Rumos e sentidos de Raquel Pellicano

Em 2020, a artista brasiliense seguirá novos caminhos em Lisboa, mantendo sempre a fotografia como seu norte

André Porto
Revista f/508
7 min readJul 19, 2019

--

O celular tocou e interrompeu a história do shitzu que se apaixonou perdidamente pela cadela vizinha. A ligação poderia ser um pedido de orçamento para algum ensaio fotográfico ou cobertura de evento, um chamado para alguma entrevista, mas era só telemarketing oferecendo pela trigésima vez no dia um novo plano de dados para o celular da "dona Raquel Pellicano".

Do outro lado da linha, o atendente ouviu a voz mais serena daquela tarde. Raquel explicou detalhada e objetivamente porque gostaria de manter tudo como já estava e, assim que desligou, soltou um "porra, o telefone não me deixa em paz!". Enfim contou que a cadela vizinha fugiu do cercadinho, passeou na frente de casa e encantou o Cookie. Além da estreita relação mãe e filho, precisou usar da sua persuasão incisiva e delicada para acalmar os ânimos caninos.

Que me desculpem o atendente de telemarketing e o Cookie: sinto informar mas a firmeza e a ternura devidamente equilibradas que vocês sentiram não foi exclusividade. Essa é a rotina de quem convive com a fotógrafa de 31 anos. Ainda que meu nível de convivência não chegue aos pés dos amigos de infância em Brasília, do ballet ou do IDA (Instituto de Artes da Universidade de Brasília), ouso dizer que a proximidade adquirida ao longo dos meses em que trabalhamos juntos me permite alguma boa noção.

Pressuponho que a nossa relação ganhou um novo fôlego quando Raquel, sem nem saber, quase gerou um conflito diplomático na minha família. A parte paterna do meu sangue é goiana e, orgulhosos de nascença que são, adoram pequi, um fruto típico do estado do Goias, de gosto e cheiros excêntricos. Depois de anos renegando veementemente qualquer convite da minha vó que envolvesse o tal fruto, com a Raquel eu degustei pequi pela primeira vez: num tablete de chocolate amargo artesanal com pedacinhos de pequi, é verdade. Desculpa, vó, mas aqui no trabalho tem essas coisas de comidas diferentes, requintadas, culpa da Raquel. Um dia desses te visito e a gente come um arroz com pequi no capricho.

Se no meio da tarde o cheirinho de muffin de alho poró saindo do forno do café do Espaço f/508 (o Quintal f/508) atiça todo mundo, vai chegar antes ao faro Pellicano. Ter alguma espécie de intuição olfativa especial é a única explicação para conseguir notar movimentos em qualquer canto da empresa (não só daquilo que sai do forno): se um curso novo ou o roteiro de uma Trip Fotográfica estão sendo criados, se um post no Instagram ou uma lâmpada no corredor não estão indo bem; se estão falando da série nova da Netflix ou do problema no encanamento, lá está. Nada escapa.

No estúdio fotográfico, essas sensações afloram de uma vez só. Com câmera na mão e modelo posicionada ou abajur ligado e fotos para tratar no notebook de teclado colorido, é ali que mais se sente à vontade. No Estúdio f/508, orquestra uma equipe formada por 5 mulheres, encarando e sentindo na pele os desafios de ter uma empresa 100% feminina, num país que insiste em não compreender a presença de mulheres no mercado de trabalho e e empreendendo e no mundo das artes e em qualquer lugar.

Enquanto certas obviedades ainda têm que ser explicadas didaticamente, outras se deduzem facilmente. É quase automático entender que quem fez a carreira fotografando pessoas tenha tato de sobra. Transborda satisfação por todos que passaram pelas suas lentes: seja entre as jogadoras da Seleção Brasileira Feminina de Futebol ou entre capas de revistas de moda ou qualquer pessoa que gostaria de se ver numa imagem feita por alguém reconhecida por sua sensibilidade.

Nessa mistura de cheiros, gostos, tatos e sentidos, é de se esperar que o olhar de uma fotógrafa não passe incólume. Mas se eu fosse começar a falar dos 10 anos de carreira, editoriais assinados, cursos e workshops criados e ministrados, palestras, prêmios e exposições, esse texto não acabaria. Aposto no poder do clichê: as imagens falam por si só.

Não consigo afirmar qual — ou quais — desses sentidos foram responsáveis pela mudança de rumos que definiu a próxima etapa da vida a ser cumprida. Consigo determinar elementos mais práticos, como data e local: a partir de fevereiro de 2020, Lisboa será sua nova casa. Para a capital portuguesa, levará o Cookie, alguma câmera, parte do Espaço f/508 e sua delicadeza fotográfica, profissional e de todas as suas facetas.

Que os lisboetas estejam avisados: qualquer dia, a pura imagem da sinestesia desembarcará por aí.

Além das minhas próprias impressões, fiz algumas perguntas para Raquel. Aqui estão suas respostas sobre a profissão, a experiência de fotógrafa e as expectativas para mudar de continente.

Aos 31, ser reconhecida como fotógrafa, ser empreendedora, professora e artista. Ainda falta alguma coisa?
Tenho muita vontade de me dedicar a outras áreas também, como o design de jóias e a ilustração. Ainda gostaria de desenvolver a colagem e ter um trabalho de fotografia autoral mais forte.

Seguindo no ritmo da pergunta anterior: atualmente, quais fatores tornam possível ser empreendedora, professora e artista no Brasil?
Penso que seria mais fácil responder quais os fatores que tornam quase impossível. Mas problemas à parte, a vontade de produzir e viver de algo que eu gosto é um fator que impulsiona bastante esse trabalho. Também acredito que se propor a fazer as coisas sempre com carinho e esmero, atenção a cada detalhe, ajuda a propostas de negócio serem bem sucedidas. Infelizmente, o apoio a projetos culturais e artísticos se torna cada dia menor no nosso país, o que dificulta o surgimento de novas iniciativas e o subsídio de artistas.

Por quem você gostaria de ser fotografada?
Adoraria ter um retrato em polaroid pela fotógrafa Liliroze.

Para leigos, creio que seja mais fácil supor o nervosismo de quem está sendo fotografado do que imaginar a sensação de quem está ali para fotografar. Há alguma sensação que se assemelha ao início de um ensaio importante? Você tem algum ritual antes do início de mais um ensaio? Como é esse momento para você?
Acho que concentração para qualquer coisa que fazemos na vida é crucial. Enquanto meu cliente está sendo produzido e maquiado, costumo já estar presente para conhecer melhor o clima do trabalho. Gosto de trocar uma ideia e focar para estar totalmente ativa e atuante naquele momento, já que fotografar pessoas exige constante troca e diálogo. Estar à frente de um ensaio fotográfico é também se colocar sensível e aberto ao que o outro pode te proporcionar em matéria de criação imagética.

Quais foram as dificuldades do ensaio mais complicado que você já teve que fazer?
Acredito que quando fotografamos pessoas a pressão faz parte do dia a dia, já que existe sempre grande expectativa do outro em relação a um resultado final bem sucedido. O ensaio mais tenso pra mim foi um trabalho com a seleção brasileira de futebol feminino. Elas tinham pouco tempo e disponibilidade, e eu não poderia me alongar para quebrar o gelo e tornar aquele momento leve. Minha maior frustração foi ter que ser rápida e objetiva devido ao uso final do trabalho, sem oportunidade para elaborar retratos sensíveis, com os quais me identifico mais.

A ficha já caiu que você comprou uma passagem só de ida para outro continente?
Acho que só vai cair a ficha mesmo quando eu estiver lá. Vai ser uma boa oportunidade para me reinventar também.

Além do Cookie, o que certamente não ficará de fora da sua bagagem para Portugal?
O equipamento fotográfico (naturalmente) e a nossa coleção de cabeças, que contam um tantão de histórias.

Falamos a mesma língua de Portugal e compartilhamos alguns traços culturais. Em quais pontos você já extrapola esses limites e consome cultura portuguesa?
Adoro ouvir os músicos da nova geração portuguesa. Tem muita coisa incrível que os brasileiros não consomem, com um frescor e leveza maravilhosos: Joana Espadinha, Luís Severo, Cassete Pirata… a lista é grande.

--

--