Visitando BH: uma conversa sobre amor próprio e sinergia — encontro de esquina #1 com Bernardo Biagioni
Passando por caminhos invisíveis, o fundador do quartoamado e do Calma Clima, Bernardo Biagioni, conta sobre a sua trajetória de retomada da cidade.
O momento é de angústia e saudade, e o sentimento de falta da cidade em que se vive é mato. Nessa quarentena, o “ovo” que é considerada Beagá tomou proporções bem grandes. A selva urbana visível pela janela é bem maior que imaginamos, quase do tamanho da nossa saudade.
Por trás dessas paisagens estão momentos, cores, sabores, sons e gente, muita gente. Pessoas que, como todo belo horizontino, enchem a boca para defender a cidade, mas também se incomodam quando percebem todo o potencial que ela guarda, encanado por baixo de asfaltos frios, assim como o Ribeirão Arrudas.
E para falar de incômodo, amor e mudança, ninguém melhor do que o belo horizontino cuja intensidade em que vive a cidade é alimentada por esses três fatores. O jornalista, galerista e corredor Bernardo Biagioni representa uma BH em transformação.
Poesia
Bernardo começou a sua apresentação falando de sentimento. Criado por sua mãe e sempre com a grande influência de seu avô, que era poeta, ele teve como o seu norte a sensibilidade, e achou no jornalismo um lugar encantador para exercer essa motivação.
O jornalista de formação fez pós graduação em Arte Contemporânea. Em sua trajetória profissional, ficou 5 anos trabalhando como jornalista de viagens, fator que o fez “sempre voltar para casa muito inquieto” — por casa, lê-se Belo Horizonte. Bernardo diz que, a cada retorno, encontrava uma cidade passando por fases diferentes, com as quais ele muito se identificava. E foi nesse processo sinérgico que ele construiu os projetos Calma Clima e Quartoamado.
Indivíduo-cidade
Em 2010, BH passava por um processo de efervescência. Ecoavam as primeiras demonstrações fortes do carnaval de rua e do duelo de MC’s, representando o nascimento de uma cidade voltada para o espaço público. Bernardo se viu nesse cenário. Passavam os dois por um processo de amor próprio que era novidade por aqui.
Para ele, esse período dizia muito sobre a necessidade de estancar uma falta que existia e que já inquietava muitos, silenciosamente. “Foi um momento em que essas inquietudes comuns encontraram um lugar para se desfilar na rua”, diz o jornalista.
“Toda vez que eu retornava eu encontrava uma Belo Horizonte […] vivendo as suas fases. A gente tem uma história muito progressista mas também muito conservadora, uma história de construções e desconstruções.”
Articulação da arte belo horizontina
Com o propósito de estancar uma falta que Bernardo percebeu ao fazer uma reportagem sobre arte urbana, em 2012, surgiu o quartoamado. O projeto foi primeiramente de comunicação e servia como uma ponte de articulação entre artistas locais. Daí, saiu uma galeria itinerante e virtual, com um chamado forte para a valorização e conhecimento da arte urbana.
“Eu acho que [esse projeto] estava super integrado com o momento de Belo Horizonte muito voltado para se permanecer, e não para exportar talentos, como historicamente vinham fazendo naquele período” — Bernardo Biagioni
Até que, em 2014, a galeria tomou forma física e ganhou um espaço no coração da Savassi. Localizada na rua Antônio de Albuquerque, o local já promoveu diversos encontros calorosos entre criadores, criações e público. Até então, a QA já realizou mais de 60 exposições, apresentando mais de 200 artistas brasileiros.
Bernardo ressalta que a rua que abriga a galeria, por si só, já tem uma característica bem envolvente, já que reúne os mais diversos e alternativos projetos, marcados, sempre, pelo encontro. Ali na vizinhança estão o tradicional Gujoreba, a Baiana do Acarajé, a nova Morada Mexicana, e, no passado, tinha até um bar de motoqueiros selvagens.
O espaço onde a galeria se estabelece antes foi a sede da TV queijo elétrico. E sobre todas essas mudanças, Bernardo ressalta que a paisagem ali está sempre receptiva ao toque e à requalificação de quem passa.
Jornalismo como ponte
Recentemente, a QA encarnou outra novidade: voltando ao seu propósito inicial, ligado à comunicação, virou revista de arte, cultura e comportamento. Entrando no universo do jornalismo local, a revista propõe um espaço de diálogo entre artistas e movimentos na cidade, suprindo uma lacuna que Bernardo diz existir entre a grande quantidade de projetos culturais e a baixa cobertura midiática.
“O jornalismo local passa por uma luta para conseguir seu lugar, em meio a uma crise de financiamento. Ele nunca foi tão importante mas nunca foi tão sucateado financeiramente.”
Bernardo também destaca projetos de jornalismo local que, para além do tradicionalismo da prática, contam a história da nossa cidade promovendo o diálogo. Entre eles estão a revista Piseagrama e trabalhos de Alessandro Borsagli, como Rios Invisíveis da Metrópole Mineira e Arraial do Curral Del Rei.
Para ele, o jornalismo se dá como “um exercício menos de imparcialidade e mais de uma parcialidade em relação a uma franqueza em torno dos sentimentos”.
Na corrida pela retomada da cidade
Ainda com o propósito de promover encontros — sejam eles entre pessoas, lugares ou conhecimentos — surgiu o Calma Clima, em 2016. O projeto, idealizado por Bernardo Biagioni, consiste em corridas em grupo cujo trajeto são locais pouco acessados da cidade. A ideia é desbravar uma BH não tão amigável para meios de transportes alternativos e pedestres, conhecendo o desconhecido, mesmo ele sendo tão familiar.
“Quando a gente sai para correr junto e a gente tá ali experimentando a cidade igual se experimenta uma praia, que é aquele lugar que a gente para e se deslumbra” ressalta Bernardo.
Para ele, o lugar onde vivemos é o último onde a gente espera se encantar, e é nessa quebra de paradigmas que se consiste o Calma. O projeto já reúne centenas de participantes de várias áreas da cidade, estourando bolhas sociais e etárias.
“Se a gente não pisa no território, é muito difícil que a gente sinta algo por esse território.”
Ao longo de seus trabalhos, textos e dessa entrevista, Bernardo não deixa de citar o termo “cidade invisível”. A fim de aprofundar no conceito, ele explica que essa condição de invisibilidade vem de uma visão utilitarista que se fez da cidade.
Muros, avenidas, ruas e construções são feitos com funcionalidades pré determinadas, e muitas vezes elas não consideram a experiência do cidadão. Bernardo propõe que passemos a olhar um muro para além de sua utilidade inicial, que saibamos tocar nele, deixar a nossa marca. A ocupação das pessoas é essencial para que a cidade se torne um lugar mais lúdico e aberto a ressignificações.
Para exemplificar a lógica utilitarista, Bernardo cita a situação dos rios da capital mineira. A cidade é banhada por uma extensa rede hidrográfica, que atualmente se encontra majoritariamente encanada por debaixo do asfalto. O jornalista ressalta que o terreno das margens dos rios são ideais para a passagem de ciclistas, por serem territórios planos. Apesar disso, a invisibilização deles nos distancia desse lugar de maior contato com a cidade, através do transporte alternativo. É assim que se cria uma cidade invisível.
Direto ao ponto — a visão de Bernardo
1 lugar em BH?
Serra do Curral.
1 evento de BH?
1 personalidade de BH?
O músico e historiador Guto Borges. Regente de blocos de rua desde os primórdios do renascimento do Carnaval, em 2009.
Como você descreveria BH para um gringo?
“Eu falaria para o gringo que a gente vive numa roça grande, uma roça em que, ao mesmo tempo que a gente cruza com uma charrete na rua, passa um cara com uma Ferrari super baranga. […] Eu acho que essa roça tem um fator geográfico importante, por ficarmos cercados por montanhas […] Eu destacaria que a gente vive numa roça cercada por montanhas onde vivem pessoas extremamente criativas, inquietas e produtivas”.
Como explorar o lado de “turista na cidade em que se vive”, que você tanto defende, durante a pandemia?
“Estudando, lendo sobre a nossa história e sobre a formação da identidade mineira.”
Como você quer ver a BH pós-quarentena?
“Se amando enquanto roça, se sentindo presente e se valorizando enquanto povo.”