O mito da autossuficiência do aspecto moral para o movimento espírita

André Silva
Corpus Espírita
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8 min readMay 8, 2024
A médium Eva Carrière com estrutura ectoplasmática (materialização) na cabeça. Fotografia tirada em 1912 pelo pesquisador parapsicológico alemão Albert von Schrenck-Notzing (1862–1929).

Primeiro Texto / Texto anterior:

Como se viu no texto anterior, a fase atual do Espiritismo é de aprofundamento. É valioso notar que não há e não houve somente o Espiritismo como movimento de estudo do espírito no mundo e na história, e ainda bem. Um passo antes dele, René Descartes quando escrevia o Discurso do Método, livro que se desdobrou no reconhecimento posterior de uma “Revolução Científica” dando origem à ciência como conhecemos hoje, também escrevia em outro livro chamado “Meditações sobre Filosofia Primeira”, sobre algo que ficou conhecido como “dualismo”, que é a ideia da existência do espírito e matéria, sendo o espírito transcendente e sobrevivente ao corpo físico. Não construiu toda uma sofisticada doutrina como Kardec, mas constituiu o terreno necessário para a que viria posteriormente através deste último. Muito embora este lado da história do precursor da ciência moderna seja colocado por cientistas materialistas à escanteio, é também interessante notar que, segundo sua biografia escrita por Adrien Baillet chamada Vie de Monsieur Descartes, que traduz alguns registros escritos pelo próprio Descartes, biografia inclusive utilizada por Leibniz que chegou a transcrever algumas de suas passagens, Descartes teve sonhos que interpretou provenientes do “Espírito de Verdade” que lhe revelava os tesouros de todas as ciências. Um mesmo “Espírito de Verdade” faria posteriormente contato com Kardec dizendo-o acerca de sua missão, o que aponta mais uma razão para compreender que estamos diante um Projeto além das gerações, dos séculos, enfim, além do tempo.

À rigor, a vida após a morte já era pauta desde a antiguidade como o próprio Allan Kardec transcreve a doutrina de Sócrates e Platão sobre a alma na introdução do Evangelho Segundo o Espiritismo. Mas com Descartes inicia-se um debate e muitas pesquisas se acumularam sobre a temática. Hoje elas atingem um amplo volume, ficando claro que o fisicalismo tem muitos problemas, inconsistências e incoerências ante um dualismo que acumula evidências e ganha cada vez mais consistência.

Ao mesmo tempo, porém, o Espiritismo em paralelo focou-se em construir o conhecimento “apesar de”, isto é, apesar da resistência da maior parte da comunidade científica materialista que combatia quaisquer propostas de cunho dualista em favor da crença em um fisicalismo absoluto, o que incluiu naturalmente o combate à doutrina espírita e seu movimento. Contudo, essa resistência tendo sido uma rejeição à qualquer custo — inclusive frequentemente anticientífica — , provocou, por outro lado, uma reação do movimento espírita demarcando uma postura de resignação quanto a essa resistência cética materialista e, por sua vez, também em um afastamento do movimento aos esforços de ciência, resolvidos de que o que havia de ser feito já estava estabelecido pelas suas bases racionais que constituem toda a pesquisa espírita empreendida por Kardec, uma vez que, esta, se subdividia no tripé Ciência, Filosofia e Religião. Deste modo, defendiam que não mais era necessário provar nada a ninguém posto que tudo já estava provado pelos trabalhos de Kardec, de forma que o espiritismo bastava a si mesmo.

Neste sentido, por um lado, esta decisão de construir o conhecimento “apesar de” era muito positiva. Podia-se ignorar a crítica cética materialista tendo o conforto de comprovações, fossem ou não de cunho pessoal, como do corpo de evidências existentes, tendo também a vantagem da informação de fonte em perspectiva privilegiada: os espíritos. Cabia agora aos agentes do Espiritismo, quem quer que fossem, dedicar à construção do conhecimento com o concurso dos próprios espíritos para tal, porquanto já estavam presentes em suas bases os princípios de ciência, presença que até hoje se subentende suficiente. De uma forma, isso significa que esta continuidade da construção do conhecimento isoladamente não deixou de acontecer, ou seja, práticas científicas e filosóficas no que tange a vida após a morte sempre foram desde a origem do Espiritismo objeto de dedicação isolada de pessoas por si só, mas a relação do movimento espírita com a prática científica e filosófica é extremamente insatisfatória. Estas práticas não são cultivadas entre o movimento ou pensadas para os centros e casas espíritas, quando não são inclusive reprimidas. Quase sempre são fruto da iniciativa independente de um ou outro que já prezam pessoalmente em seus contextos de vida pela ciência ou que se envolvem com ela por profissão.

Para o movimento espírita, fazia-se muito mais fundamental o completo foco no desenvolvimento moral, na religião. Então frases como “o Espiritismo não precisa provar nada para ninguém” quanto à resistência da comunidade científica materialista foram e ainda são bem comuns de se ouvir. O mito que advém daí é o de que Espiritismo por ter os eixos Ciência, Filosofia e Religião como constituinte de suas bases principais, já envolve a ciência, filosofia e religião de forma suficiente, eixos cujo espírita já se colocaria em contato meramente por estudar. Mas a verdade é que apesar da ciência, filosofia e religião constituírem, sim, três eixos com que se pode organizar a doutrina, a realidade praticada hoje é exclusivamente religiosa. Nos centros espíritas o que se tem de forma geral é exclusivamente práticas religiosas, ou na melhor das hipóteses de desenvolvimento do aspecto moral.

Então restou uma forte separação. De um lado, a comunidade científica materialista em geral rejeitando todas as relações e temáticas que envolvam qualquer direcionamento dualista com verdadeira repulsa até mesmo pelos pesquisadores. Do outro lado, o movimento espírita através de suas casas e centros espíritas que poderiam ser excelentes laboratórios, mas que também dispensam o desenvolvimento do aspecto científico em sua estrutura por entenderem, de certo modo, não ser necessário mais ciência.

Daí vale uma pergunta e a reflexão que se segue: fechar o Espiritismo apenas no aspecto moral não seria o suficiente, pois sabemos do lema que “fora da caridade não há salvação”?

Se os aspectos científicos e filosóficos não tivessem a mesma importância que a religião tem, eles não seriam cada um, um eixo distinto. Se a prática da ciência, mais do que um estudo do que já foi escrito na base Kardequiana não fosse importante, Kardec não diria que o Espiritismo trata-se de uma ciência inicial como está registrado no Livro “O que é o Espiritismo”, p.52:

O Espiritismo é uma ciência que acaba de nascer e da qual resta ainda muito a aprender; seria, pois, grande presunção de minha parte pretender levar de vencida todas as dificuldades; não poderei dizer mais do que sei.

É, portanto, essencial continuar além de toda esta base através também de práticas científicas e filosóficas, tanto quanto precisamos manter as práticas de religiosidade e desenvolvimento moral. Kardec não constituiu uma ciência para seu único e exclusivo uso e não faria qualquer sentido uma ferramenta dessas de onde nada se tira de novo produto.

Podemos ter um comparativo sobre isso refletindo outras ciências. Embora Albert Einstein, Max Plank e Werner Heisenberg tenham chegado a teorias que instituíram o que é a área científica da física quântica, esta ciência não ficou restrita ao estudo do que seus fundadores teorizaram. Outros cientistas efetivamente usam o que eles teorizaram para elaborar experimentos, desenvolver novos conhecimentos a partir disso, e chegar a novas descobertas. O Espiritismo contribuiu e pode contribuir muito ainda a toda uma ciência da vida após a morte, a uma ciência espírita, mas não só. Também às ciências mais comuns. Não só pelos elementos de vantagem que possui que é o contato com os espíritos e com os médiuns, mas por outras possibilidades. Para isso, entretanto, é importante que a prática científica e filosófica volte ao radar das casas e centros espíritas.

A prática científica e mesmo o trabalho com evidências científicas do espírito tem uma finalidade dupla, que é detectar o espírito e por meio do caminho destas evidências conseguir avançar na compreensão sobre esta natureza. Ou seja, não é exclusivamente com o objetivo de provar a continuidade da vida após a morte, posto que evidências já se acumulam há pelo menos 150 anos com grande diversidade de fenômenos anômalos, numa grande variação de espectro, muito bem documentados e que constituem em sua convergência provas robustas de que a consciência não se reduz ao corpo físico como o fisicalismo defende. A finalidade é avançar com o conhecimento, pois uma infinidade de coisas podem provir dos resultados de tais práticas, por exemplo, estes avanços podem determinar uma transformação importante de cultura tal como tem acontecido nos últimos anos com relação aos estudos da eficácia da prece, que tem despertado o interesse de cientistas. Isto tem sido determinante para uma série de decisões, tais como o desenvolvimento de terapias específicas no âmbito dos hospitais, que utilizem o passe magnético ou a prece como parte do processo de tratamento, ou o desenvolvimento de grupos de pesquisa e cursos de pós-graduação que envolvam em seu escopo declarado a espiritualidade como um dos objetivos de abordagem. Tais avanços podem ainda não só contribuir à busca da resposta definitiva a algumas das doenças, como ser talvez o fator chave para desvendar a cura e reestabelecer a plena saúde, algo que pode depender de uma compreensão melhor da consciência, do espírito. Fora a possibilidade de contribuir até para o desenvolvimento de tecnologias que favoreçam em algum sentido a detecção de aspectos espirituais com algum fim útil.

Mas os benefícios não se resumem a estas possibilidades, de forma que é sem dúvida que são muitas implicações. Não necessita existir semelhante cisão, uma vez que não há quaisquer motivos para se rejeitar o espírito como objeto de pesquisa. A consciência deve ser abordada por todos os meios de ciência que se façam possíveis, pois as implicações destes resultados são múltiplas, muito abrangentes e bem significativas. Sendo assim, em primeiro lugar, o respectivo mito precisa ser desfeito. Em segundo lugar o que é “prática científica” e “prática filosófica” deve ter uma resposta pensada ampla e profundamente, não sendo este um detalhe trivial a ser abandonado pelo movimento, mas uma necessidade tão urgente quanto a própria escolha de tornar o movimento espírita mais relevante para o país.

A ciência é tão dever do Espiritismo quanto o é a Filosofia e a Religião. E a inclusão de uma prática (um único dia de prática) à rotina periódica das casas espíritas é promover o conhecimento — por que não — da ciência, da filosofia, promover a realização da experimentação, isto é, a investigação dos fenômenos anômalos, da mediunidade, promover reuniões mediúnicas como Kardec fazia, até com evocações, etc.

Isto conduz para um segundo mito que será discutido no próximo texto, o mito de que o tempo das reuniões mediúnicas já passou, entre outras estranhas ideias arraigadas entorno disso e que puxam para trás o potencial das casas e centros espíritas de importantes pontos de contato e de investigação extrafísica que podem ser. Verdadeiros laboratórios avançados da alma.

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André Silva
Corpus Espírita

Pensador, investigador e “filosofista”. Pesquisa a ciência, a consciência, o espírito, linguagem, cultura, redes, etc. Mestre em C.I. Instagram: @andrefonsis