Águas passadas
O vento nordeste soprou uma nuvem de gotículas de água e maresia para o píer, refrescando o calor do fim da tarde. O pescador, sentado aos pés da estátua de Iemanjá, conversava com o mar daquelas praias.
– Esquece isso – disse o velho – É um rancor besta.
– Eles tiraram parte da minha casa – respondeu o mar – Não tenho o direito?
– Então é isso? Cê quer pegar de volta?
Uma onda arrebentou nas escadas de pedra, espalhando espuma e algas.
– Tenho parentes no norte – disse o mar – que estão fazendo exatamente isso: tomando de volta as praias aterradas.
– A Bugia, em Conceição da Barra – disse o velho.
– Sim. Mesmo que os seus chefes voltem a aterrar, meus primos tomam de volta.
O pescador se calou ao sentir um puxão no anzol. Recolheu parte da linha, mas ainda não era peixe. Suspirou.
– Eu lembro de quando Vitória era mais próxima do mar, as ondas pocando perto de casa – disse. – Hoje os muleque que passam na rodoviária não sabem nem que aquilo ali foi uma ilha… Que a Ponte Seca não era seca coisa nenhuma, que os bairros com nome de ilha era tudo mangue… Mas era outra época e se falava que o mangue era coisa ruim, contra o progresso.
Deu um puxão na linha.
– Mas olha – continuou o velho – Muita gente brigou pra morar nos mangues, vivendo sem água e sem luz, até que fizessem os aterros. Se você panhar de volta, que que vai ser?
– O invasor é quem erra primeiro – respondeu o mar.
– É, eu sei – disse o velho, torcendo a boca, e deu linha no anzol – Mas filho não pode pagar pelos erros dos pais.
Outra onda bateu nas escadas. O anzol finalmente fisgou alguma coisa, e o velho se levantou, puxando. Abriu um sorriso quando finalmente viu o peixe se debatendo, e recolheu a linha até puxá-lo para o píer. Um badejo-mira, que devia ter uns bons dois quilos. O velho sorriu de novo, pegando o peixe.
Começou a guardar suas coisas.
– Bem, vou indo – disse – Brigado pelo peixe e pela conversa, nos vemos amanhã. E pensa no que falei.
– Talvez eu pense – respondeu o mar, descendo de leve as pedras, se despedindo – Mas um dia vou pegar meus canais de volta.
O velho acenou para as ondas, subiu as escadas do píer e tomou o caminho de casa.
– É esgoto, minério e aterro – o mar de Camburi ponderou, consigo – Ofensas demais pra deixar passar…
Mas suspirou no vento, e deixou de pensar naquilo. O mar, afinal, gostava do velho.
Não ia ser daquela vez que as ondas tomariam as praias de volta.