Criadores brasileiros falam sobre Ursula K. Le Guin

Ana Cristina Rodrigues
EspeculAtiva
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5 min readMar 31, 2018

“Meu primeiro contato com a autora foi uma edição de portuguesa de The Word for the World is Forest, uma metáfora para a guerra do Vietnã que ia além e tratava de tantas questões em um espaço tão curto que nas mãos de qualquer outro autor seria confuso e enfadonho. Ali, foi fascinante. Li muita coisa de ficção dela, mas sempre procurei a não-ficção. Ela tinha opiniões fortes e nenhum medo de emiti-las. Lutava pela liberdade e pela igualdade, contra diferenças e não fugia de brigas. Era um exemplo que deve continuar nos iluminando na época em que vivemos, quando as trevas lutam para nos sufocar.”
Ana Cristina Rodrigues, escritora e tradutora

“Ursula K. Le Guin disse algo em uma entrevista que me marcou bastante: sobre como pensamos em termos bélicos, como ‘lutar por direitos’, e o perigo que esse pensamento tóxico traz. Lembro que na época falei sobre como me sentia menos merda por ter uma escritora aclamada de FC com o pensamento parecido com o meu.”
Heitor Vasconcelos Serpa

“Depois de ler Those Who Walk Away From Omelas, eu não consegui dormir por quase uma semana. Enquanto estava ocupado com os afazeres do trabalho ou interagindo com colegas e amigos até era possível funcionar normalmente. Acontece que com as luzes apagadas, sozinho com o colchão e o travesseiro, eu me via de volta na inquietante Omelas. Os mundos desenvolvidos no texto de Ursula K. Le Guin chegam a ser insidiosos. Mesmo que você queira se livrar deles, eles nunca vão embora.”
Thiago Rosa

“Entrar em contato com a obra da Le Guin é algo que não tem volta. Marca para sempre. Seja pela incrível capacidade que ela tinha de criar personagens e mundos inesquecíveis ou por suas ideias e coragem de fazer algo. Tomar uma atitude contra aquilo que ela pensa estar errado. E essa inquietação que ela tinha acaba fazendo com que você precise tomar uma atitude e repense toda a sua visão do mundo. E ter esse efeito nas pessoas é algo raro, sublime.”
Thiago Tizzot

“ Meu primeiro contato com Ursula Le Guin não foi a narrativa do A Mão Esquerda da Escuridão, mas sim com a introdução.
Tive (e ainda tenho) uma série de ‘alumbramentos’ com aquela introdução, não apenas de me descobrir um aspirante a mentiroso. Mas perceber que eu quero servir à verdade sendo um mentiroso.
Ali eu percebi o valor da narrativa dela. Do quanto esse engajamento com algo maior ressoava comigo.
Li o livro todo devagar, e duas vezes. Li no meio de uma tempestade de vida que ainda tá durando. Mas percebo que a narrativa dela, seu prazer pela palavra, e engajamento com a verdade me traz pra um centro de sentido no qual eu quero que minha narrativa chegue.
E se não for possível , eu saio da claridade de Apolo, vou prum lugar escuro tomar um vinho com Baco.”
Caio M. Bessa

“Eu conheci o trabalho da Ursula indiretamente. Meu primeiro contato foi através de uma adaptação horrível do canal Syfy — Earthsea. Eu só assisti aquilo porque tinha a Kreuk, a menina que fazia a Lana em Smallvile — que era um dos meus seriados favoritos na época. O filme foi uma porcaria, mas tinha lá ‘baseado no livro de Ursula K Leguin’. Fiquei curioso e fui atrás de uma cópia em inglês — que consegui depois de muito esforço. Eu li o livro em uma sentada e amei, era épico, incrível e um mundo novo — que me influenciaria bastante. O meu livro novo se passa num mundo cheio de ilhas e mar, parte disso é por causa de Earthsea (mas, também das outras histórias do mar que eu amava, a maioria vinda de Robert Louis Stevenson, etc).

O legal de Earthsea é que o drama vinha muito mais da busca pelo equilíbrio do que por causa de um senhor das trevas e coisas do tipo. Então, assim, até pelo tipo de pessoa que eu sou, foi natural que eu me apegasse muito ao trabalho dela em Earthsea. Mais tarde eu li A Mão Esquerda, Despossuídos, contos e não ficção, mas minha memória mais afetiva são as de dias no sofá acompanhando um menino chamado Ged. A minha adolescência tem um tempero dela no meio. Muito antes de eu saber que ela era importante, famosa e tal. Mais importante do que isso: era a autora de um livro legal pra caramba!”
Jim Anotsu

“Meu primeiro contato com a Ursula foi com A Mão Esquerda da Escuridão. Acho que a experiência daquela leitura pode ser resumida da seguinte maneira: eu era um prédio sendo implodido por uma engenheira extremamente competente e eficaz, dessas que faz um edifício virar pó em alguns segundos num colapso controlado. Eu havia sido demolido -elegantemente -e então teria uma chance de me reconstruir de uma maneira muito melhor que a anterior.”
Felipe Castilho

“Sabem, nos videogames temos um critério de valor interessante, chamado ‘vale a pena jogar de novo?’. Existem jogos que você joga uma vez e nunca mais, dá pro sobrinho ou apenas esquece e um dia, nota que precisa de espaço na memória e apaga. E tem alguns que você nunca cansa de jogar, você nunca apaga e a cada vez parece diferente, desafiador e surpreendente: ‘tinha isso no jogo’? E tem outro critério, que se chama ‘curva de aprendizagem’: tem jogos fáceis, que em segundos, você entende as regras e vai em frente. Já outros, o manual com a introdução tem 300 páginas em letra pequena… para se jogar de maneira básica. E finalmente, tem um critério que não é muito usado nas críticas de jogos, mas que tem valor: relevância filosófica. Quando o jogo te faz mudar a maneira como vê o mundo, como se relacionar com outras pessoas, como se colocar diante das ‘grandes questões’. Espera-se para melhor. Estes são os clássicos, os grandes jogos.

E qual a relação com Ursula Le Guin ?

Eu li A Mão Esquerda da Escuridão e Os Despossuídos juntos, na coleção do Círculo do Livro por volta de 1990. Leitura leve, descompromissada… ‘jogo fácil’, pensei na época. Só que me peguei citando a obra 10 anos depois, pois seus temas era relevantes em conversas e argumentação sobre a ‘grande questão do Outro’, a moda de minha geração. Logo, os livros dela ainda estavam na minha memória e continuam ‘rodando’, produzindo, sendo relevantes. E um dos modos de se chamar um autor de ‘gênio’ é justamente parecer simples, não assustar pela complexidade e ainda assim, ser profunda, complexa, desafiadora e dar base para discussões. Ler Le Guin é um grande jogo.”
Ernesto Nakamura

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