Backgrounds por História aos Poucos

(All Rights Reserved to Wei Feng)

Em bastantes anos como narrador/mestre de jogo (aqui em diante tomado por MdJ) ou jogador de RPGs-de-mesa, já tive experiências relacionadas aos backgrounds (aqui em diante tomados por BG) as melhores e as piores possíveis, ao menos num juízo de valor proporcionado pela convivência com inúmeros RPGistas diferentes.

Os BGs são parte essencial de qualquer história contada em conjunto, ao menos na maioria dos sistemas de RPG-de-mesa mais clássicos, isto é, daqueles que independentemente de suas naturezas focam-se em personagens com históricos pré-jogo. Esses antecedentes, ao serem compartilhados com o MdJ (e totalmente ou parcialmente com os outros jogadores), proporciona as oportunidades de ouro deste utilizar essas informações na trama em si, em suas opções-consequências, na sua atmosfera, nas suas verdades e na sua carga dramática.

É muito simples: Se Floor, a alta guerreira, antes do início da campanha, possuía um mentor que a traiu, de forma gravíssima e gerando rancores, o prato de ouro na bandeja de prata encontra-se na possibilidade do MdJ usar esse velho treinador. Haverá (ao menos espera-se), independente do histórico dos aventureiros, uma enorme quantidade de situações repletas de drama, de escolhas difíceis, de resultados bons/amargos e de reflexões para até além do jogo em si, tudo surgindo da história inédita que é contada… Mas o turbilhão narrativo relacionado ao passado dos personagens tem um sabor diferente (senão especial). Floor poderia se preocupar com o destino da recém-descoberta Cidade de Vau Listeiro e daquilo que de macabro está no sangue de seus habitantes, mas também com as ações vis de seu outrora guia, mais cedo ou mais tarde. Algo do que os jogadores criaram voltam para os mesmos. Para o bem ou para o mal. Para ser lembrado e/ou ser resolvido.

Obviamente, o MdJ depende de BGs ricos para trabalhá-los futuramente também de forma rica. Já presenciei alguns jogadores que consideravam uma espécie de parto essa criação, no sentido de difícil. Alguns até pensavam que tal etapa inicial nem era importante, ansiosos logo pela entrada na ação em si. Mas eles eram minoria. A muito dominante maioria das pessoas com quem já participei em campanhas adorava (inclusive todas da minha mesa atual) criar o ontem das vidas que elas alimentariam na ficção. Para quem tem dificuldade (ou preguiça, vai saber) dessa narrativa do passado, cabe um trabalho do mestre de mostrar ao participante a importância deste ritual, pelas questões narrativas em si e até premiando inicialmente BGs no mínimo razoáveis, feitos sem desleixo e/ou displicência.

Aí residem os dois polos da afirmação do primeiro parágrafo: Praticantes do hobby com problemas em gerar seus BGs, pelos mais variados motivos, e outros que geravam situações enfadonhas em hiperdescrição/hipernarração dos mesmos. Aliás, a partir de agora, o foco é justamente o segundo grupo, menos problemático, mas ainda indesejável.

Geralmente, como MdJ, sempre busquei que as fichas estivessem prontas antes da primeira sessão. Para isso, muitas vezes sacrifiquei-me, encontrando-me antes e pessoalmente com membros de um grupo, um a um, para aqueles que não dominavam as regras (e que possuíam agendas incompatíveis para uma pré-primeira-sessão conjunta). O propósito disso é deixar para o encontro estopim, acerca das burocracias, unicamente o ajuste fino das características e habilidades dos protagonistas, principalmente devido ao papo olho-no-olho e reconsiderações de estratégia global da guilda (o planejamento mais grosso era feito pela internet, a começar pelo finado Orkut, em acordos indiferentes ao MdJ sobre classes, papéis, etc).

A primeira sessão de jogo “tinha que ter jogo”. Os integrantes precisavam vestir-se logo de seus protagonistas do teatro da mente, logo naquele dia. Mas algo muitas vezes “arrastava” essa primeira reunião, que eram históricos demasiadamente longos. Eu possuo um amigo cujo nome é Guilherme (sim, o nome real dele é esse) que, ao meu ver (e ele sabe da minha opinião), não possui poder de síntese nesse relato tão fundamental. Ele sempre criou (e cria) boas origens, mas demorava muito tempo descrevendo-as, atentando-se a mínimos detalhes de ações, acontecimentos, cenários, sentimentos e até sendo redundante. Algumas vezes, mais de uma pessoa fazia o mesmo. Às vezes, até três pessoas. E o tédio batia sobre algo que deveria ser empolgante, até considerando o nome: Dungeons & Dragons.

Dessa forma, em vez de uma tentativa de pura “conscientização” e rígida normatização dessas narrativas pessoais (que são muito subjetivas e ligadas à liberdade de criação), comecei a utilizar um sistema bastantemente influenciado por Dungeon World (Sage LaTorra & Adam Koebel, versão brasileira pela Secular Games), mais especificamente por um dos movimentos (habilidade com gatilho, resolução e consequência) d’O Bárbaro:

FORASTEIRO — Você pode ser um elfo, anão, halfling ou humano, mas seu povo não é dessas redondezas. No início de cada sessão, o MJ lhe perguntará algo a respeito de sua terra natal, por que você foi embora ou o que deixou para trás. Se responder, marque XP.

A partir disso, com muito sucesso em nossas jogatinas, nasceu o “História aos Poucos”, uma espécie de movimento num jogo onde originalmente não há movimentos (o D&D 5a Edição). Nós adicionamos também elementos psicológicos dos papéis (comuns nos BGs bem construídos) além de expectativas para o futuro. Ele ficou assim:

HISTÓRIA AOS POUCOS — Cada jogador pode contar um único fato sobre seu personagem, acerca de 1) Família e velhos amigos, 2) Aliados, 3) Inimigos, 4) Local e cultura de origem, 5) Infância, 6) Religião, 7) Profissão, 8) Hobbies, 9) Hábitos e manias, 10) Equipamentos especiais ou com valor sentimental, 11) Característica física dificilmente notável, 12) Recursos financeiros, 13) Poder e ambição, 14) Valores e ideais, 15) Expectativas para o futuro, 16) Etc…+1XP, se o jogador o fizer.

Há um número-base de pontos de experiência (XP) que um personagem necessita ter para avançar de nível (assim como a regra original do Dungeon World), sendo no nosso D&D 5E de 12+(nível atual). Há várias outras formas de se ganhar esses pontos (novamente, assim como no Dungeon World). Muitas. Todas elas transformadas em regras. Também logo no início da sessão, há outra forma de ganhá-los, de forma “bem fácil”:

OLHAR PARA DENTRO — Cada jogador pode contar como seu personagem está se sentindo acerca dos acontecimentos da última sessão.+1XP, se o jogador o fizer.

Em um artigo futuro, pretendo dissecar esse sistema alternativo (e intensamente “regra da casa”) para evolução de poder e sua necessária premiação anterior(XP). A questão aqui é o grande benefício sentido pelo grupo em questão com BGs sucintos, diretos e objetivos num primeiro momento, tratando dos fatos de forma geral e ampla, focando ao essencial, sendo alimentados, pouco a pouco, por maior profundidade conforme as sessões vão acontecendo. Sem tédio. Sem muita informação de uma vez só. Com mais tempo pros jogadores irem refletindo sobre pontos cabais do passado (sobretudo quando estes os atingem no presente ficcional). Com premiação almejada com um narrativismo encrustado e incentivado nas regras. Com BGs orgânicos, onde a cada sessão um tijolo do pretérito (ou até presente, conforme algumas entradas do História aos Poucos) surge para o muro da interpretação.

No mínimo, em D&D 5a Edição, talvez esse sistema pudesse estar atrelado à famigerada Inspiração. Ambos História aos Poucos e Olhar para Dentro. Cumpririam os papéis já citados e tirariam das mãos do mestre a árdua (e muitas vezes feita de forma injusta, sem querer) tarefa de premiar com pontos de inspiração, sobre aspectos avaliativos intensamente subjetivos. No momento em que ambos os “movimentos” (em D&D 5a Edição e no ínicio da sessão) fossem cumpridos, os jogadores ganhariam o ponto de inspiração. Um só, para ambos os exercícios narrativos completos. Afnal, é para fomentar o narrativismo que eles existem. Afinal, um MdJ já precisa se preocupar com muitíssimas coisas, além de avaliações abstratas, difíceis e cansativas acerca de defeitos, vínculos, ideais e personalidades (os guias de comportamento, nas regras, mais comuns para recebimento de Inspiração).

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