O Espiritismo e a necessária desmistificação dos Mitos do Movimento Espírita brasileiro

André Silva
Corpus Espírita
Published in
6 min readMay 7, 2024
Reunião espírita estilo mesas girantes

A doutrina Espírita foi “codificada” no passado, século XIX, por meio do brilhante e prolífico cientista francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec. Algum tempo depois ela pousou em terras brasileiras, de modo que por aqui floresceu e alastrou-se com intensidade. É significativo saber que o Brasil, hoje, é o país mais espírita do mundo. Existem aqui cerca de 4 milhões de espíritas declarados, fora os não declarados e outros mais. É uma diminuta parcela da população brasileira, mas ainda assim significativa.

É, no entanto, peculiar que o Espiritismo aqui no Brasil seja visto como uma religião, pois à rigor, não o é. Mas este também não parece ter sido um caminho sem propósito, como todo aquele que concebe a existência de espíritos e conhece a própria origem da doutrina sabe, uma diretriz dos “bastidores espirituais” provavelmente foi seguida. Se assim foi para o próprio surgimento do Espiritismo, por que não o seria no que se refere à sua continuidade? E para garantir a continuidade, nada melhor do que primeiro cuidar de o popularizar. Então esta mencionada diretriz, ou melhor, “estratégia” não é difícil deduzir: era importante em um primeiro momento focar em quantidade, popularizando o Espiritismo para em um segundo momento — este momento atual — focar em um desenvolvimento qualitativo. A mesma estratégia adotada com o Cristianismo, tornando-o religião oficial do Império Romano e assim permitindo a difusão por todo o reino que se alastrava pelo planeta, partindo posteriormente para a qualidade, em que podemos dizer que o próprio Espiritismo sendo uma doutrina cristã é, desta estratégia, também uma evidência.

Tal estratégia parece lógica, o Espiritismo não seria capaz de florescer na França após seu período de origem, uma vez que o racionalismo materialista seguiria o seu curso ganhando força em seu berço ainda por um tempo. Já o Brasil vigorava como um país extremamente católico e foi provavelmente com este fim que o próprio Chico Xavier — inegavelmente, na prática, o grande continuador do trabalho de Kardec — desenvolveu um modo de linguagem amigável aos católicos, tendo, não por acaso, como mentor uma figura com vidas passadas ligadas diretamente ao catolicismo, à linguagem e também ao modo romano de ser. Afinal, era preciso alguém que fosse cirúrgico no modo de se expressar para ser assertivo com este público de maioria católica que se somaria recebendo e encorpando o movimento espírita.

Diante disso, e provavelmente por outras razões também, o Espiritismo aqui assumiu um caráter totalmente religioso e isto, como se viu, teve e tem sua importância. Agora, porém, são necessários alguns ajustes que naturalmente começam a acontecer por ocasião do próprio desenvolvimento. E naturalmente não sou a única fonte de fala, mas já se veem de forma cada vez mais comum perspectivas emergindo de pessoas do movimento espírita trazendo à tona questionamentos semelhantes quanto aos que aqui faremos. E é preciso saber, “Movimento Espírita” é diferente de “Doutrina Espírita”. Movimento Espírita é basicamente o que as pessoas fazem deste conhecimento e, portanto, todos aqueles que se envolvem de alguma forma ativa fazem parte deste movimento.

Por que ciência e filosofia se vejo só religião? Por que só religião se espiritismo é também ciência e filosofia?

Então uma primeira pergunta se levanta. Se aqui no Brasil assumiu-se uma constante religiosa, como ficou o aspecto Filosófico e, sobretudo, Científico, tão essenciais quanto largamente defendidos pelo próprio Kardec? Estes aspectos deram lugar a um foco religioso que tem sido até certo ponto bem abordado, ao passo em que os outros eixos reservam-se a traços mínimos e quase nulos de práticas. E, pode-se dizer que muito desta postura e da ausência de práticas de filosofia e ciência do movimento espírita brasileiro é o ônus deste foco exclusivamente religioso. Um foco que possui evidentemente um bônus por outro lado, haja vista toda a importância do que engloba o aspecto da “caridade”. No entanto, mesmo a caridade aqui “carece” de ser bem entendida, posto que o aspecto filosófico da doutrina espírita também tem sido pouco trabalhado. É aí que esta noção de caridade passou a se limitar quase que exclusivamente, para muitas pessoas do movimento, ao assistencialismo, quando na verdade estende-se para muito além disso.

Toda esta torção religiosa fez-se também desenvolvendo algumas ideias complicadas que precisam ser urgentemente desconstruídas, MITOS que foram constituídos no Espiritismo ao longo do tempo pelo movimento Espírita, por razões às quais são para mim de todo desconhecidas.

  • Mitos como o mito de que não se precisa provar nada a ninguém em ciência, pois o espiritismo basta a si mesmo e dedicar ao aspecto moral é suficiente.
  • O mito de que o espiritismo praticado no Brasil hoje é ciência, filosofia e religião. Ele é na verdade, em geral, exclusivamente religioso.
  • Ou o mito de que toda a ciência espírita foi estabelecida por Kardec nas bases que publicou estando, portanto, encerradas as contribuições que possam ser realizadas em ciência ao espiritismo e vice-versa.
  • Ou ainda o mito de que os textos de Kardec estão datados e “batidos” necessitando ser atualizados ou sendo desnecessária a consideração em seu todo.
  • Ou mesmo o mito de que já se sabe tudo sobre os espíritos e o plano espiritual, graças ao Espiritismo ter construído conhecimentos sobre o espírito, como podemos citar os livros da série de André Luiz do Chico Xavier.

E ainda tem-se outros mitos:

  • O mito de que não é mais tempo de reuniões mediúnicas pois isto se deu no tempo de Kardec e elas devem cessar.
  • O mito de que é preciso estudar e somente depois de longo tempo de estudo é que se pode participar de reuniões mediúnicas.
  • Mito de que não se desenvolve a mediunidade. E não se deve exercer ela fora de um centro espírita.
  • Mito de que há perigos em sair do corpo consciente e que não se deve pesquisar e estudar o assunto.

Além de muitos outros mitos sobre outras temáticas que não serão tratadas aqui e que exigem, na verdade, análise caso a caso, como o polêmico mito sobre obter dinheiro com a atividade mediúnica, ou outros mais extremos, como o mito de que não se pode ter separações conjugais, ou o mito arcaico e sem cabimento de que não se deve utilizar métodos contraceptivos.

É importante notar que o surgimento de mitos aponta a criação de um dogma, algo que vai contra o que Kardec organizou e defendeu. O Espiritismo não deve ter dogmas. Dogma é uma presunção de verdade absoluta ao qual se impõe sem discussões. Os mitos surgem desta mesma maneira. E isso também vai contra o uso da fé raciocinada, isto é, a razão como principal guia do espírita diante o que nos é exposto. Ou seja, é preciso pensar e não aceitar simplesmente cada uma destas afirmações que se propagam no movimento espírita sem reflexão.

Estes mitos constituem um grande obstáculo a uma evolução da doutrina e a um desenvolvimento do movimento no Brasil e no mundo mais coerente aos objetivos do próprio Allan Kardec extraídos do amplo material que recebeu e organizou.

Então a doutrina Espírita evolui? Sim. E este é um primeiro mito ao qual importa desconstruir. A doutrina espírita não é estática. Ela tem uma base sólida e consistente, mas precisa se esticar, se encorpar, ser aplicada às questões e transformações do mundo produzindo mais conhecimento disso. Isto, porém, não significa fugir de sua base, como tentou fazer o chamado “roustanguismo”, a proposta de Roustaing que contradizia algumas ideias basilares do espiritismo. Ou Leymarie ao introduzir Helena Blavatsky com sua teosofia do oriente no Espiritismo. Isto obviamente seria uma distorção e deturpação do que foi criado. Mas evoluir é efetivamente pensar as mudanças a partir desta base estabelecida no passado para progredir dela e com ela, sem negá-la em parte ou totalmente como Roustaing negou ao pretender alterá-la.

Não sabemos tudo o que tange ao espírito. Com todo o conhecimento espírita construído até hoje, ainda assim apenas tateamos o desconhecido. Ainda há muito a se pesquisar e descobrir acerca do espírito e do espiritual. Portanto, estes avanços muito necessários são evolução.

Então, para dar um primeiro passo, comecemos desmistificando alguns destes mitos nos próximos textos…

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André Silva
Corpus Espírita

Pensador, investigador e “filosofista”. Pesquisa a ciência, a consciência, o espírito, linguagem, cultura, redes, etc. Mestre em C.I. Instagram: @andrefonsis