Brasilidade, latinidade e malemolência- Três obras de ficção para entender o que significa ser latino.

João Pedro L. Goncalves
EspeculAtiva
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6 min readJun 1, 2018

Há alguns meses eu e um amigo, Pedro Simões, conversávamos a respeito de como certos livros que amamos nos fizeram repensar e entender melhor o que é ser latino-americano. Ambos temos formações na área de humanas e comunicação, mas curiosamente entre os três livros citados não havia nenhum Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Jr ou similar. A lista é composta por três romances com elementos fantásticos, títulos que nos tocaram fundo emocionalmente, escritos por autores famosos e consolidados. Esses livros certamente foram analisados antes, de diversas formas, mas provavelmente não desta. Sem mais delongas, vamos às obras.

A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao- Junot Díaz

Junot Díaz é um escritor bem sucedido, famoso por suas fortes opiniões políticas, por uma prosa de características únicas e, bem, por ser dominicano. O fato de o livro se passar na república Dominicana é um diferencial, posto que normalmente quando nós brasileiros pensamos em “latino” não voltamos nosso pensamento imediatamente para o Caribe. O livro conta a história de um nerd que tem a pele da cor errada, o peso errado, a forma física errada e os gostos errados para ser visto como um cidadão padrão daquela nação. Não apenas isso, mas nosso protagonista também não é sensual como se espera dele, tem aspirações de ser um grande artista(no caso escritor), vive num país comandado por um líder inescrupuloso e egomaníaco e acredita que seu povo é vítima de uma espécie de maldição ancestral e inescapável. Os temas estão muito bem situados no país onde a história acontece, mas as similaridades não são poucas com a vivência de outros países latinos.

Há um quê de exílio na própria terra, de se sentir um estrangeiro no lugar em que se nasceu e viveu. Há a importação constante de cultura estadunidense e japonesa nos conteúdos nerds que Oscar consome. Há a certeza de ter um líder ditatorial que é “o maior escroto do mundo” e ao mesmo tempo uma espécie de masoquismo institucionalizado de abraçar isso como se merecido e inevitável. Há o misto do desejo de sonhar alto com a certeza de que tudo sempre acabará mal. Há sofrimento, vivências duras, mulheres fortes lutando contra o status quo e todas as opressões cotidianas. E creio que é nisso que o livro de Junot me atingiu.

Mais do que como alguém que foi o nerd com delírios de grandeza, que olhava mulheres como seres alienígenas e tinha certeza que jamais seria popular, eu me identifiquei com o protagonista porque ele parece não saber exatamente qual o seu lugar no mundo. E por mais universal que esta experiência seja na juventude, eu diria que a latinidade agrava o problema. Ser latino não é apenas não saber ao certo quanto orgulho e quanta raiva cultivar de sua nação e quanto devemos ou não importar a cultura de países mais “populares”. Ser latino é se sentir, nas palavras de Raul Seixas, uma espécie de metamorfose ambulante.

Viva o Povo Brasileiro- João Ubaldo Ribeiro

João Ubaldo Ribeiro quase dispensa apresentações. O homem entendia de Brasil, entendia de ironia e foi o detentor de uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras, uma das poucas pessoas cujo merecimento dificilmente seria contestado. Em Viva o Povo Brasileiro, Ribeiro nos dá uma perspectiva histórica de nossa muy querida nação. O livro cobre séculos de história do país, da independência até meados do século XX, e me pareceu historicamente tremendamente bem fundamentado. A prosa de Ribeiro é saborosíssima como sempre, mas neste livro brinca com a ideia de emular crônicas da história oficial, aquela feita de grandes atos, personagens heróicos e frases de efeito. O uso desta similaridade, porém, vem para causar efeito cômico e crítico.

Viva o Povo Brasileiro nos leva a rir do ridículo que nos é imposto quando estudamos a história escrita para parecer heroica e cavaleiresca. Os personagens são falhos, ridículos, traem seus preceitos, dão sorte(ou azar) e não são nada parecidos com A Sociedade do Anel, com o quadro de Pedro Américo sobre a independência ou qualquer outro modelo maniqueísta brilhante. O livro fala de reencarnar em corpos de bichos, de covardia, de mediocridade e do famoso jeitinho brasileiro.

A forma magistral com a qual o autor coloca essa relação entre o amor à pátria, os valores ditos nobres e essa humanidade cheia de odores, secreções, hipocrisia, atos egoístas e comicidade traça um pouco da ideia de latinidade como eu sempre a senti. Apesar de termos grandes figuras dignas de exaltação e momentos notáveis, muitas vezes acabamos presos a ídolos importados, formas de submissão persistentes e ideias que não mais nos representam(ou que jamais representaram). Além da brasilidade, essa coisa tão difícil de definir, Viva o Povo Brasileiro nos fala um pouco sobre ser parte do continente americano, ser colonizados e não saber ao certo o que fazer disso.

Cem Anos de Solidão- Gabriel García Marquez

Gabriel García Marquez é outro cujo nome carrega uma aura de autoridade e qualidade que dificilmente é contestada. Considerado um dos maiores escritores que o século XX viu, ganhou diversos prêmios, e Cem Anos de Solidão é, talvez, sua obra mais conhecida. Não vou entrar no mérito de discutir se realismo mágico é ou não ficção fantástica (spoiler: para mim é) ou tentar reinventar a roda esmiuçando demais outra obra já tão analisada. O que nos importa em Cem Anos de Solidão para o propósito deste artigo são as relações familiares e as emoções. Do homem que ameaça matar novamente um fantasma a rixas e desafetos que cruzam os tempos, Cem Anos de Solidão é tão confuso quanto envolvente. Até mesmo quando se negam a reafirmar seus amores sejam eles românticos ou fraternais, os Buendía e todos que os circundam em Macondo são autênticos até em seu leito de morte, e muitas vezes além dele. Parece difícil fazer julgamentos de valor a cada um dos personagens e talvez aí esteja um grande ponto. Pessoas de verdade não são 100% boas ou más, mas, mais do que isso, latinos como são os Buendía, eles se atiram àquilo com que se comprometem ou com que cismam. Em diversos momentos na obra, temos mostras de grandeza em atos que para muitos personagens clássicos seriam considerados momentos irrelevantes ou mesmo vergonhosos. Os Buendía não escondem seus loucos, seus criminosos de guerra, seus traidores, seus putanheiros. Suas mulheres não são agentes passivos, apesar dos vieses de gênero. Na riqueza ou na pobreza, eles não mostram vergonha real de serem quem são. Eles representam elementos muito conhecidos da dinâmica social de todos nós, inclusive no quesito das famílias que deixam suas desavenças de lado e se unem contra “elementos externos”.

A árvore genealógica dos Buendía é um caos. E isso é maravilhoso.

Tá, e daí? Ou minhas conclusões.

O convite que me levou a escrever este texto (artigo, se acharem que ele merece ser chamado assim) veio de uma conversa informal, e informal ele se manteve. Não pretendi aqui colocar como se deve ler qualquer uma dessas obras, mas recomendo fortemente que as leiam. Na verdade, não estou certo de que obtive de nenhuma delas muitas respostas.

A verdade é que, quando se fala de identidade nacional, étnica ou cultural, as definições são muito fluidas. Sei que para alguns países ao norte, brasileiros são considerados hispânicos, mesmo que não falemos o espanhol. Sei que nossa terra tem inúmeras divisões, políticas econômicas e sociais. Sei que nem é fácil saber o que é ser brasileiro ou quem sabe argentino, chileno, dominicano. Assim, esforços para definir o que é, de verdade, ser latino, parecem inúteis. Mas não creio que o sejam.

Posto que boa parte das fronteiras modernas foram criadas depois do século XVIII(obrigado pela informação, Patrick Geary) não acho que faça sentido negar a alguém se sentir pertencente a uma nação ou cultura. Não acho que as definições de nacionalidade ou identidade devam ser restritivas e criem grilhões. Também não me agrada que pessoas oportunistas ou mal intencionadas usem ideias como as de instinto patriótico e diferença de nacionalidades para propagar ódio e intolerância.

Penso que ler a respeito de nossos parentes latino-americanos e conseguir achar conexões com eles na prosa é importante. Mesmo que tais conexões não se sustentem necessariamente em fatos sólidos e pragmatismo, gosto delas. Me agrada e ideia de me sentir mais próximo de um dominicano pois em alguns níveis tivemos vivências similares. Gosto de pensar que as diferenças que podemos perceber através destas intersecções literárias também são enriquecedoras. Empatia nunca é um desperdício de energia.

Por fim, mesmo sem saber se contribuí para pensamentos a respeito do que é ser latino, dominicano, argentino ou brasileiro e do que essas obras podem trazer para essa discussão, lanço um apelo. Vivemos tempos estranhos, confusos e assustadores. Se a leitura deste artigo ou das maravilhosas obras nele listadas não parecer trazer nenhuma solução para suas dúvidas ou anseios, não desanime. Há outras fontes, outras mídias, um mundo enorme aí fora. Mas peço, não pare de procurar formas de se conectar com outras pessoas e nacionalidades com as quais possa ter algo em comum.Em tempos complexos como estes, seremos tão fortes e sólidos quanto conseguirmos nos conectar e entender uns aos outros.

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João Pedro L. Goncalves
EspeculAtiva

Escritor, redator, leitor crítico. Colaborador do Tempos Fantásticos www.temposfantasticos.com . Contato profissional: joaopedro.lgoncalves@gmail.com