Foto: Mariana Miranda

A violência doméstica não faz quarentena

Rita Sarrico, Medioactivista, Bloco de Esquerda — Portugal

Enfrentamos hoje uma crise pandémica, um vírus que correu o mundo, contagiou milhares e matou demasiadas pessoas. Mas já antes da Covid-19 ter assolado a população do globo, já a nossa sociedade vivia uma outra pandemia que destrói vidas e, tantas vezes, mata: a violência doméstica.

Em Portugal, a violência doméstica continua, ano após ano, a ser o crime contra pessoas que mais mata. Os números não descem, as medidas continuam a não ser suficientes e vidas continuam a ser tiradas.

Tal como a pandemia da Covid-19, também a violência doméstica pode atacar qualquer um ou qualquer uma, mas seria ingénuo achar que tanto uma como outra afetam da mesma forma toda a gente.

Não nos enganemos. Tal como as crises económicas e as alterações climáticas afetam mais quem menos tem, também esta pandemia irá trazer ao de cima as fragilidades de um mundo extremamente desigual. É que a violência doméstica é também uma questão de classe. As mulheres mais pobres terão sempre maior dificuldade em denunciar e receber o apoio necessário. O receio de ter de sair das suas casas, perder os filhos, ficar sem rendimentos, são fatores que necessariamente, pesam na decisão.

O último relatório da APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), referente ao ano de 2019, mostra-nos que 79% dos pedidos de ajuda que receberam foram de situações de violência doméstica, sendo que 80% das vítimas eram mulheres.

Em quase metade dos casos, havia uma relação de intimidade entre o agressor e a vítima e o local do crime mais referenciado continua a ser a residência comum.

A propagação do vírus e o seu nível de gravidade, obrigou à implementação de medidas de confinamento em grande parte dos países. Para nossa segurança foi-nos pedido que evitassemos sair de casa. Mas Casa não é sinónimo de segurança para toda a gente.

Em março houve menos 26% de queixas de violência doméstica à GNR do que no mesmo período do ano passado, mas isto não pode ser assumido como uma boa notícia: o confinamento está a dificultar a apresentação de queixas por parte das vítimas.

O isolamento das famílias favorece as estratégias de controlo e dominação do

agressor e o maior tempo de convivência pode resultar numa escalada de violência, tanto física como psicológica.

O governo português criou um sms gratuito através do qual se pode fazer a denúncia e reforçou a linha telefónica gratuita disponível 24h por dia. Mas em contexto de confinamento e isolamento, o agressor, consegue agora muito mais facilmente controlar o computador e o telemóvel da vítima o que dificulta, quando não impossibilita, a capacidade de denúncia e o acesso à proteção.

O confinamento resultou também numa limitação das interações sociais das vítimas. Tornou-se agora muito mais complicado para uma vítima falar com alguém em quem confie ou ser sinalizada por mostrar sinais de agressão. Também para as crianças, a situação piorou: se antes poderiam ser sinalizadas na escola, procurar apoio junto dos professores, agora fechadas em casa é quase impossível.

Mas se toda a gente reconhece a gravidade deste flagelo que é a violência doméstica, do que estamos à espera para tomar medidas mais corajosas?

A possibilidade de denúncia via SMS, por exemplo, é uma medida que já devia ter sido implementada há muito tempo e deve continuar, mesmo após o fim da crise pandémica.

A justiça tem também de responder de forma diferente a estas vítimas e tem de garantir uma resposta célere, protetora e reparadora Os agressores não podem continuar a sair impunes destes crimes, com penas suspensas ou casos arquivados. Esta desculpabilização e impunidade abre a porta à continuidade e agravamento deste crime.

As autarquias, cuja proximidade à população representa uma vantagem na prevenção e combate à violência doméstica têm de assumir as suas responsabilidade e reforçar os meios de prevenção e combate e este crime.

A retirada imediata do agressor da residência e a garantia de apoio jurídico, financeiro, habitacional e psicológico às vítimas são igualmente medidas urgentes.

Enquanto sociedade, precisamos ainda de fortalecer a ideia de que nestes crimes, todos temos um papel. Se detectarmos algum caso, se percebermos que a nossa vizinha está a precisar de ajuda, se alguém que nos é próximo demonstrar sinais de que é vítima de violência, podemos e devemos denunciar. Pode significar a diferença entre a vida e a morte de uma pessoa.

A violência doméstica não fez quarentena. O seu combate também não pode fazer.

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