Sou mulher e cresci aprendendo a falar pouco. Feminista e Anti-fascista. Não me encaixo em gêneros. Artista em crise e filósofa em formação.