COMO ENXERGAR NUM MUNDO EM QUE TODOS SÃO CEGOS?

A beleza da vida escondida na cegueira branca do século XXI

Julia Simoes
Esquina On-line
5 min readNov 16, 2017

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Julia Simões

Imagem pública

"Fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca". — José Saramago

Existem pessoas que são cegas congênitas, aquelas de nascimento. Outras que se tornam cegas por acidentes ou doenças, e a pior cegueira chamada voluntária, em que se escolhe ser cego.

Eurídices, 75, dificiente visual devido glaucoma.

Nos dias atuais não é preciso estar cego para não enxergar. A cegueira do século XXI bate na porta de muitos e se apodera lentamente da visão humanizada das pessoas. No meio de tanta descriminação, corrupção, pobreza, capitalismo, mídia manipuladora, incertezas, fica difícil não deixar a simplicidade das coisas não passarem.

A emoção humana passou a ser movida pelas mãos do consumo exacerbado. Nos emocionamos com uma propaganda de fast food mas nem se quer lembramos daqueles que passam fome nas ruas, que trabalham honestamente para alimentar seus filhos, que superam dificuldades muito maiores.

Documentário gravado no Centro de Ensino Especial de Deficientes Visuais (Ceedv).

A decorrência e consequência de tudo isso são as doenças do século: depressão, estresse, ansiedade, câncer, obesidade e hepatite. Os indivíduos reconhecem o efeito que a urbanização tem na nossa saúde, seja coletivamente — com interferências diretas no planeta — ou de modo individual. Contudo não fazem nada para não serem atingidos e viverem de maneira mais saudável. É muito mais importante pagar impostos, não acumular dívidas e garantir o lazer, do que cuidar de você.

Quem vê é quem percebe a crueldade do capitalismo e não aceita viver nesse mundo sem esperança. Já os cegos transformam-se, virando-se uns contra os outros, desse modo são reveladas as piores faces do ser humano. A cidade vai se transformando num caos de destruição humana, onde cada cego luta pela sua sobrevivência, entregando-se de tal forma ao desespero que acabam por abandonar qualquer traço de humanidade.

Gabriel Fernando, 22, deficiente visual congênito.

Diante desse assunto é possível citar José Saramago, autor do livro "ensaio sobre cegueira", o ser humano, moralmente e culturalmente é selvagem, egoísta e controlado pela ordem judicial social onde apenas o consumismo pode garantir um pouco dessa liberdade aprisionada. Na obra o leitor consegue se colocar na pele de cada personagem e perceber o quanto é terrível estar em im mundo mergulhado nessa cegueira vazia. A obra também retrata o egoísmo do ser humano e sua capacidade de ferir outras pessoas para exigir vários tipos de favores em troca de supostos atos de generosidade.

"Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar pode esperar encontrar respostas para os problemas que a afligem". — Zygmunt Bauman

O pensamento de Saramago estabelece uma linha tênue com a realidade atual e o pensamento de Zygmunt Bauman, onde a verdadeira essência das pessoas ainda está escondida, e o que prevalece é o capitalismo e a idealização da imagem. Já o presente é apenas obedecido sem questionamentos. A palavra e o sentimento do cidadão é apenas escondida e esquecida.

Bauman foi um filósofo polonês autor do livro "modernidade líquida" que se encaixa perfeitamente na cegueira branca opcional dos dias de hoje. Refletir sobre as mudanças que a sociedade moderna atravessa desde o individualismo até as relações de trabalho, família e comunidade, onde o tempo e o espaço deixam de ser concretos e absolutos para serem líquidos e relativos.

E seria realmente essa a beleza do século XXI? Ser feliz diante de um valor cobrado? A beleza não pede para entrar e muito menos tem que pagar um valor para ser feliz, nela não existe o capitalismo. Não tem hora e nem local. Ela chega de fininho logo cedo no amanhecer, nas cores do céu, no vento que te cerca e você nem sente, mas ele faz desenhos lindos na natureza. No cair do pote de tinta na tela branca, no amor materno, e amor dos animais. No bom dia que muda o dia daquela pessoa, no abraço de quem precisa. Ela empurra a porta e aparece à tarde no desabrochar de uma flor, no bater das asas de uma borboleta, num sorriso sem compromisso, numa conversa jogada fora, na ajuda ao próximo. Então chega à noite com o charme que só ela tem, no beijinho de boa noite da criança, na simplicidade da felicidade, no encantar-se com a magia escondida no dia a dia.

Nos países nórdicos significa um trevo de quatro folhas, sinônimo de descanso.

Enxergar aquilo que é belo nas pequenas coisas é difícil, não é? Isso porque muitas vezes nem lembramos, ou se quer temos tempo. Contudo, tudo que é simples encanta, fica ali de mansinho e te mostra como o essencial e o lado bonito da vida está invisível aos seus olhos. Então a beleza te leva para passear e te mostra como a paz num mundo ditador de regras ainda existe. Resultado? o tempo para e você fica aí no ar, achando que beleza mesmo é esse vício mentido no século XXI que já está instaurado em sua vida adoecida e você nem parou para pensar.

Então te desejo simplicidade, viver com o coração de verdade e ver a beleza da vida com seus próprios olhos, e não com os olhos dos outros.

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