Malandro versus Aquiles

Heitor Vasconcelos Serpa
EspeculAtiva
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10 min readMay 3, 2018

O preto bem vestido, todo em vermelho e marfim, desceu o Morro da Conceição. Os espíritos luso-brasileiros das travessas, imbuídos nas casas de azulejos que um dia estiveram às margens de uma “pequena África”, fizeram silêncio ante a sua passagem. O preto não veio para samba, capoeira ou qualquer tipo de festividade. Nas pessoas de carne, uma ameaça ecoava em meio aos sonhos. Rebatia também nos acometidos pelos derivados (insônia, dúzias de comichões, anseios) da sensibilidade.

Na Pedra do Sal, esperando um dos guardiões dos povos bárbaros, o guerreiro de armadura completa chapava o escudo na lança, casualmente, incomodado com o silêncio, até Malandro bater saltos no alto das escadarias. Sem desejo de precipitar confrontos e ao mesmo tempo louco para iniciá-lo em hora oportuna, Aquiles se ajustou. Seu belo rosto não passava de uma treva na abertura do elmo. A liga olímpica, metal divino que lhe cobria da cabeça aos pés, estava sem o polimento de outrora, pois com os giros do tempo, a Civilização, não sem resistência, fora relegada a mitos e inspirações. Os Deuses, sátiros, musas, heróis como ele, retornaram ao Caos Original. Lá permaneceriam até a entropia atingir a podridão que os sucedeu e eles poderem, finalmente, retomar os látegos que trabalhariam a terra e os céus de volta para o que nunca deveria se acabar.

O ser de chapéu, flutuando em gingados, soube da armação para tomar o que era dele antes mesmo de receber o desafio. Eram muitos os ouvidos invisíveis ao mundo de carne. Cada um deles confessava um segredo para Malandro. E Malandro não trazia arma, mas tinha navalha no pé.

Cara a cara, sobre a pedra onde se fizeram muitas e muitas oferendas, os dois palestraram:

— Foi sábia em querer me ouvir, entidade — disse o semideus, pose austera diante do vagabundo de cabeça meio inclinada. — Eu, Aquiles, filho de Tétis e Peleu, Rei dos Mirmi… Estás rindo-se de mim?

Era só um sorriso de canto, “sinhô”… A zoeira, na verdade, vinha dos arredores: o muro contorcia-se com as mãos nos grafites, até chorar lágrimas de tinta e reboco; as escadas oscilavam, segurando-se para não dar rasteiras em si mesmas; janelas batiam rá-rá-rá sem se moverem. O lendário, pressionado por uma simples troça, guardaria os pensamentos se lhe constituísse o feitio. Além de simplista, Aquiles tinha pavio curto. Escarrando no chão, o herói bradou com desdém:

— Pífia demonstração de poder, criatura! Esquece-te que, embora pisemos em teus solos, é dos meus que provém o ultimato?

Fez-se um engasgo rrrrrrrrosnando os últimos segundos. Sepulcro, eterno num instante, quando as energias brincalhonas se centraram no negro. Malandro podia estourá-lo, torturá-lo num turbilhão de paradoxo. Ah, o paradoxo! Essência pura das ruas, de todo o Brasil e quiçá do mundo, que Malandro recebera a função de purificar. Ele, um trabalhador do bem, normalmente mascarava a tristeza de assumir seus lados mais obscuros. Mas tinha de ser assim, era o jogo do outro, e havia de encarnar seus termos para dar-lhe uma lição:

— Vosmecê parece com o Zé — deixou as últimas gotas da alegria naquele insulto ao campeão do Olimpo e ergueu os olhos. — Zé sabe se segurar, mas não leva desaforo pra casa, visse?

Guerra. Guerra. Guerra.

Aquiles retesou todos os músculos, feroz no rosto quase inexistente, assumindo posição de ataque enquanto o outro punha um pé atrás, braço na frente, joelho flexionado, ameaçando bambear, esquerda ou direita. A tensão zunia ao ponto de tirar o equilíbrio de quem cruzava o bairro da Saúde: as vidraças de um táxi margeando o porto estilhaçaram, mas o motorista deu graças a Deus e ao Seguro por não estar com passageiros. Já um mendigo, que andava com as calças borradas naturalmente, traquinava com as memórias da loucura até sentir o peito afundando, a cabeça rodando, e tombou morto a uma esquina da cena.

Guerra, Guerra, ribombando mais alto nas psiquês da Conceição.

Por um longo tempo, algo em torno de sete semanas terrenas, uma das maiores representações brasileiras deu voltas ao redor daquele criado pelo Centauro Quirão, embrutecido no Monte Pélion e depois instruído por Fénix, filho de Amintor, estudando-o enquanto ele também rodava, guarda alta e lança baixa, apontando.

— Falei pra num trazer arma pra conversar com o preto… O “sinhô” tem palavra bonita na boca, mas não tem palavra de caráter.

— Ousas falar de caráter, zombeteiro? — Aquiles tremeu os ombros e emendou a fala num fio de gargalhada. — Se tu não sabes, as armas são parte de meu corpo, enquanto nem teu nome és capaz de agarrar.

Atingindo o oponente no ego, e sentindo a energia dele — imitação perecível do Caos, sem um milésimo do poder — se contendo com esforços menores, comparáveis a fios de pólvora, Aquiles finalizou:

— O fim do teu povo se aproxima, o Caos envolverá a todos! Sabes disso, entidade, e sabes também que não resistirás ao Recomeço! Submeta-te ao Olimpo, renda teus barracos aos termos de nossas pólis, e terás maiores chances de viver em paz! Recusa, e desejarás ser abatido neste exato momento, pois que, se as trilhas do Vazio não te devorarem, nossos escudos e nossas lanças choverão!

A palestra finalizava aqui. Era chegado o momento de o representante berbere tomar uma decisão que marcaria a recriação de todas as coisas, e… Ele estava acendendo um fumo? Rindo enquanto baforava? Os Deuses Olímpicos desafiaram os Cosmos e enviaram o maior de seus guerreiros para discursar com um palhaço? Pois bem! O maldito havia tomado sua decisão antes mesmo de fal…

— O “sinhô” já sabe a resposta, né? — a resposta do preto não surpreendeu Aquiles. O que lhe deixou perplexo foi o modo como, a partir de então, ele dialogou dentro de sua mente.

Deixa o Preto explicar uma coisa, e que o “sinhô” parece ter esquecido ao desdenhar do nome dele.”

— Basta, criatura inútil! — trovoadas rugiram ante a voz do semideus. Era tão diplomático quanto o sol era frio, e se o assunto não encerrasse ali… — Viva para reunir teus homens, enquanto dou a…

Vosmecê precisa de cachimbo pra tirar nervoso, visse? O Zé tava dizendo que os nomes são coisas poderosas, e o sinhô entregou o seu pra ele mais de uma vez… Ele sabe tudo sobre você, Aquiles. Sabe que está fraco pela viagem através do Caos, sabe dos seus pecados e pontos fracos, sabe que você morreu de forma vergonhosa para um homem que nunca pegou nestas mesmas armas que você insiste em ostentar.”

Sombria, a entidade discursou todos os detalhes do herói, traçando o passado de glórias e tragédias, navegando pelos rios do Hades, dissecando sua não-humanidade. Aquiles ouviu, o corpo retesado feito a corda que lhe disparou a flecha no calcanhar, até não suportar mais. Com um grito selvagem, saltou da Pedra com a lança armada para o ataque.

O Zé tá ganhando o jogo, e tá doido pra te dar lição.”

Com um peteleco, Malandro atirou o charuto no peito de Aquiles. O fumo explodiu a energia acumulada pelo Zé, lançando o inimigo tão alto, tão rápido e tão longe, que um avião destinado a Congonhas sofreu turbulências dignas de um tornado. Não restariam explicações lógicas para a Central, fora algo que pareceu lhes atingir de baixo, um surto de vento que se aproveitou de uma falha na aerodinâmica ou coisa do tipo.

O guerreiro bateu num arco soldado em armações de concreto durante a queda, arrancando-o do chão, ralando e afundando seu caminho entre centenas de postes de luzes. Engana-se quem o imaginou desprotegido, podado em chamas meteóricas, pois em pleno ar ele preparou o escudo para o choque, curvou o tronco para os rolamentos do impacto e, sem nenhum arranhão, firmou os pés, impondo um freio para o momento. Viu o tal arco ao longe, semelhante a uma donzela de pernas abertas entre um complexo de colunas destruídas.

Da Pedra do Sal, a luta continuou na Avenida Intendente Magalhães, agora desprovida do carrinho simpático na entrada.

Outro movimento muito rápido fez milhares de luzes, dentro e fora das incontáveis lojas do autoshopping, incidirem sobre Aquiles. Os sistemas de alarmes, espectros do Tártaro gritando por toda a parte, lhe arrancaram a atenção. Quando deu por si, o Malandro estava agachado à sua frente, naquela posição estranha de gingado. Sem dar chances de reação, atravessou a guarda do semideus e espalmou as mãos em seus joelhos, fortes o suficiente para quebrá-los. Porém, houve resistência. A entidade reuniu todas as cargas possíveis e impossíveis, distorcendo a realidade, evocando nomes que poucos Orixás sabiam, mas nenhuma força dentro ou fora deste mundo conseguia romper a essência de quem fora mergulhado no Estige ao nascer.

Sombra ou não, Aquiles ainda era indestrutível.

Quando a pressão do Zé cedeu, não havia mais Avenida, nem Madureira, nem Valqueire: uma explosão silenciosa resumiu a Zona Norte numa cratera. No ventre da destruição, o olímpico finalmente cravou sua lança no adversário, girou-o como um pedaço de carne qualquer e lhe espetou no chão, trazendo um cone de raios que se dissipou a milímetros de sua cabeça. Zeus coroando sua vitória!

— Amaldiçoado! — deveria existir uma amálgama entre arfante e triunfante para definir o estado de Aquiles diante do derrotado que gemia de dor, mas sem verter uma gota de sangue. — Percebeste teu erro? Olhe em volta!

Quando Malandro ameaçava desviar a atenção, Aquiles o chutava no rosto.

— Eu disse para olhar, criatura zombeteira! Veja como tuas mãos arrasaram o que chamas de lar! Contemple-me, pois esta foi a noite em que trouxeste vergonha aos teus irmãos! Contemple aquele que levará um tapete de tua pele ao Olimpo!

Ao perceber que Malandro perdera o chapéu, Aquiles não só encontrou o objeto, como o dispôs à moda fúnebre sobre o rosto do derrotado. Precisou usar a sola umas dez vezes para firmá-lo entre os ossos quebrados.

Mais trovões encheram o Alto, única iluminação do Rio de Janeiro em cataclisma. Se lembrar daquele avião parágrafos acima, basta saber que ele nunca chegou a Congonhas, dividido em oito dezenas pela Ira Celeste. Por isso, não restariam explicações lógicas. Fragmentos de metal caíam ao redor de Aquiles, cruelmente desembainhando a espada, pronto para colocar as palavras em prática.

Um deles, ainda em chamas — impossível definir se era a caixa preta fundida num corpo ou um boneco de cera untado numa turbina — lhe tocou o calcanhar.

Malandro traz navalha no pé…”

De repente, o moribundo se fez transparente, até deixar de existir. Como da vez em Tróia, foi o ego de Aquiles quem lhe trouxe a própria ruína. Não atentou para o fato de o inimigo possuir vários truques, esqueceu a desvantagem de terreno com relação a ele, e por isso, às suas costas, o verdadeiro Malandro talhou seus dois pés com a ponta dos dedos, fintou e emendou uma rasteira que o derrubou.

Ninguém pega o Zé quando ele ginga. Vosmecê não é o primeiro que vem tirar proveito da pele do povo do Zé, só que ele tinha de pegar leve com o bicho homem. O Zé não podia quebrar as coisas… Mas as coisas já estão se quebrando, é o tal do Caos, visse? E o “sinhô” aguenta bem a chibata, visse? Por isso, o Zé vai te dar aula… E o “sinhô” num vai esquecer nunca mais”.

O herói apelou aos deuses, mas estes deram as costas para o seu destino. No longo prazo, receberam-no de volta torturado e humilhado, numa das plataformas de mármore que se sustentavam no nada. Os titãs, de mãos dadas, eram uma muralha viva e imune às loucuras do vácuo.

Zeus, não tão poderoso, discursou sobre como a falha de Aquiles, na verdade, permitira o avanço do Caos a passos largos. Perseu, Hércules e Atlanta haviam retornado a pouco, cobrindo “missões diplomáticas” semelhantes no Oriente, na África e na Oceânia. Antes deles, Belerofonte e Pégaso cumpriram o trajeto mais difícil, desbravando o Vazio em busca dos outros panteões reduzidos pela História. Enfim, somando-se o relato de Aquiles aos outros, as Moiras trançaram um tabuleiro sobre o qual os deuses se reuniram, comparando e discutindo Strategoi.

Decidiram, como próximo movimento, destruir todos os templos cristãos de uma só vez. Não negociariam com aquele mártir esguio, mas teriam nos nórdicos, célticos, nas tribos vítimas das colonizações, irmãs e irmãos de Caos, excelentes aliados quando lhes prometessem o direito de queimar anjos em fogueiras.

Quanto à Terra Brasilis, a destruição da cristandade acirraria as perseguições contra os terreiros daqueles guardiões. Enfraquecidos, fragmentados por uma guerra civil entre fiéis, seriam os primeiros a cair durante o Recomeço. E Aquiles, liderando os mirmidões, teria a cabeça daquele preto incrustada no escudo.

Foram estas as palavras do Oráculo sem Delfos.

EPÍLOGO

Depois de gingar com Aquiles, Malandro espalhou visões.

No fundo do Atlântico, esperando as oferendas de final de ano, Iemanjá contemplava-se num espelho. De repente, seus olhos afundaram pela lente e se depararam num oceano borbulhante e vermelho. No que parecia um abismo, a forma dela era a única luz, e com aquele mesmo espelho, mais garras, arpões, redes, ela lutava contra um ser barbudo e coroado que se movia como um peixe e rechaçava com um tridente.

— Guerra… — Crescendo da tristeza ao ódio, ela sussurrou.

Na Amazônia, Iansã acompanhava a travessia de seus protegidos pelo Grande Rio, e do alto de uma árvore percebeu o céu se transformando num vulto quase indistinto. Viu-se cavalgando uma serpente emplumada enquanto trocava flechas com um homem que carregava o Sol numa carroça.

— Guerra! — Agitada, desapareceu na mata, deixando um poente flamejante para trás.

Numa encruzilhada que dava a visão perfeita do Palácio do Planalto, Exú Caveira fazia o balanço das almas. Por algum motivo especial ele abaixou o rosto e, ao levantar, estava em meio a uma tempestade de cadáveres, medindo forças com um demônio pálido. Entrelaçado no cabo-de-guerra, também trocava seu sopro da morte com as baforadas de fogo inimigo.

— Guerra — sob a capa, proferiu num vazio de sentimento.

Assim, simultaneamente, todos os Orixás e espíritos de variadas ordens se projetaram nos ecos de um Brasil arrasado. Pelo ultraje do desafio contra a própria vida, cada guardião bradou:

Guerra.

Guerra.

Guerra.

Guerra. Guerra. Guerra.

FIM

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