Foto: Mídia NINJA

A pandemia que embaralhou nossa compreensão de futuro*

Sil Bahia, Diretora do Olabi — Brasil

Título inspirado nas aspas “Embaralhou nossa compreensão de futuro”, do Laboratório de Análise de Acontecimentos (GrisLab)

Ser uma mulher negra, brasileira que trabalha no universo da tecnologia durante essa quarentena tem sido para mim um misto de esperança e angústia. Esperança porque sempre que consigo, tento me manter otimista sobre os processos em que a tecnologia pode otimizar nas nossas vidas. Costumo olhar para a tecnologia e todas as mudanças que estão embutidas no seu consumo como uma faca de dois “legumes”: ela pode ser boa, resolver problemas, ajudar, mas também pode aumentar as desigualdades, reforçar estereótipos, excluir e por aí vai. A parte boa do que tenho observado é que, de fato, a tecnologia viabiliza a organização de iniciativas que têm por objetivo ajudar, dar apoio a quem precisa nesse momento tão delicado. E eu acredito muito nessas iniciativas, faço parte delas e isso ajuda a manter a esperança.

Por outro lado, não é de hoje a preocupação sobre como as tecnologias também podem colaborar para aumentar as desigualdades. Da falta de produção de dados para criação de políticas ao acesso à informação de qualidade, sabemos o abismo que existe quando falamos da população negra e pobre do Brasil. No contexto da pandemia desde quando ouvimos falar da Covid-19, as previsões já indicavam a cor, o gênero e a classe social de quem mais sofreria com a crise no sistema de saúde e com a crise econômica. Mesmo com poucos dados oficialmente produzidos, já sabemos quem mais morre por aqui.

Em 10 de abril o Ministério da Saúde divulgou dados, após pressão da Coalizão Negra por Direitos e outras organizações sociais para que fosse inserido e revelado o recorte de raça/cor, que mostram que negros representam 1 em cada 4 brasileiros hospitalizados com Síndrome Respiratória Aguda Grave (23,9%) e entre os mortos somos 1 em cada 3 (34,3%).

A minha angústia parte desse lugar. Para além de tudo que está acontecendo no Brasil hoje politicamente falando, é praticamente impossível não perceber como o coronavírus revela o que muitos tentam fingir que não existe: o racismo que estrutura nosso país. E as tecnologias têm um papel fundamental nessa história. Porque parece que as coisas estão desconectadas, mas não estão. Quem hoje, por exemplo, está podendo dar continuidade aos seus estudos ou até mesmo trabalhar de casa? Perguntas como: tecnologia para quem? Feita por quem e para que? Podem parecer óbvias essas perguntas, mas infelizmente estamos em um momento em que o óbvio precisa ser (re)dito.

Se antes, a preocupação era (e não era pouca coisa) com a reprodução do racismo por meio da Inteligência Artificial, o que não deixou de ser uma preocupação ainda mais nesse momento se olharmos como temos dedicado boa parte da nossa vida às plataformas online, já que a vida parece ter “se mudado para a nuvem”, agora, com um canhão apontado para nós e com a iminência da morte em massa, nas piores previsões, a pergunta se faz ainda mais necessária: para que estamos usando a tecnologia?

Longe, infelizmente, de ter essas e outras respostas, compartilho parte das minhas reflexões nesta quarentena que está embaralhando minha compreensão de futuro, tempo e espaço. Mas sigo firme, com oscilações diárias, na esperança de que em um futuro próximo possamos usar as tecnologias totalmente ao nosso favor para a redução das desigualdades, e que não nos enganemos: não existem saídas individuais. Ou partimos para um entendimento de que a saída é coletiva ou estaremos fadados ao isolamento eterno.

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