Charles Bronson, o Mercado Novo de BH e o poder da ressignificação

Uma visita ao local mais cool da capital mineira, sob o olhar do dono de uma loja de revenda de discos no Mercado Novo.

Elisa Rabelo
esquina bh
7 min readApr 18, 2021

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O cheiro de ingredientes e condimentos tomam conta de um ar abafado, compartilhado por centenas de pessoas que fazem, em conjunto, um burbúrio audível por qualquer um que esteja lendo isso e lembrando dos tempos não pandêmicos no Mercado Novo. Nome levemente contraditório, visto que quem entra lá pode achar que abriu a porta para outra década - não fossem os celulares acompanhando os frequentantes.

Balcões e engradados de madeira antigos, placas com letreiros feitos à mão, utensílios de cozinha aparentes, iluminação amarelada. Seja nas ilusões vintages do imaginário coletivo jovem ou na realidade quase palpável do caos do Centro de Belo Horizonte, o Mercado Novo ocupa um papel importante na cena cultural da cidade, representando uma relação interessante entre antigo-novo que qualquer pinterester que procura por “nostalgic aesthetic” no site amaria conhecer.

Sim, os jovens vintages descolados estão tomando esse espaço, como você adivinhou? Como qualquer bom pós-moderno, uma parte da juventude belo-horizontina abraçou a tendência de consumo cultural esperada por ela. Como explicam as pesquisadoras da USP, Nícia Beatriz, Monteiro Mafra e Candice Vidal e Souza, no artigo O Mercado Novo: transformações e composições no espaço urbano de Belo Horizonte, Minas Gerais, “Novas dinâmicas de produção e consumo cultural na pós-modernidade têm impulsionado tipos característicos de reconfiguração urbana (Zukin 2000; 2010), como a construção de complexos de arquitetura vanguardista e a transformação de lugares antes marcados pela produção industrial”.

Mas nem tudo é sobre tomar e ceder, e a dinâmica do Mercado Novo parece compreender bem isso. No estudo citado acima, as autoras defendem que, diferente de mercados que se tornaram “cool” e protagonizaram um processo de gentrificação, a nossa pérola belo-horizontina parece harmonizar a coexistência do antigo — representado pelos comerciantes pioneiros ali, como donos de gráfica, vendedores de discos, donos de restaurantes que servem “PFs” aos frequentantes do centro — e do novo — os jovens empreendedores, cujas lojas possuem logos esteticamente impecáveis e arquitetura descolada.

Podemos observar que os velhos integrantes do novo mercado estão na ativa, em sua maioria, na parte da manhã. Já os recém estabelecidos restaurantes e bares gourmet, como a Cozinha Tupis e a Cervejaria Viela, possuem uma vida noturna. Assim, a jornada dupla — ou tripla — do local segue certa harmonia, o que pode ocasionar o perfeito pós expediente para os comerciantes matutinos. Imagina, tomar um copo despretensioso da cervejaria Viela logo depois de sair do trabalho, sem nem ter que se deslocar?

E é nessa harmonia quase perfeita que se encaixa Alexandre Armani, um homem que transita entre o velho e o novo de forma afetuosa. Apesar do elegante nome de batismo, herdado de seu bisavô guerrilheiro e italiano, Alexandre é chamado de Charles Bronson. O ator hollywoodiano? Bom, não exatamente. Mas, talvez uma versão belo-horizontina dele, que é tão performática quanto. Talvez sem nem saber disso.

O nosso Charles Bronson é dono de uma loja de vinis no coração do Mercado Novo. De frente ao estabelecimento da célebre senhora que vende velas de todas as cores e formatos, a loja Charles Bronson — sim, homônima ao dono — se estabelece há bons 10 anos.

Imagem: Elisa Rabelo

Meu encontro com Charles Bronson foi engraçado, portanto gostaria de compartilhar a história. Em uma terça-feira pandêmica de novembro, quando os números da Covid não estavam tão críticos quanto hoje e o comércio da capital mineira ainda estava aberto com restrições, fui ao Mercado de manhã para mandar emoldurar um poster — o qual estampa uma arte dos arcos da Sapucaí.

Naquele reencontro com o Mercado, após meses sem vê-lo, aproveitei para dar uma passeada pelo local. Tudo continuava perfeitamente ali, como se o apocalipse aqui fora não tivesse tido a audácia de afetá-lo. Apenas impressões. E, foi quando passei pelo muro de tijolos vazados que vi pistas de uma intervenção um tanto quanto agradável: vasos de plantas claramente bem cuidadas foram colocados em frente ao muro. Mais a frente, um senhor grisalho, de cabelos nos ombros, usando uma boina e cuidando de montar os arranjos.

Imagem: Elisa Rabelo
Imagem: Elisa Rabelo

Então ele começou a puxar uma conversa. Confesso que não lembro ao certo o que era, porque estou escrevendo isso já em abril de 2021. Mas algo sobre as plantas. Ele disse, então, que possui um sítio na Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde cultiva uma diversidade de espécies. Então, por vontade própria, levou algumas mudas ao Mercado, local onde vende seus discos.

Aquela figura, que parecia mais uma entidade, dessas que aparecem em filmes em forma de velhinhos sábios e logo desaparecem, me dispertou um interesse, talvez uma vontade de saber onde vivem essas pessoas que decidem trazer 80 plantas para embelezar o local de trabalho. Foi como sair de um “lá fora” repleto de caos e entrar em um “aqui dentro” onde a gentileza e o cuidado com o ambiente reinavam. Repito, só impressões. O Mercado Novo é facilmente romantizável, mas certamente os integrantes dessa comunidade passaram por tantos problemas quanto qualquer outro cidadão nesses tempos difíceis.

De toda forma, marquei uma entrevista com Charles para a mesma semana. Ele me prometeu mostrar melhor a sua loja no dia da entrevista, o que foi cumprido. E que loja. Aquele canto não só conta história através dos LPs usados, mas com todos os artefatos, geralmente ligados às raízes e à família de Charles. “Eu sou daquela teoria que o Beto Guedes sempre pregava na música dele, de que nós temos que arrumar a nossa casa e construir uma vida nova e dar uma arrumadinha na nossa terra pra merecer quem vem depois. Eu acho que meus parentes fizeram isso com a gente”, diz sorrindo por trás da máscara.

Alexandre Armani, 56, mais conhecido como Charles Bronson, vende LPs usados em sua loja no Mercado Novo de BH | Imagem: Elisa Rabelo

É inevitável não pensar na origem de cada artefato ali. E, para a sorte da nossa imaginação, Charles Bronson lembra de tudo. Respeitador de suas raízes, ele conta a história da família oral e visualmente, mostrando as referências da trajetória dos Armani através de quadros, discos e livros. A placa da residencial Rua Dialogita, no Santa Efigênia, representa o local onde ele viveu. “Aqui tudo tem história, até essa caixa de cimento tem história. Ela foi feita em 1972 pelo meu avô, na Dialogita” diz Charles apontando para um curioso item acinzentado.

Imagem: Elisa Rabelo

Foi na região da Dialogita — a zona leste — que o nosso Charles Bronson recebeu a oportunidade de abrir o negócio no Mercado Novo. Tudo começou quando Charles trabalhava com pesquisa e, por isso, viajava o país inteiro. Nesta trajetória, passou a comprar artigos da contracultura, segundo ele: discos, revistas em quadrinhos e livros. Ele gostava de comprar e vender, com exceção dos discos. Chegou a armazenar cerca de 3.500 LPs. Foi quando a crise chegou e Charles teve que “vender música”, como ele prefere de se referir ao seu trabalho.

No meio dos discos, um mapa do bairro Pompéia, na zona leste de BH, remetem à região em que Charles cresceu | Imagem: Elisa Rabelo

Há pouco mais de 10 anos, quem passasse pelas regiões central e leste poderia se deparar com um Alexandre mais novo, em uma bicicleta, levando centenas de discos usados para a tentativa de venda nas ruas. Num desses caminhos, ele reparou em uma radiola no interior do então recente bar Juramento 202, na zona leste da capital. Foi assim que ele passou a vender LPs para os jovens donos do bar e acabou ganhando a confiança daquelas pessoas. “Eles me salvaram da rua”.

Foi esse grupo, ligado ao bar Juramento, que participou da revitalização do Mercado Novo, trazendo, assim, a loja Charles Bronson. Alexandre fala que não é fácil mantê-la, mas que preserva um carinho especial pelo seu canto. “Eu estou no melhor lugar, tô no meio da juventude aqui, do lado da dona Neuce (das velas)”. Para ele, o Mercado funciona como uma comunidade, e este é um conceito que Alexandre parece entender bem.

Entendido de história e política, não são raras as vezes que ele conta a sua trajetória citando acontecimentos históricos e ideologias. Charles se posiciona contra o capitalismo e a favor da luta operária, que moldou a história de sua família, tanto pelo envolvimento do bisavô, quanto do pai.

Charles Bronson guarda um boneco miniatura do uruguaio José Mujica, renomado líder de esquerda, em sua loja | Imagem: Elisa Rabelo

Sobre a nova fase do Mercado Novo, Alexandre parece gostar. Ele demonstra muita fé e admiração pelos empreendedores mais jovens que hoje dividem o espaço com ele. Por outro lado, entende que as diferenças socioeconômicas existentes ali podem causar conflitos. Ele não coloca a culpa nos indivíduos por algumas “mesquinharias” que já presenciou, mas sim na falta de consciência de classe a qual somos condicionados.

Hoje, Alexandre é casado e possui um filho. Vive dos arranjos de plantas cultivadas em seu sítio e da revenda dos LPs na Charles Bronson. Como o Mercado, aquele homem representa uma beagá com história, que não acredita que a modernidade anule as raízes. Ressignificar essa relação talvez seja semelhante a agir como Charles: construir uma vida nova e dar uma arrumadinha na nossa casa para merecer quem vem depois. E quem vem agora também.

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