Águas passadas

Daniel Folador Rossi
EspeculAtiva
Published in
2 min readMay 31, 2018

O vento nordeste soprou uma nuvem de gotículas de água e maresia para o píer, refrescando o calor do fim da tarde. O pescador, sentado aos pés da estátua de Iemanjá, conversava com o mar daquelas praias.

– Esquece isso – disse o velho – É um rancor besta.

– Eles tiraram parte da minha casa – respondeu o mar – Não tenho o direito?

– Então é isso? Cê quer pegar de volta?

Uma onda arrebentou nas escadas de pedra, espalhando espuma e algas.

– Tenho parentes no norte – disse o mar – que estão fazendo exatamente isso: tomando de volta as praias aterradas.

– A Bugia, em Conceição da Barra – disse o velho.

– Sim. Mesmo que os seus chefes voltem a aterrar, meus primos tomam de volta.

O pescador se calou ao sentir um puxão no anzol. Recolheu parte da linha, mas ainda não era peixe. Suspirou.

– Eu lembro de quando Vitória era mais próxima do mar, as ondas pocando perto de casa – disse. – Hoje os muleque que passam na rodoviária não sabem nem que aquilo ali foi uma ilha… Que a Ponte Seca não era seca coisa nenhuma, que os bairros com nome de ilha era tudo mangue… Mas era outra época e se falava que o mangue era coisa ruim, contra o progresso.

Deu um puxão na linha.

– Mas olha – continuou o velho – Muita gente brigou pra morar nos mangues, vivendo sem água e sem luz, até que fizessem os aterros. Se você panhar de volta, que que vai ser?

– O invasor é quem erra primeiro – respondeu o mar.

– É, eu sei – disse o velho, torcendo a boca, e deu linha no anzol – Mas filho não pode pagar pelos erros dos pais.

Outra onda bateu nas escadas. O anzol finalmente fisgou alguma coisa, e o velho se levantou, puxando. Abriu um sorriso quando finalmente viu o peixe se debatendo, e recolheu a linha até puxá-lo para o píer. Um badejo-mira, que devia ter uns bons dois quilos. O velho sorriu de novo, pegando o peixe.

Começou a guardar suas coisas.

– Bem, vou indo – disse – Brigado pelo peixe e pela conversa, nos vemos amanhã. E pensa no que falei.

– Talvez eu pense – respondeu o mar, descendo de leve as pedras, se despedindo – Mas um dia vou pegar meus canais de volta.

O velho acenou para as ondas, subiu as escadas do píer e tomou o caminho de casa.

É esgoto, minério e aterro – o mar de Camburi ponderou, consigo – Ofensas demais pra deixar passar…

Mas suspirou no vento, e deixou de pensar naquilo. O mar, afinal, gostava do velho.

Não ia ser daquela vez que as ondas tomariam as praias de volta.

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